“Precisamos de nova solidariedade universal.”
Papa Francisco, Encíclica Laudato Si’, 20151

“Caubóis no espaço – Chauvinismo corrompe nos EUA a retórica sobre voos espaciais tripulados”. Sob esse título a revista Scientific American Brasil, edição de setembro, publica artigo fortemente crítico de Linda Billings, doutora em Comunicação, que vive e trabalha em Washington.  Linda começa dizendo:
“Na história dos voos espaciais tripulados dos EUA, uma retórica tipicamente norte-americana, baseado no ideário expansionista, tem dominado o discurso público e oficial. Tome-se como exemplo o Space Frontier Foundation, grupo sem fins lucrativos ‘dedicada à abertura das fronteiras do espaço à colonização o mais rapidamente possível… criando uma vida livre e próspera para cada geração com o uso dos recursos materiais e energéticos ilimitados do espaço’. Essa retórica revela uma ideologia sobre os voos orbitais – a crença no direito da nação de expandir sem limites, colonizar outras terras e explorar seus recursos.”
Para Linda, segundo essa ideologia, “o país precisa continuar sendo o ‘número um’ na comunidade mundial, desempenhando o papel de líder político, econômico, científico, tecnológico e moral, disseminando o capitalismo democrático”. A doutora em comunicação considera que “a metáfora da fronteira, com sua imagem associada ao pioneirismo na demarcação de terras, cultivo e domesticação, se agiganta dentro desse sistema de crenças”. E a seu ver, “a retórica da viagem espacial humana fortalece a concepção do espaço sideral como lugar livre com recursos ilimitados – uma fronteira espacial”. O lugar certo, portanto, para conquistar e explorar à exaustão.
Linda conta que ouviu “uma autoridade da Casa Branca defender a ideia de uma industrialização em larga escala da Lua como ‘uma visão de longo prazo fenomenalmente inspiradora’ para o programa espacial” (dos EUA, como se lê na versão inglesa do artigo).
Ela também menciona a Reunião de Cúpula sobre o Pioneirismo Espacial, realizada em Washington em fevereiro último, quando o Tea Party in Space defendeu a “aplicação dos princípios fundamentais de responsabilidade fiscal, governo limitado e mercados livres para a rápida e permanente expansão da civilização americana na fronteira espacial”. Civilização americana, não se deixa por menos.
Daí que Linda confessa: “Em meus muitos anos de crítica à ideologia conhecida desde o século 19 nos EUA como Destino Manifesto, pessoas de outros países me disseram reiteradas vezes como a retórica dessa crença os deixa desconcertados quando não ofendidos.”
O Google diz que “a doutrina do destino manifesto (em inglês, Manifest Destiny) expressa a crença de que o povo dos EUA é eleito por Deus para civilizar a América, e por isso o expansionismo americano é apenas o cumprimento da vontade Divina”.
E lembra a expressão “Be strong while having slaves” (“Seja forte tendo escravos”, em tradução livre), explicando que essa “frase de propaganda política do século XIX” era usada “para que pessoas de outros países vissem os EUA como o melhor país do mundo”. Assim, “o Destino Manifesto virou termo histórico padrão, usado como ideia estímulo à expansão territorial dos EUA pela América do Norte e pelo Oceano Pacífico”. Inúmeras populações indígenas foram exterminadas. Em 1803, os EUA duplicaram seu território ao comprar a Louisiana da França. Em 1846, avançaram mais ainda, adquirindo Oregon do Reino Unido. E a guerra com o México, de 1846 a 48, arrebatou metade do território mexicano e rendeu ao país os atuais estados da Califórnia, Nevada, Texas, Novo México, Utah e metade do Colorado – um quarto dos EUA hoje.
Do século 19 saltamos para o século 21. A retórica dominante sobretudo entre os líderes do Partido Republicano parece inspirada no Destino Manifesto, que há muito deixou de ter o apoio da grande maioria dos americanos. Isso é particularmente claro na área espacial, definida, não por acaso, de  “fronteira”, ou seja, espaço – território a ser conquistado. Resta saber como.
Será que por meio de projetos de lei, como o aprovado pela House of Representatives (Câmara de Representantes) do Congresso dos EUA em 21 de maio deste ano? Trata-se da Lei dos Asteroides, oficialmente batizada como Lei sobre Exploração e Uso  dos Recursos Espaciais (Space Resource Exploration ad Utilization Act). Se for também aprovada pelo Senado, ela poderá ser sancionada pela Casa Branca E aí ficará lavrado, como seu texto reza na parte sobre “direitos de propriedade”, que “quaisquer recursos de asteroide obtidos no espaço exterior são propriedade da entidade que obteve tais recursos, a quem deve ser conferido o título de propriedade sobre eles, de acordo com as normas da Lei Federal e as obrigações internacionais em vigor”.2
Ou seja, empresas americanas, graças a uma lei americana, poderão extrair recursos naturais da Lua, de asteroides e de qualquer outro corpo celeste, inclusive de planetas como Marte. O fato, se acontecer, será inédito na Era Espacial. Um país estará outorgando a si mesmo o direito de estabelecer o regime de propriedade sobre recursos naturais situados fora de sua jurisdição nacional, isto é, muito além de suas fronteiras nacionais reconhecidas pela comunidade internacional. 
O destino manifesto do século 19 não terá ido longe demais?
A resposta só pode estar naquilo que os países membros das Nações Unidas decidiram a respeito e muitos deles assinaram em baixo. Dois princípios são essenciais no caso.
1) “O espaço exterior, inclusive a Lua e demais corpos celestes, poderá ser explorado e utilizado por todos os Estados sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o direito internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes.” É o que determina o Artigo I, § 2º, do Tratado do Espaço de 1967, ainda hoje definido como o código maior das atividades espaciais, ratificado por 103 países, entre eles os EUA, assinado por 25 outros, e também considerado costume internacional porque os demais países nunca expressaram protestos ou restrições a seu respeito.
2) A seguir, garantindo o livre acesso de todos os países, o Artigo II estabelece que “o espaço exterior, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio”.
É óbvio que os recursos naturais da Lua, dos asteroides e de outros corpos celestes poderão um dia ser extraídos (de forma sustentável) e trazidos para a Terra. Só que esse novo destino manifesto terá que ser devidamente regulamentado por acordo entre todos os países e beneficiar a todos sem exceção.
  Essa exigência é decorrência lógica do Artigo I, § 1°, do Tratado do Espaço, que afirma com total clareza: “A exploração e uso do espaço exterior, incluindo a Lua e demais corpos
celestes, deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os países,
qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico,
e são incumbência de toda a humanidade.”
É a “cláusula do bem comum”, que encabeça o Tratado.
Não será o destino manifesto apropriado para o século 21?

* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Esse artigo expressa exclusivamente a opinião do autor.

Referências

1) Ediora Paulinas, 2015, p. 14.
2) Texto original em inglês: “Any asteroid resources obtained in outer space are the property of the entity that obtained such resources, which shall be entitled to all property rights thereto, consistent with applicable provisions of Federal law and existing international obligations.”