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Astrojildo Pereira: A Revolução Russa e a Imprensa

Astrojildo Pereira e sua companheira Inês Dias

Astrojildo era funcionário do Ministério da Agricultura, sendo demitido em virtude da publicação destes artigos. Em 1917, era um dos mais destacados dirigentes entre os anarquistas brasileiros. Os impasses da greve geral de julho de 1917, dirigida pelos anarquistas, e o impacto da revolução russa de outubro, foram motivo de profunda reflexão por parte deste dirigente proletário que, juntamente com outros dirigentes anarquistas, debatiam as limitações daquela corrente de pensamento, principalmente sua ênfase na luta apenas econômica, e não política.

Neste sentido, aquele grupo evoluiu e, em 1922, Astrojildo foi o mais destacado dos fundadores do Partido Comunista do Brasil. Entretanto, no momento em que escreveu os artigos de A Revolução Russa e a Imprensa, ainda não se definia como “marxista”, mas como “anarquista”, circunstância que transparece em vários trechos deste seu esclarecedor livreto.

Leia abaixo a íntegra das notas:

Alex Pavel (Astrojildo Pereira),
Rio de Janeiro, 1918

Explicação:
As páginas que formam este folheto foram escritas em dias espaçados, no interregno de tempo contado de 25 de novembro do ano findo até 4 de fevereiro último.

Algumas delas foram enviadas, em forma de cartas, aos jornais rebatendo Injúrias ou deslindando confusões. Reunidas e coordenadas nesta brochurinha, creio valerão como um documento e um protesto mais duradouro contra as calúnias e imbecilidades de que se tem servido a nossa imprensa nas apreciações sobre a obra dos maximalistas russos...

A Revolução Russa e a Imprensa Carioca

Jamais, jamais se viu na imprensa do Rio tão comovedora unanimidade de vistas e de palavras, como, neste instante (1) a respeito da revolução russa. Infelizmente, tão comovedora quanto deplorável, essa unanimidade, toda afinada pelas mesmíssimas cordas da ignorância, da mentira e da calúnia. Saudada quando rebentou e deu por terra com o czarismo dominante, a revolução russa é hoje objeto das maldições da nossa imprensa, que nela só vê fantasmas de espionagem alemã (II), bicho perigoso de não sei quantos milhões de cabeças e de garras. Provavelmente os nossos jornais desejariam que se constituísse, na Rússia, sobre as ruínas do império, uma flamante democracia de bacharéis e de negociantes, como a que tem por presidente o Sr. Wilson (III), ou como esta nossa, presidida pela sabedoria inconfundível do Sr. Venceslau (IV). A caída do nosso Império e a implantação desta nossa República, sem gota de sangue, com uma simples e vitoriosa procissão, parece ter-se tornado, aos olhos de nossos jornalistas, o padrão irrevogável pelo qual se devem guiar as revoluções antidinásticas que se forem efetuando pelo mundo. Como a revolução russa, ao contrário disso, tem tomado um caráter profundo, de verdadeira revolução, isto é, de transformação violenta e radical de sistemas, de métodos e de organismos sociais, levada para diante aos empuxões, pelo povo, pela massa popular — eis que os nossos jornais desabam sobre ela, de rijo, toda a fúria da sua indignação democrática e republicana. É que os nossos jornais partem de um ponto de vista errado, supondo que o povo russo tem a mesma mentalidade do povo brasileiro de 89, que assistiu, “bestializado”, à proclamação, por equívoco, desta bela choldra que nos desgoverna (V). Não; o povo russo é um povo de memoráveis tradições revolucionárias, cuja mentalidade, formada através das mais ásperas e mais empolgantes batalhas libertárias destes últimos cem anos, não pode satisfazer-se com o regime falsamente democrático da plutocracia, regime de espoliação em nome da igualdade perante a lei, de embuste e burla eleitoral e de parlamentarismo oco, palavreiro, desmoralizado, safadíssimo...
Já em 1869, há quase meio século, escrevia Bakunin (VI), um dos grandes precursores da atual revolução, e que se achava então na Suíça, exilado:
“Eles (os revolucionários) querem nem mais nem menos que a dissolução do monstruoso Império de todas as Rússias, que, durante séculos, esmaga com seu peso a vida popular, não conseguindo, porém, extinguí-la de todo. Eles querem uma revolução social tal que a imaginação do Ocidente, moderada pela civilização, apenas consegue pressentir”. ‘Um pouco mais de tempo... e então — então ver-se-á uma revolução que sem matéria de dúvida ultrapassará tudo quanto se conhece até aqui em matéria de revoluções” (2).

