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Verdades históricas sobre o Araguaia

Uma síntese das complexidades sociais brasileiras. Assim pode ser definida a região em que atuou a Guerrilha do Araguaia, no sul do estado do Pará, um vasto território marcado pelo trabalho duro, a violência social e outras injustiças típicas de uma sociedade que se desenvolve rompendo uma intricada teia de contradições. Vê-se no rosto de cada camponesa e camponês traços de sobreviventes, de bravos combatentes da vida e do futuro, uma misto de amargura com alegria e esperança, simbolizado na luta por reparações das atrocidades de que foram vítimas, especialmente no começo da década de 1970. Basta puxar assunto para se ouvir uma história mais dramática do que a outra.

Tudo isso foi, mais uma vez, denunciado e registrado pelo “1º Seminário Nacional de Memória, Anistia e Direitos Humanos do Araguaia”, realizado nos dias 19 e 20 de maio no auditório da Câmara Municipal de Marabá, a cidade polo da região (veja aqui). Passaram pelos microfones do evento parlamentares, pesquisadores, acadêmicos, estudantes, ativistas sociais e representantes de instâncias jurídicas, além de relatos pungentes de camponesas e camponeses. Estes, como os principais agentes daquela história — além dos guerrilheiros —, deram o tom do sentido profundo do evento.

Fio da história

São relatos de brutalidades sem limites, de bestialidades inomináveis, de fatos que comprovam a natureza desumana do regime que combateu a Guerrilha do Araguaia, o que permite inscrevê-la na galeria dos acontecimentos que, de uma forma ou outra, interferiram no curso da história brasileira. Se liga, pelo fio da história, a episódios como a chamada Inconfidência Mineira, a Revolta de Vila Rica, a Revolta de Canudos, a Revolta dos Alfaiates, a Revolta da Chibata e a tantos outros fatos marcantes de rebeldia popular, de enfrentamentos a tiranias. Como define o historiador gaúcho Décio Freitas, os principais problemas dos povos decorrem da sua história. São vítimas do passado. 

No Araguaia vive o povo da enxada, da foice e do facão. Gente que, como é a característica do trabalhador brasileiro, migrou em busca de melhores meios de sobrevivência, embrenhando-se na mata para ganhar o pão. Nordestinos, em sua maioria, acostumados a inclemências da natureza e a desafios impostos por poderes discricionários, públicos e privados. São também vítimas do atraso industrial em vastas regiões do país, que não criaram cadeias produtivas e consequentemente geraram precários meios de sobrevivência autóctones.

Duras verdades

Assim como as vastas levas de migrantes que engrossaram os grandes centros urbanos para se integrarem às correntes econômicas, os camponeses do Araguaia buscaram um chão que lhes proporcionassem a tranquilidade da colheita certa. Encontraram, além das vicissitudes naturais, as barreiras da estrutura social brasileira, erguidas à base de autoritarismos e privilégios parasitários, reproduzidos amiúde nos rincões do país.   

Os guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) desembarcaram na região dispostos a romper esses atrasos sociais começando por levar um pouco de justiça social ao povo local — naquela máxima tolstoiana de começar sempre por sua aldeia. Ou, mais apropriadamente, o método marxista do simples para o complexo. Era o caminho da guerra prolongada, a criação das forças armadas populares que durante muito tempo se orientariam pelos princípios da defensiva estratégica para posteriormente livrar o país da ditadura.

Um retrato dessa fase inicial da Guerrilha está no documento “Proclamação da União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo”, um panorama de injustificadas mazelas econômicas, sociais e políticas. Além da “Proclamação”, em 27 pontos o documento enumera os passos iniciais do caminho da guerra popular, uma espécie de programa de governo inicial para dar um mínimo de dignidade àquele povo lutador.

As melhorias rápidas nas condições de vida da população possibilitaram o seu engajamento no projeto dos guerrilheiros, criando uma sinergia que ficou como marca indelével na região. Nem a ferocidade do regime militar, ainda hoje uma ameaça difusa no imaginário local, conteve a simbiose povo-guerrilheiros. Alguns relatos no seminário mostraram como o sentimento de injustiça calou fundo na alma daquela gente, que tem muito bem definido quem foram seus amigos e seus inimigos. Vê-se por toda parte pessoas mutiladas, no corpo e na alma, cicatrizadas e revoltadas, muitas com disposição para extravasar seus sentimentos agora que o tempo se encarregou de proporcionar as condições para que duras verdades sejam ditas.

