Depois de duas semanas de celeuma e farsa no Congresso, a câmara legislativa (controlada pelos democratas) voltou esta segunda-feira a recusar qualquer cedência aos republicanos e, chegando à meia-noite sem consenso, ditou o «encerramento» do Governo à primeira hora de terça-feira.

À primeira vista, a estratégia dos republicanos, protagonizada pela acção espalhafatosa do tea-party, a sua facção da extrema-direita, parece simples: sem uma moratória ao Obamacare, a nova panaceia ao sistema de saúde, nenhum projecto democrata passa da câmara baixa do Congresso, controlada pelo Partido Republicano.

Em causa estava o orçamento federal para o próximo ano fiscal, que se estrearia dia 1 de Outubro. Como até essa altura não foi alcançado consenso entre os dois partidos, o governo dos EUA suspendeu todas as actividades «não essenciais», bloqueando indefinidamente o salário de quase um milhão de trabalhadores públicos. Mas os republicanos propõem-se a travar também o incremento ao tecto da dívida soberana, o que poderia acarretar consequências ainda mais nefastas.

O «encerramento do governo» (government shutdown) não é uma situação inédita nos EUA. Já teve lugar 17 vezes desde 1976, a última durante 21 dias no final 1995. Embora um «encerramento do governo» normalmente cause estragos controlados à economia, outros corolários mais duros podem estar na calha. Com o governo «encerrado», cria-se uma situação política perigosamente crispada, que em último caso poderia inviabilizar a ampliação do tecto da dívida antes de dia 17 de Outubro. Sem um acordo, os EUA cairiam nesse dia (pela primeira vez na história) numa posição de incumprimento da sua dívida soberana de 12 triliões de dólares, a maior dívida externa do mundo.

Por um lado este é um jogo que democratas e republicanos jogam há muito tempo: fabricam crises políticas que abrem caminhos «que ninguém queria» rumo a ataques contra os trabalhadores que antes eram impossíveis. Por outro lado, o torpor do Congresso e a radical incapacidade do governo de dar à crise qualquer rumo inteligível, anunciam monstruosas contradições no seio do grande capital.

Desde 2008 que o governo dos EUA destinou de mais de 700 mil milhões de dólares ao resgate dos maiores bancos e empresas. Ao mesmo tempo, impingia cortes draconianos aos subsídios de alimentação, saúde e reforma. Mas nem assim a mão invisível de Smith se moveu e a economia não exibiu os sinais de recuperação previstos. Então, em 2010, a Reserva Federal (controlada pela banca) pôs em marcha um plano de «Suavização Quantitativa»: um incentivo de três triliões de dólares à indústria automóvel e ao mercado imobiliário através da expansão das reservas dos grandes grupos económicos junto da Fed e da compra, em mercado aberto, de títulos hipotecários e obrigações do Tesouro. O plano era baixar as taxas de juro a longo prazo e, à medida que a economia apresentasse sinais de reconvalescença, abandonar o incentivo da «Suavização Quantitativa». Mas eis que, no passado dia 18 de Setembro, a Reserva Federal despejou um balde de água fria na cabeça dos economistas e astrólogos da classe dominante: A economia não tinha recuperado e o incentivo iria manter-se inalterado.

Capitalismo, crime (des)organizado

A decisão da Fed não foi apenas indício da fragilidade da economia americana. Também ajuda a explicar o recrudescimento da feroz obtusidade dos congressistas. Em 1892, Engels escrevia que ainda não havia nos EUA lugar para um terceiro partido porque as contradições internas entre republicanos e democratas era demasiado agudas. Hoje em dia, essas mesmas contradições entre capitalistas agravam-se ao ritmo da crise do seu próprio sistema.

Apesar dos triliões de dólares oferecidos aos senhores do capital como «incentivo», os capitalistas não se sentem seguros do lucro que podem obter das mercadorias que podem produzir. Agora, perante uma crise cíclica de super-produção, o capital pede uma estabilização da economia através da amputação de sectores inteiros do aparelho produtivo e da destruição da sua própria capacidade produtiva. O objectivo? Permitir ao capitalismo voltar a crescer. Absurdamente e apenas para regressar a novas e mais dolorosas crises.

Fonte: Jornal Avante