Você já deve ter a própria opinião sobre os comentários a respeito do politicamente correto de Jerry Seinfeld. Mas vamos pensar um pouco mais sobre o assunto. Alguns anos atrás, se eu te dissesse que você leria, escreveria ou discutiria algo que Seinfeld disse, você ia me perguntar quem foi o gênio da publicidade que pensou nisso. Estamos falando de Jerry Seinfeld. O cara é praticamente uma calça cáqui humana. Ele nunca foi politicamente engajado. Os comentários mais polêmicos dele são sobre aquelas coisas de plástico na ponta dos cadarços de sapato. Caramba, a última coisa que ele falou na infame entrevista para a rádio ESPN sobre a tempestade de merda em que ele está agora foi: “Falo dos assuntos que falo porque, por alguma razão, posso torná-los engraçados. Se não posso fazer graça, vocês não ouvem”.

Mas Jerry não está sozinho. Gigantes da comédia de todos os tipos, quando não estão fingindo que não viram as numerosas acusações de estupro contra seus colegas (sim, tô falando do Bill Cosby), investiram recentemente com força total contra “os garotos de hoje”, que são “muito politicamente corretos”. Para eles, isso está prejudicando e até matando a comédia. Esses ataques à comédia devem ser a pior coisa que já aconteceu, porque o mundo inteiro está falando disso agora, certo? Bom, nas palavras de Chris Rock para as multidões universitárias, “Lembro-me de conversar com George Carlin antes de ele morrer, e ele me disse exatamente a mesma coisa”.

George Carlin morreu quase dez anos atrás. Tenho pagado minhas contas com comédia stand-up nos últimos anos; então, tenho interesse nisso. Com os celulares capturando cada passo torto dos comediantes e artigos de opinião brotando de cada tuíte, seria 2015 o ano mais difícil para se ser um comediante?

Para ter outra perspectiva, falei com a Enciclopédia Humana da Comédia, Kliph Nesteroff. Ouvi suas histórias no podcast de Marc Maron sobre os comediantes da era da máfia, um pessoal que apanhava quase até a morte por zoar a pessoa errada; desde então, venho devorando seus artigos no blog da WFMU. Seu novo livro, The Comedians: Drunks, Thieves, Scoundrels and the History of Comedy (que você pode encomendar aqui), ilumina esse passado conturbado da comédia nos EUA.

Eu queria encontrar a primeira menção ao “politicamente correto” – ou sejam lá quais fossem as palavras pra isso na época – da história da comédia. Nesteroff rastreou isso de volta ao vaudeville, quando, “em vez de fazer imitações de celebridades, as pessoas faziam imitações de etnias. Às vezes, o cara fazendo piada de judeu era judeu, mas muitas vezes era só alguém com um nariz falso”. Ele apontou como Charlie Chaplin, que frequentemente é confundido com judeu, costumava fazer um personagem chamado Sam Cohen “com um nariz falso e um chapéu grande preto. Isso era muito comum na época e também era uma resposta ao aumento na imigração”.

Enquanto as culturas se misturavam nos EUA, esse tipo de coisa começou a não funcionar mais. Na Segunda Guerra Mundial, a comédia étnica foi se tornando menos aceitável; além disso, “depois da Segunda Guerra, Hitler tornou a ideia de ridicularizar raças algo de muito mau gosto”, explicou Nesteroff. “Era difícil ver alguém fazendo blackface depois de 1945. Mas havia pessoas que reagiam negativamente a esses retratos, e não ouvimos muito sobre isso. Geralmente, ouvimos as pessoas desculpando o blackface, dizendo que isso era ‘típico da época’, mas muita gente naquele tempo já reagia contra isso.”

Em seu livro, Nesteroff oferece o seguinte exemplo:

“Os comediantes de vaudeville Harry Hershfield e Peter Donald ganhavam a vida fazendo caricatura racial. Quando os ex-comediantes de vaudeville Groucho Marx e Walter Winchell se viram numa posição de poder anos depois, eles travaram uma batalha para apagar a caricatura racial do vaudeville. Eles usaram Hershfield e Donald como um exemplo indesejado de comédia. Hershfield e Donald se defenderam, dizendo à imprensa que caricatura racial ‘bem feita não é ofensiva’. Numa carta aberta à Variety, eles argumentaram que ‘os cidadãos mais usados e abusados na comédia são os escoceses e os suecos – que nunca reclamaram’. Groucho Marx respondeu com raiva: ‘Os Sandy McPhersons e Yonny Yohnsons não são uma minoria sujeita a opressão, restrição, segregação ou perseguição’.”

Ou seja, existia uma campanha organizada para se livrar da comédia étnica. Fiquei imaginando se havia exemplos anteriores de comediantes sendo “atacados” por pessoas que chamaríamos de “hipersensíveis” no público.