Agentes Alemães

Uma das teclas mais batidas pelas ilustríssimas gazetas do Rio, quando se referem à revolução russa, é a de que os bolcheviques em geral e Lênin em particular são agentes do governo alemão. Ora, há em tudo isso, a par do evidente contra-senso, um crasso desconhecimento dos fatos.
Lênin é um velho socialista militante de mais de 20 anos, e como tal, ferozmente perseguido pela autocracia moscovita, mas sempre o mesmo homem de caráter indomável e Intransigente. (3)

Como pode, pois, entrar nos cascos de alguém que um homem destes, precisamente quando vê seus caros ideais em marcha, a concretizar-se, numa soberba floração de energia vital, vá vender-se a um governo estrangeiro? Lênin, se quisesse vender-se algum dia, bastava esboçar o mais leve sinal e o governo de São Petersburgo rechear- lhe-ia os bolsos fartamente, vencendo pelo dinheiro o inimigo implacável. Não precisava esperar, através de anos inteiros de perseguições e sofrimentos, que a revolução social dos seus sonhos se iniciasse para entregar-se ao marco prussiano, como um vulgaríssimo trampolineiro, como um jornalista qualquer, destes que abundam na imprensa desta terra. Os cascos do mais espesso jumento repelirão, por demasiada, tal sandice... Aos nossos jornalistas, a honra de a fecundarem! — E grande honra, essa, que a Revolução, ao extravasar os oceanos e ao vir sacudir-nos da bestialização republicana, saberia decerto, regiamente e merecidamente recompensar...

Inconveniência e Imbecilidade

Interessantíssimo o artigo estampado há dias em O Imparcial (4) sobre a situação russa. Notório e acérrimo defensor da “ordem social”, O imparcial serve, assim, valentemente, à causa do Estado, de que é um do esteios e na qual tem empregados sérios interesses. E tanto mais valentemente quanto é certo que, brigando contra os fermentadores de revolta, briga também contra a lógica e contra a verdade dos fatos Exemplo flagrante disso é o trecho seguinte do citado artigo: “A Rússia era uma nação governada pelo Knut. Sacudido o jugo dos Romanov, entregou-se à embriaguez da emancipação, com todos os seus excessos. Falta-lhe cultura moral necessária para disciplinar a liberdade sob autoridade, e para compreender que um governo acatado e leis obedecidas são condições indispensáveis à existência de urna nação livre. O espírito militar extinguiu-se no Exército, destruindo-!he a força de agressão, e até o estimulo de resistência”. Eu sublinho as palavras que me parecem mais comprometedoras...

Acho estupendo que se julgue a emancipação capaz de causar embriaguez. Isso é querer compara-la ao álcool, ao vinho, ao vodca, que embriagam aos viciados, (permanentes ou momentâneos, pouco importa), isto é, aos escravos da bebida. Ora, um escravo, se me não engano, é tudo quanto há no mundo de menos emancipado. Não, a emancipação não pode jamais embriagar. Ela é água límpida, refrigente, saudabilíssima...

Não menos estupendo acho eu o conceito de disciplinar sob a autoridade. Essa é a linguagem de todos os tempos, isto é, dos grandes inimigos da liberdade. Liberdade disciplinada é liberdade limitada, coartada, imposta — de onde resulta deixar de ser liberdade. E não falemos em liberdade sob a direção da autoridade... A autoridade, por sua origem, por sua função essencial e formal, por seu papel histórico, representa precisamente e concretamente o princípio oposto ao princípio de liberdade. Pode dizer-se que a autoridade e a liberdade são dois antípodas da história da humanidade. Essa mesma história prova-o abundantemente: toda e qualquer conquista da liberdade implica necessariamente em diminuição de autoridade. A autoridade é força manejada pelo arbítrio de alguns; é violência, compreensão, é brutalidade, é imposição — tudo quanto há de menos liberdade.

