“Diante de um problema, prático ou teórico, mantenha o foco nos fatos e na verdade que eles expressam. Não se desvie em nome da sua própria verdade nem do que você acha seria melhor do seu jeito. Busque única e exclusivamente os fatos.”

Bertrand Russell

EM MAIS UM de seus recentes devaneios sobre a conjuntura brasileira, o Financial Times concluiu que o país “caiu em desgraça”, porém graças ao judiciário “nem tudo está perdido”.[1] Foi a deixa para que logo no dia seguinte sugestionados bacharéis investissem contra o decreto presidencial que regulamentou a Lei Anticorrupção (nº 12.846). “Mais do mesmo”, disse um deles, pois o crime do caixa 2 está previsto no código eleitoral desde 1965, e o confisco de bens na lei de improbidade administrativa desde 1992. Completou recomendando que “a cidadania peça socorro” para que o ministério público e o judiciário tornem letra morta a odiada lei.[2]

Contexto de frustração

Deixar que os códigos, o judiciário e o ministério público cuidem da corrupção? Certamente não da maneira habitual, até porque desde o ano 2000, data da ratificação pelo Brasil da Convenção Anticorrupção da OECD, até 2014 nada conseguiram além de ajuizar apenas um solitário processo. Nada surpreendente considerando que um juiz federal de primeira instância, que recebe o salário com maior poder de compra do mundo (exceção feita aos juízes canadenses), encerra apenas 1.350 processos por ano em média, ao passo que nos Estados Unidos um colega seu dá conta de onze mil e quatrocentos.

Privilégios, baixo rendimento e frustração talvez sejam os motivos para tentar resgatar a dignidade perdida açulando a opinião pública contra “inimigos comuns”. Como o governo central e a sua “firme determinação” de usar a lei anticorrupção para “proteger as empresas que com ele contratam”. Ou a Controladoria Geral da União, cuja “única finalidade” seria acobertar os “crimes praticados pelo partido no poder”. Delírios que não têm nada a ver, no entanto, com o que pensa e faz quem entende de combate e prevenção de corrupção. Por exemplo, a Comissão de Valores Mobiliários e o Ministério da Justiça dos Estados Unidos, que aclamam o compromisso das autoridades brasileiras e consideram a Lei da Empresa Limpa “mais abrangente” que a própria legislação norte-americana. Louvam, nesse sentido, o esforço multijurisdicional do governo central e da CGU em cooperar no treinamento em técnicas de segurança anticorrupção.[3]

Conceitos inovadores e as redes da corrupção

Desse esforço surgiram conceitos inovadores e utilizados globalmente, como programa de integridade e acordo de leniência, urdidos (segundo um discurso pueril) para “anistiar empreiteiras”, livrá-las do pagamento de multas e da “mais que necessária proibição de a empresa ser contratada por qualquer órgão público”. Disparates de quem ouviu o galo cantar e não percebeu, por exemplo, que para firmar acordo de leniência a empresa se obriga a identificar práticas corruptas, oferecer evidências e os nomes dos envolvidos. Cabe a ela ademais tomar a iniciativa de cooperar com as autoridades, assumir responsabilidade pelas práticas corruptas, facilitar as investigações, e garantir a restituição dos danos causados.

Mais especificamente, a empresa deve (1) entender a legislação e aceitar suas determinações; (2) promover diligências e investigar as relações de negócios envolvendo indivíduos e entidades; (3) divulgar de forma consistente mensagens “de cima para baixo” sobre como criar e manter um ambiente empresarial livre de práticas corruptas; (4) criar programa integral de políticas e procedimentos anticorrupção; (5) avaliar regularmente o regime de conformidade a que se obrigou, de modo a assimilar as mudanças e atualizar o regime; (6) atender a todo tipo de denúncia ou alegação de corrupção, investigando pronta e integralmente o que costuma ser desprezado e não raro redunda em dispensa e até mesmo em ameaça, agressão e morte.

As inovações têm razão de ser porque corrupção não é, como geralmente se acredita, “pecado de todos nós”, não ocorre somente quando a ocasião propícia se faz presente nem se restringe a “bandas podres” de “maus funcionários” que prevaricam apenas se provocados ou seduzidos por cidadãos mal-intencionados. Corrupção é conduta “organizada”, hierárquica e autoritária. Permeia a polícia, o judiciário e o ministério público, envolve políticos, partidos, empresas, intermediários e a própria população. Forma redes em que superiores dizem aos subordinados como e quando cometer abusos e empregar práticas corruptas, estabelecendo quotas individuais de participação em transações com dinheiro, informações, proteção política, decisões favoráveis, apoio e consentimento.