Nesteroff me contou que uma mulher chamada Belle Barth foi processada por dois membros de sua plateia no meio dos anos 60. “Eles disseram que o material dela os tinha corrompido moralmente e a processaram” em US$ 1,6 milhão. Hoje, quando um comediante diz algo ofensivo, isso acaba num editorial qualquer sobre como a piada “foi longe demais”; além disso, depois de uma semana, todo mundo já esqueceu. “Nesses casos”, comentou Nesteroff, voltando a Belle Barth, “pessoas eram presas, fichadas, multadas e arrastadas para os tribunais”.

Ele mencionou o exemplo famoso de Lenny Bruce, que enfrentou várias acusações de obscenidade por ter usado uma certa palavra de quatro letras. Por causa disso, ele foi imediatamente banido de várias cidades. Porém, segundo Nesteroff, “vários outros comediantes foram presos antes de Lenny Bruce. Houve um cara mais obscuro chamado George ‘Hoppy’ Hopkins. Ele foi preso por volta da mesma época, em 1961, em Anaheim. [Foi] uma prisão de cidadão, um cara do público ficou ofendido com o material dele… [O cara] chamou a polícia, e a polícia fichou Hoppy… ele passou duas noites na cadeia e teve de pagar uma multa por comportamento lascivo baseado na linguagem que usou”.

Lenny Bruce sendo preso. Foto via Wikimedia Commons.

Esses são exemplos de violação da liberdade de expressão. Hoje, muitos comediantes (e pessoas no geral) adoram proclamar “Oh, minha liberdade de expressão foi violada”, mas ninguém está sendo processado pelo espectador Ned Flanders do público.

“Ninguém está entrando para a lista proibida da comédia”, disse Nesteroff. “O show business é tão atomizado hoje que, mesmo se você entrar para alguma lista assim e, digamos, for banido das principais redes de televisão, muito fãs não assistem às grandes redes e ainda podem ser seu público num podcast ou num canal do YouTube. Então, mesmo se a plataforma de alguém é violada, a pessoa pode facilmente arranjar outra plataforma, e seu público vai segui-lo. Era muito mais difícil anos ou décadas atrás.”

E isso é um eufemismo. Aqui vão algumas histórias reais difíceis de acreditar do livro de Nesteroff:

– O cômico de burlesco Jimmy Savo foi preso por homens à paisana em 1942 depois que uma organização chamada Catholic Theater Movement reclamou de sua apresentação no New York Ambassador Theater. A queixa dizia que “o show viola a lei que proíbe indecência num palco”.

– Os comediantes Mickey Diamond e Jack High foram presos por obscenidade em 1946 na Filadélfia. Eles foram retirados do palco no Silver FleetInn e liberados sob fiança.

– Marty Wayne teve problemas com um juiz da Filadélfia, que disse que “os donos de boates devem fazer os comediantes apresentarem um roteiro antes de permitir que eles se apresentem”. Um oficial de prisão leu trechos da apresentação de Wayne, e o juiz McDevitt chamou o material de “uma afronta à moral pública”. Os detalhes não vieram à tona, mas, pela acusação de “entretenimento lascivo”, Wayne cumpriu seis meses de prisão.

– Em 1949, o comediante Lenny Ross foi preso em Atlantic City por acusações de “obscenidade”. O Departamento de Estado exigiu que Ross fosse “demitido e impedido de trabalhar” com base em condenações anteriores “por usar material e linguagem obscena em seu show, pelo que ele cumpriu pena de prisão”. Ross disse ao juiz: “Recorro à obscenidade porque os clientes exigem”.

A definição de lascívia era completamente arbitrária. O material ofensivo nunca foi mencionado nos jornais; assim, é difícil determinar o que ele realmente falou. No entanto, conhecendo as restrições da época, é pouco provável que isso fosse considerado ofensivo hoje. A Variety afirmou na época que, “sob essa atitude, qualquer apresentação que não seja de sapateado pode ser considerada ‘entretenimento lascivo'”.

Logo, parece que 2015 é a época ideal para alguém ser um comediante stand-up. O alvoroço politicamente correto citado por gente como Seinfeld não parece voltado para silenciar a liberdade de expressão: isso é mais um desejo fundamental das pessoas de verem comédia com que elas possam se identificar – mesmo se ela não for branca, masculina e hétero. Quem sabe que comédia feita agora será rechaçada em 90 anos com o mesmo desprezo que temos pelo blackface? A única coisa que sei, como comediante, é que prefiro lidar com a patrulha do politicamente correto do que com a polícia de verdade.

Tradução: Marina Schnoor para Vice