O espírito militar extinguiu-se no Exército russo... — é verdade, e felizmente, muito felizmente. Eu sou antimilitarista e alegro-me imensamente com tão auspicioso acontecimento. E desejo ardentemente que o mesmo aconteça na França, na Inglaterra, na Itália, na Alemanha, nos Estados Unidos, no Brasil... no mundo todo. O que, porém, não posso compreender, por mais esforço que faça, é que O Imparcial, que combate o espírito militar, existente no povo alemão, como um perigo universal, entenda que o desaparecimento desse espírito militar, na Rússia, constitui um mal. De duas uma: ou o espírito militar (ou militarismo, que tudo é um) é um bem, ou é um mal. Se é um mal (como afirmam os aliados referindo-se à Alemanha), o seu desaparecimento, ou a sua não existência num país qualquer (como é o caso da Rússia, segundo afirma O Imparcial) constitui um motivo de felicidade inestimável, e deve, assim, ser louvado por toda a gente amiga da humanidade e da liberdade. Se, ao contrário, o espírito militar é um bem, ele deve ser louvado, claro está — mas deve ser louvado também na Alemanha, que, incontestavelmente, é a pátria mestra em militarismo, mestra cujos exemplos devem ser seguidos por quantos entendam que o espírito militar é um bem. Combater o militarismo tedesco e, ao mesmo tempo, louvar e incitar (o que têm feito os aliados, inclusive agora o Brasil por nossa desgraça) o espírito militar no resto do mundo, eis uma incoerência que não posso compreender, por mais esforços que faça... Enfim, bem pode ser que eu seja o imbecil!

A Divergência Fundamental

“É evidente que a concepção dos maximalistas (VIII) sobre a liquidação da guerra diverge muito da de Berlim e Viena.” Eis o que afirmava a agência Havas, em telegrama de Paris, datado de 7 de dezembro último e aqui publicado. pelos jornais seus clientes. no dia seguinte. É uma informação absolutamente insuspeita, pois parte duma agência francesa oficiosa, cujos despachos são diretamente controlados pelo governo de França. Ora, se “é evidente” a divergência entre os maximalistas e os governantes de Berlim e Viena, a respeito da liquidação do conflito guerreiro, isso quer dizer, nem mais nem menos, que os maximalistas pensam e querem que a guerra termine dum modo diverso do modo que pensam e querem os governantes alemães e austríacos. Divergir é pensar e querer a mesma coisa de maneira diferente, e quando duas pessoas, ou grupos de pessoas, ou duas coletividades, têm firmado, sobre o mesmo assunto, um pensamento e uma vontade divergentes, isso significa que não existe acordo entre as duas partes, o que se dá agora entre Berlim e Viena, dum lado, e Petrogrado, do outro: entre rnaximalistas e governantes tedescos não existe concordância de opinião sobre a guerra e a paz, Nem poderia jamais existir concordância entre uns e outros; os maximalistas socialistas revolucionários batendo-se por um programa máximo (5) de reivindicações populares — os imperantes austro-alemães, a personificação culminante da autoridade, da tirania, da opressão, da espoliação das massas populares. O programa essencial de todos os partidos socialistas consiste precisamente no combate dos instrumentos e aos partidos da tirania e da espoliação. Os maximitilsias que formam uma fração dos socialistas russos, são por sua natureza, especificamente inimigos de todos os governos monárquicos e plutocráticos, da Rússia e de fora da Rússia, portanto inimigos naturais dos governantes de Berlim e de Viena, E é aí que resulta a divergência radical entre uns e outros, sobre a guerra e a paz. Ora, se isso é verdade, se isso constitui um fato evidente, como conceber que os maximalistas sejam agentes alemães, agindo por influxo do marco prussiano, traidores da pátria e outras coisas não menos feias? (6)

“Alteração” Maximalista e “Evolução” Aliada...