Norte definido

A dimensão daquela epopeia aguarda um registro sistematizado, como fez Euclides da Cunha com Os Sertões sobre Canudos e Belo Monte, algo que pudesse registrá-la oficialmente na galeria dos feitos populares de grande envergadura, um contraponto à tentativa de ocultar o que representou a Guerrilha do Araguaia. A história do Brasil aguarda a justiça que dê conta dos corpos desaparecidos, que desarquive os documentos do regime criminoso, que indenize os prejuízos morais e materiais da população local e que puna os responsáveis pelas dores irreparáveis que causaram. Os que pisaram aquele chão sagrado para atacar o povo são personagens que já ganharam a repulsa daquela gente sofrida, um sentimento que mistura revolta com esperança de que seus algozes paguem, de uma forma ou de outra, pelas atrocidades que cometeram.

Os fatos conhecidos permitem dizer que o Araguaia já faz parte de um capítulo da história brasileira que será lembrado por séculos e séculos. Seu território é o palco da condensação de dois veios históricos — um representando a luta do povo por sua emancipação social e outro traduzindo os ideais dos que não querem mudanças na estrutura social brasileira por não abrirem mão de privilégios há muito superados pela história. Na guerra popular do Araguaia estão os ideais de Tiradentes, de Frei Caneca, dos alfaiates da Bahia, de Cipriano Barata e de tantos outros, valentes, combativos, que tinham um norte definido, com o adendo de que os guerrilheiros se orientavam pela estratégia do Partido Comunista do Brasil que, além da libertação nacional, lutava pela emancipação social do povo brasileiro.

O Seminário de Marabá produziu mais um significativo registro da verdade sobre o Araguaia, importante ação para desmistificar as versões dos detratores das lutas populares. Foi assim também com a Inconfidência Mineira, que para certos mistificadores só teve repercussão devido à morte violenta de Tiradentes — ignorando a clareza de objetivos e a amplitude do movimento mineiro. Felipe dos Santos, cujo corpo arrastado por cavalos banhou de sangue as ruas de Vila Rica, os quatro mártires da forca legados pela Revolta dos Alfaiates e os camponeses de Canudos, como tantos outros, são exemplos de que, assim como os guerrilheiros do Araguaia, não foram perdoados pelos inimigos do povo.

Mesmos ideais

A crueldade no palco da Guerrilha se estendeu para os dois principais centros urbanos do país, São Paulo e Rio de Janeiro, traduzida pelas mortes violentas de Carlos Nicolau Danielli, Luiz Guilhardini, Lincoln Oest e Lincoln Bicalho Roque, membros da Comissão de Organização do PCdoB e base de apoio dos guerrilheiros, e pela Chacina da Lapa, que assassinou os dirigentes comunistas Pedro Pomar, Ângelo Arroyo — um dos comandantes do Araguaia — e João Batista Drummond. São mais provas de que a tirania dos que se imaginam donos do poder não toleram quem lhes faz oposição consequente e destemida.

Os mortos, desparecidos e feridos nas batalhas do Araguaia foram os principais presentes no seminário de Marabá. Sua história, dramática e heroica, é um farol do passado que ilumina o presente e o futuro, um registro em aberto mostrando que quando o povo se organiza e define um rumo não há barreiras intransponíveis. O regime militar proclamou vitória sobre a Guerrilha, mas a história o condenou. Hoje, quem anda de cabeça erguida, sem olhar para os lados para dizer que estiveram do lado certo, é o povo do Araguaia, os guerrilheiros, o PCdoB e todos os demais que combateram aquela tirania. A história já mostrou quem verdadeiramente venceu aquela batalha. Seus legatários hoje estão em ação contra o golpe de 2016, num combate que resgata os mesmos ideais dos que enfrentaram o regime de 1964.