“Petrogrado, 23 de dezembro (Havas) — Discursando nesta capital a respeito das negociações de paz com os impérios centrais, o Sr. Trotski disse: “A revolução russa não derrubou o Czar para cair de joelhos ante o Kaiser, implorando paz. Se as condições oferecidas não forem conforme os princípios da revolução, o partido maximalista recusará assinar a paz. Fazemos guerra a todos os imperialismos”. Como se vê, este telegrama, da mesma insuspeitíssima (no caso) agência, veio confirmar, com as próprias palavras de Trotski, os comentários que o telegrama do dia 7 me sugerira.
Na sua edição de 24 de dezembro, A Noite, desta cidade, assim se exprimia: “O programa de paz dos maximalistas, apresentado à conferência (de Brest-Litovski, inaugurada nesse dia) (IX), podia ser aceito, com pequenas alterações, por todos os países aliados. Nunca poderá ser aceito, porém, pelos Impérios Centrais, porque elas repousam sobre bases democráticas contrárias, em absoluto, ao imperialismo que domina Berlim e Viena”. É outro testemunho insuspeitíssimo, contra conceitos próprios anteriormente expendidos e confirmando integralmente o que eu dissera nos comentários do dia 9...
Uma observação curiosíssima. Referindo-se às condições de paz expostas simultaneamente pelo Sr. Lloyd George (X), no Congresso dos Sindicatos Operários Ingleses, e pelo Sr. Wilson, na mensagem ao Congresso Americano, O Imparcial de 10 de janeiro último estampa, entre outras coisas do maior interesse, esta: “Alguns órgãos da imprensa aliada, por um excesso de zelo que prejudica em vez de favorecer a causa comum, nos comentários bordados sobre essas solenes declarações, procuram mostrai que a Entente (XI) não modificou uma linha dos seus propósitos anteriores assentados sobre a guerra. Basta reler com atenção o discurso do primeiro-ministro inglês e a mensagem ao Congresso Americano, para ver que os aliados evoluíram nos seus programas”... Ao ver divulgado o programa de paz apresentado pelos maximalistas, A Noite, a 24 de dezembro, afirmava que tal programa “podia ser aceito, com pequenas diferenças, por todos os países aliados”. Realmente, três semanas depois, a Inglaterra e os Estados Unidos, e com eles os demais aliados, aderiram ao programa russo. Aderiram, é claro, com alterações — não pequenas, mas grandes — e alterações da parte deles, aliados, como confessa O imparcial, quando diz, com deliciosa candura, que ‘os aliados evoluíram no seu programa...

A Mensagem de Wilson

A mensagem do Presidente Wilson, aqui publicada no dia 9 de janeiro, é que veio entupir de vez as goelas dos miseráveis escribas de penas permanentemente votadas à calúnia. Eu não resisto ao desejo de transplantar para estas páginas os trechos da mensagem em que se toca nos russos e na conferência de Brest-Litovski. Vale a pena dar-lhes relevo:

“Os representantes da Rússia em Brest-Litovski apresentaram não só uma exposição perfeitamente definida e clara dos princípios sobre os quais eles estariam dispostos a concluir a paz, mas também um programa igualmente nítido e preciso sobre o modo concreto desses princípios poderem ser aplicados”.

... “As negociações foram quebradas. Os representantes da Rússia eram sinceros e como tais não podiam seriamente dar incremento”, etc...

... “Os representantes russos têm insistido, muito justa e sabiamente e dentro do espírito da moderna democracia, em que as conferências que eles têm celebrado com os estadistas teutônicos e turcos deviam ser celebradas a portas abertas, tendo por auditório todo o mundo, como se desejava”...

... “Há, além disso, uma voz a reclamar essas definições de princípios e propósitos que, em minha opinião, é mais comovente e intimativa do que qualquer das muitas vozes tocantes que povoam o ambiente do mundo. É a voz do povo russo”.... “Ele não cede nem nos princípios nem na ação. A sua concepção do que é justo, do que é humano, do que é honroso aceitar, já foi exposta com uma franqueza, uma largueza de vistas, uma generosidade de espírito, uma universal simpatia humana que há de provocar a admiração de todos os amigos da humanidade. Tem ele recusado transigir nos seus ideais, ou abandoná-los para garantir a sua própria segurança”...

Depois disso, não há senão que subscrever e seguir as recomendações feitas pelo Cosmopolita... (7), ao comentar estes mesmos trechos da mensagem de Wilson: “Tornando... às imbecilidades estampadas na imprensa carioca, só nos resta recomendar aos nossos amigos e camaradas esses senhores jornalistas dos rotativos: por enquanto o desprezo e o desdém... e mais tarde, na hora solene do grande e próximo ajuste de contas, então, sim — saibamos tirar proveito da rijeza combativa dos nossos músculos”.

O Desmembramento do Colosso

Uma das conseqüências da revolução russa que mais assombro e indignação causam aos nossos jornalistas, é a do desmembramento do ex-império. Eles põem as mãos na cabeça, desorientados, ao lerem os telegramas que noticiam a independência e autonomia da Finlândia, do Cáucaso, da Sibéria, da Ucrânia... E as apóstrofes de maldição desabam sobre os maximalistas, “monstros satânicos” e cruéis, provocadores da derrocada da própria pátria! Isto se tem dito e redito em vários tons, graves e agudos, descompassados todos... Ora, esses mesmíssimos jornalistas açambarcadores da opinião, cuja vacuidade mental e cuja barriga não inferiores nem à barriga, nem à vacuidade mental dos açambarcadores de açúcar ou de charque, são esses mesmíssimos plumitivos superaliadófilos que proclamam, desde há três anos e meio, baterem-se os aliados pelo direito das nacionalidades, pelo princípio das nacionalidades, pela independência das nacionalidades! De duas uma: ou tais pregoeiros são insinceros, quando defendem a causa aliada da independência dos povos, ou então ignoram inteiramente a história, a constituição e a organização do ex-império de todas as Rússias. Isto é, pode ser por um terceiro motivo: a insinceridade e a ignorância juntas. Eu estou certo de que, mesmo quando se lhes prove, documentos na frente (8), que a Rússia de ontem era um heterogêneo de nacionalidades, eles continuarão, cegos e surdos às boas razões (mas de olhos arregalados e ouvidos aguçados ao tilintar dos esterlinos...) a apostrofar a “insensatez”, a “loucura”, a “infâmia”, a “traição”, e não sei mais que outros tremendos pecados dos maximalistas!

A “Tração” dos Aliados

Todos os tratados e convênios, secretos ou não, firmados pela Rússia e pelas nações da Entente, datam do governo autocrático do Czar, Mas o governo autocrático do Czar caiu, e debaixo de palmas dos aliados, pela vontade revolucionária do povo russo, num soberbo quebrar de cadeias tirânicas. A revolução, como se viu, de começo manietada pelos Lvovs, pelos Rodziankos, pelos Miliukovs, pelos Kerenskis, integrou-se finalmente nas mãos plebe, tomando uma orientação verdadeiramente popular e libertária — antiguerrista, antiburguesa, antiautoritária. Nada mais lógico, nem mais justo, pois, que se declarem anulados todos os convênios e tratados anteriormente concluídos entre governantes da Rússia e os governantes de outras nações. O governo do Czar era um governo de tirania, constituído fora da vontade, contra a vontade da massa da população, e por isso acabou sendo derrubado por essa massa; conseqüêntemente, todos os atos, todos os contratos firmados no tempo do Czar o foram pela vontade exclusiva da tirania dominante e contra a vontade do povo. Desde, pois, que a tirania foi vencida e o povo triunfou aqueles tais atos e contratos, conluios e entendimentos, por sua própria natureza, por seu próprio mal de origem ficaram desfeitos e anulados. É um ponto, este, deploravelmente olvidados pela imprensa, quando se refere, furiosa, à “traição ignóbil e abominável” feita pelos comissários do povo russo aos aliados... Aos governantes aliados, entenda-se!

As Utopias Deliciosas e Alegres...

“Foi de fato a revolução russa, com todos os seus trágicos sucessos, o acontecimento que mudou a face das coisas, começando a tornar possíveis programas, transformações sociais, momentos de independência política e sistemas de governos que já nos primeiros meses da guerra continuavam a ser considerados como utopias deliciosas e alegre.”

“Esqueciam-se os que assim pensavam que, igualmennte como utopias consideradas foram, no seu inicio, todas as grandes conquistas da humanidade e da civilização.”

Estas palavras — mirabile dictu— são rigorosamente transcritas de O País, da apreciação com que o famigerado órgão encabeçava as noticias de revolução na Áustria. (9) Apenas o redator de O País devia ter escrito: “esquecíamos, os que assim pensávamos”... menos esta restrição, aliás secundária, não há como louvar a agudeza de vistas e a rara franqueza do comentador. Porque tais conceitos destoam completamente dos em geral expendidos pela imprensa, quando nos chegam noticias de realização e concretização das antigas utopias socialistas e anarquistas... Antes da guerra, toda a imprensa graúda, e com ela seus sacerdotes maiores e menores e mais os seus devotos, riam-se (Às vezes, choravam também), com um superior e piedoso desdém, das idéias e dos ideais dos utopistas, dos sonhadores, dos visionários, dos aluarados, dos quimeristas... E quando não era o riso escarninho, sabemo-lo todos, substituía-o a pancadaria grossa das calúnias, das infâmias, dos insultos, dos doestos, das ameaças. Rebentada a guerra, o riso se estendeu abertamente até a gargalhada estrondosa: foram dados como falidos de vez, e sem mais remédio, o socialismo, o anarquismo, o internacionalismo, o antimilitarismo... Debalde os anarquistas e só os anarquistas (porque os próprios socialistas, com pouquíssimas exceções, e até mesmo porque alguns anarquistas, aderiram todos mais ou menos à guerra e ao Estado), gritaram e afirmaram a integridade de suas convicções e das suas esperanças; os apodos recrudesceram, e com os apodos sabicholas da letra de fôrma, a perseguição, a cadela, a morte... A guerra, porém, levada a excessos inauditos, acabou por provocar a revolução russa, revolução social e não apenas política e antidinástica, que fatalmente se estenderá pelo mundo Inteiro, arrasando tudo, transformando tudo, reconstruindo tudo sobre bases novas. Pois bem: neste momento, quando nos chegam da Rússia notícias de caráter libertário, de socialização da propriedade, de entrega de terras aos lavradores e das fábricas aos operários, de administração da produção e do consumo diretamente feita pelo proletariado de blusa e de farda, quando, numa palavra, se realizam e se concretizam as “utopias deliciosas e alegres”, outrora perigosas ou bonitas, mas sempre absolutamente impraticáveis, saem-se os grandes jornalistas com os olhos a saltarem fora das órbitas, a falarem em “espantosas’ transformações, em “loucuras” do populacho, em “bebedeiras” de liberdade!... Assim: antes da guerra, as nossas doutrinas eram muito “bonitas”, mas irrealizáveis; ao declarar-se a guerra, estavam todas “falidas’: e agora, no começo da revolução social, quando vão tendo aplicação, são “espantosas” e “absurdas”... Não admira, pois, que a burguesia esteja irremediavelmente perdida: essa incapacidade intelectual dos seus mentores e publicistas vale por um sintoma grave e definitivo.

Os Escribas da Razão

De todos os jornais cariocas e, com certeza, de todos os jornais do mundo, aquele que mais danada e azeda bílis tem expectorado contra os maximalistas é, sem dúvida, A Razão. Dirigido por um energúmeno cômico e notório, profeta e papa espírita, semilouco e pouco menos que analfabeto, esse jornal tem, no entanto e apesar disso, uma tal ou qual popularidade, ganha com campanhas simpáticas. A sua fobia antimaximalista é duplamente odiosa; em si mesma e pelo fato de se espalhar principalmente pela massa proletária, ludibriando-s Compreendo e até alegro-me com as injúrias, por exemplo, do Jornal do Comércio: está no papel de sua falsa posição conservadora. A Razão, porém, se apregoa como um órgão para o povo, para as classes operárias: mente e remente dobrado, por dentro e por fora, para a direita e para a esquerda... Eu quero reproduzir, para escarmento dos escribas que a redigem um dos seus muitos tópicos contra o maximalismo:

“Porque os tais maximalistas não são apenas uns loucos, incapazes de compreender a profunda inconveniência de, em uma hora como esta, provocar agitações políticas internas. (10) São também uns notáveis canalhas, apontados universalmente como agentes alemães e que, além disso, querem suprimir o direito de propriedade (11) na Rússia, entregando todas as terras à plebe inconsciente (12) que, levada por essa miragem de ficar rica em poucas horas, (13) esquece os altos deveres de defender a Pátria, já invadida e em parte dominada pelo estrangeiro. Esses infelizes são dirigidos e guiados por um monstro da ordem de Lênin que se prestou ao papel ignóbil de abrir as portas da Rússia ao mais perigoso de todos os imperialismos o que tem por centro-motor a casta dominante na Rússia (14) militar. Alimentados pelo dinheiro alemão, conduzidos por espiões e pan-germanistas de Berlim, os maximalistas, conseguindo por um golpe feliz da fortuna, apoderar-se da Rússia, (15) não trepidaram ante o crime, ante a infâmia descomunal de propor imediatamente a paz (16) em separado à Alemanha, traindo de modo revoltante os aliados, aos quais jurara o colosso moscovita (17) só agir de concerto com as nações da Entente”.

Este chorrilho ignominioso de mentiras, de intrigas, de calúnias, foi estampado na seção editorial Fatos e Informações do dia 16 de novembro de 1917, nove dias depois da caída de Kerenski (XII). É um documento que merece registro e de que nos devemos recordar para as necessárias satisfações, no dia em que a revolução, atravessando o oceano, irrompa justiceira por estas riquíssimas terras brasílicas de miseráveis e famintos...

Fora do texto

Durante o tempo de composição deste folheto, graves acontecimentos irromperam na Rússia, acarretando maiores complicações à revolução. A imprensa burguesa, que já se abrandava covardemente ante a força incontestável dos maximalistas, redobrou agora de violência e brutalidade, chegando a regozijar-se com a invasão alemã, taxando-a de “merecido castigo” e aos “traidores”, etc, etc. Mas enganam-se, redondamente, os magnatas da imprensa, supondo que a revolução russa é um motim qualquer, que se esmaga assim de uma hora para outra... A revolução russa marca o inicio da maior revolução social da história, e o militarismo alemão, invencível pelo militarismo aliado, há de por fim baquear, minado, inacreditavelmente pela força de desagregação revolucionária.

Não será talvez daqui a duas semanas: mas é inevitável. Os estados atuais, e com eles o Estado Alemão, modelo deles, não poderão jamais reconstituir-se, após este formidável desequilíbrio de valores produzido pela guerra...
12 de março

Notas do Autor
(1) Este comentário foi escrito a 25 de novembro de 1917. depois disso, como se tem visto, a opinião, pelo menos de alguns jornais, tem se modificado muito...
(2) Ouvres, pp. 58-9.
(3) A Luta, jornal burguês de Lisboa, estampou os seguintes fados biográficos sobre Lênin: “A autocracia, talvez, por instinto, descobriu um ‘inimigo terrível’ na pessoa de Lênin, quando ele não contavam mais de 17 anos de idade. Expulsou-o em 1867 (?) da Universidade de Kazan, com privação do direito de admissão em qualquer outra universidade pelo motivo de seu irmão ter sido executado como criminoso político. Lênin – cujo verdadeiro nome é Ulianov – consagrou-se muito cedo ao estudo do desenvolvimento econômico da Rússia, e muito jovem ainda, tornou-se um perigoso discípulo de Karl Marx. Escreveu muitos folhetos e livros; mas a sua principal obra é um grosso volume intitulado A Evolução do Capitalismo na Rússia, editado em 1881 com o pseudônimo de V. Iline, trabalho sobretudo acadêmico, cheio de números, todo ele apoiado em estatísticas. Mas a atividade de Lênin não se limitou à de economista sábio, e, atraído pelo movimento revolucionário, condenam-no a 4 anos de deportação na Sibéria. De regressos destas paragens, passou ao estrangeiro e fez-se chefe ativo da Social-democracia russa. (Transcrito pelo Cosmopolita, no. 15, de janeiro). (VII)
(4) No. 11, de novembro. Este comentário, escrito a 18, foi enviado, em forma de carta, a O Imparcial. Naturalmente, a ilustre redação jogou-o na cesta dos papéis inúteis.
(5) Jornais houve que tomavam os “maximalistas”como partidários de Máximo Gorki. Para o bestunto de tais jornalistas, “maximalistas”só podia ser derivado de “Máximo”... Gorki!
(6) Esta nota foi escrita a 9 de dezembro e enviada a todos os jornais. Somente o Jornal do Brasil fez-me o favor de a publicar na íntegra, na sua edição de 22 de dezembro.
(7) No. 15, de janeiro último.
(8) Por exemplo... Tenha-se em vista que a Rússia não é uma nação, mas um grupo de nações. Os seus cento e quarenta milhões de habitantes falam 80 linguas diferentes – D. A. Bollard, vers la Russie Libre, tradução francesa de Aristides Protele, Paris, 1908.
(9) Número de 25 de janeiro – já escrito este comentário, publicou O Imparcial (no. 2, de fevereiro) um artigo de fundo, “O Mundo Marcha”, em que há afirmações destas: “As notícias que nos chegam da Europa denunciam, no domínio das idéias (e principalmente dos fatos, digo eu), uma revolução como nunca se ferificou na história da humanidade”... “atualmente é a vontade dos povos que começa a prevalecer conmtra os planos de seus dirigentes”... “Na vasta Rússia, o trabalhador é já senhor absoluto”... Dum modo gteral, a atitude da imprensa tem mudado muito, de novembro para cá, e essa mudança acentua-se dia a dia, num sentido vai-não-vai favorável à revolução, desdizendo-se das crispantes imbecilidades e maldades anteriores. Que remédio!
(10) Os socialistas e anarquistas estão fartíssimos de saber que a verdade histórica mostra precisamente o contrário. Já em 1870, há meio século, Bakunin escrevia isto: “A história os prova que jamais as nações se sentiram tão poderosas no exterior como nos momentos de mais profundas agitações e perturbações no interior”...
(11) Ecco! ... O que os capitalistas proprietários de A Razão não podem admitir é a supressão do sagrado direito de propriedade... Naturalmente!
(12) Que a plebe agradeça a amabilidade e tome nota, para quanto tiver de dar o troco, no dia do ajuste de contas...
(13) Que profunda concepção sociológica!
(14) Isto não tem sentido. O escriba queria naturalmente dizer Alemanha e saiu Rússia... Estaria bêbado?
(15) Os maximalistas não se apoderaram de Rússia nenhuma. Eles são a grande maioria do povo russo, único senhor verdadeiro e natural da Rússia. Kerenski e o seu bando é que se tinham apoderado indevidamente da Rússia: o que os maximalistas fizeram foi nem mais nem menos que os “desapoderar”... E o fizeram muito bem feito.
(16) Eis o resultado da infâmia: A Alemanha e a Áustria desmanteladas pela revolução interna, provocada e incentivada pelos maximalistas. É necessário frisar bem isto; em três anos e meio, os aliados, com prosápias e fanfarronadas paroleiras, nada mais conseguiram senão reforçar cada vez mais o poder do kaiserismo. Claro: à voz de “esmagar a Alemanha”, todo o povo alemão cerrava fileiras em torno do governo, fazendo-o mais forte do que nunca. Ps maximalistas, em duas semanas, com suas propostas de paz e a sua propaganda revolucionária, abriram brecha na muralha militarista germânica, semearam a discórdia interna nos impérios centrais, provocaram a revolução. Jamais esteve tão abalado e tão fraco o poder do Kaiser, como depois que os maximalistas lhe propuseram a paz... Esses são os fatos positivos e concretos, que podem escapar às vistas curtas do foliculário de A Razão, mas ai estão na consciência de todos, comprovadíssimos.
(17) O “colosso moscovita” que jurou fidelidade aos aliados foi o “colosso” dominado e manietado por Nicolau II e depois por Kerenski, não o “colosso” liberto de agora. Este nada tem que ver com os contratos firmados pelos déspotas que o imprimiam.

Notas da Redação
(II) A propaganda burguesa, na época, acusava Lênin e os bolcheviques de serem financiados pela Alemanha, que estava em guerra contra a Inglaterra, França, EUA, Rússia e outras nações.
(III) Thomas Woodrow Wilson (1858-1924), presidente dos EUA entre 1913 a 1921.
(IV) Venceslau Brás (1868-1966), presidente do Brasil entre 1914-1918.
(V) Segundo o propagandista republicano Aristides Lobo, o povo assistiu “bestializado”, isto é, passivo e à margem, à proclamação da República, em 15 de novembro de 1889.
(VI) Mikhail A. Bakunin (1814-1876), revolucionário russo, teórico e líder do anarquismo.
(VII) Este texto, transcrito do jornal português A Luta, é um exemplo da desinformação que existia então sobre Lênin e os bolcheviques. Lênin foi expulso da Universidade de Kazan em 1887 (e não em 1867, como diz aquela nota), e O desenvolvimento do capitalismo na Rússia foi publicado em 1899, e não em 1881, como está dito ali.
(VIII) Maximalistas era outra forma, usada na época, para referir-se aos bolcheviques.
(IX) Conferência de paz entre a Alemanha e a Rússia, governada pelos bolcheviques, que foi concluída pelo tratados de paz assinados entre os dois países em 1918.
(X) David Lloyd George (1863-1945), primeiro ministro inglês entre 1916 a 1922.
(XI) Designação usada, nas décadas iniciais do século XX, para a aliança entre a Inglaterra, a França e a Rússia czarista.
(XII) Alexandre Kerenski (1881-1970), presidente do governo provisório russo, deposto pela Revolução de Outubro de 1917.

Publicado originalmente em Princípios, nº 92, out/nov 2007