Caso evidente da jovem recém-aprovada em concurso público e nomeada para atuar em uma concorrida repartição tributária. Ainda exultando com suas realizações pessoais, ao receber o primeiro holerite verificou que na conta havia um salário e meio a mais. Atônita, perguntou ao chefe o que poderia ter acontecido e como fazer para devolver o dinheiro. Paternalmente, o chefe lhe diz que sossegasse pois o dinheiro era todo seu. Contudo, para continuar recebendo tanto ou até mais deveria executar determinadas “instruções superiores”. Só não disse, mas a moça logo ficou sabendo, que deixar de executar as tais ordens acarretaria não receber depósitos extras, como também transferência para repartições distantes ou mesmo ser obrigado a pedir exoneração.[4]

Anticorrupção e justiça restaurativa

Programa de integridade e acordo de leniência são conceitos que denotam a abordagem da Justiça Restaurativa, cujos princípios e métodos introduzi no Brasil e outros países da América Latina no final da década de 90. Constituem aprimoradas implicações do processo de avaliação do progresso da legislação anticorrupção promovido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico[5], que no Brasil utilizou como referência um relatório que fiz para o Ministério da Justiça dos Estados Unidos.[6] A partir daí entrou em cena a proverbial incúria de governos que depreciaram os grandes consensos nacionais de transição à democracia e atrasaram a implementação de efetivas medidas anticorrupção, mudando de atitude apenas sob a pressão dos protestos de rua de 2013 e 2015. O resultado dessa demora foi a contaminação do debate sobre os aspectos fundamentais da Lei da Empresa Limpa e do decreto 8.420, ora em risco de não serem adequadamente implementados por conta de um clima de intolerância determinado por factoides e casuísmos punitivos (retributivos).

                                                        Modos de Justiça [7]

A justiça restaurativa, mais que o enfoque convencional, proporciona boas condições para a incorporação de novos conteúdos ao devido processo legal. Desgraçadamente tem sido acionada de modo muito infrequente, em circunstâncias de alcance muito limitado, como se fosse medida “quarto do pânico”, derradeira opção depois que nada mais deu certo.[8] Não consegue, portanto, “lograr efetiva penetração cultural que ultrapassasse a mera funcionalidade institucional na solução de conflitos”, nem colocar “em discussão as tradicionais relações verticais de autoridade e poder”[9], apanágio de um período em que o Estado de Direito perde terreno para as elites litigantes do “Estado dos Bacharéis”, sua legislação complexa, opressiva, “inimiga dos humildes, amiga do bolso cheio, do compadrio”, e suas ações de altíssima monta.[10]

A alternativa é a ‘Justiça Dual’, modelo em duas vias que incorpora ambos os modos operando independentemente sob os mesmos princípios gerais do Direito, mas com “pontes” que permitem transitar para o “lado de lá” sempre que necessário. Modelo que exige – considerando que a justiça restaurativa “funciona diferentemente para diferentes tipos de pessoas e organizações” – práticas legais baseadas cada vez mais em evidências, estabelecendo “o que funciona melhor para quem”, quando usar e não usar os procedimentos da “outra justiça”.[11] Nesse particular, a melhor forma de avançar e consolidar a cooperação entre os dois modos seria, tal como ocorre em processos de integração econômica internacional, aproveitar projetos em fases e setores de particular interesse, como o combate e prevenção de corrupção.[12]

Atores indesejados

“O MP quer participar do acordo de leniência. Não deve”.[13]

Basicamente, o que impede o desenvolvimento de uma política de combate e prevenção de corrupção em nosso país é o sentimento carola de que o judiciário é “plenamente capaz de resolver dúvidas e garantir a razoabilidade na incidência da lei”.[14] No mundo real, por outro lado, antes do decreto regulador determinar que só a CGU tem competência exclusiva para firmar acordos, as empresas se perguntavam se (a) dependendo da jurisdição, do “órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”, teriam de fazer vários acordos com cada uma dessas “autoridade máximas” e implementar diferentes programas; (b) teriam de aceitar o estipulado por outra jurisdição; e (c) como iriam gerenciar os riscos se caso uma jurisdição aceitasse e outra não.[15] Isso não bastasse, tinham dúvidas quanto a admitir culpa e correr o risco de levar água para o moinho de órgãos inoportunos (e.g., MP, TCU ou Receita Federal).

Depois do decreto, no Estado dos Bacharéis ainda se questiona a aplicabilidade dos acordos de leniência, previstos nos ordenamentos de muitos países, mas transplantados “sem as devidas adaptações” para o nosso. Como se apenas no Brasil fosse tipificada a formação de cartéis (prefixação de preços) como ilícito administrativo e penal. Ou se apenas aqui empresários “de um mesmo ramo se reúnem, nem que for só para se divertir, sem que o encontro não degenere em conspiração contra o interesse público ou em acordo de aumento preços”.[16] O ponto central da questão reside na noção de ‘interesse público’ e na indesejável participação de determinadas instituições do sistema de Justiça.

Os interesses do Estado e os interesses dos indivíduos não são antagônicos. Contudo, a noção jurídica de ‘interesse público’ permanece ambígua, difícil de ser percebida e classificada, abrangendo disposições de juízo que, sem serem propriamente públicas, não são individuais nem grupais, apesar de compartilhadas no tocante, por exemplo, a questões ambientais, à qualidade ou preço de uma mercadoria, ou mesmo a práticas corruptas que o todo social absorve aparentemente sem danos e até com vantagens para todos.[17]

Daí a artificiosa noção de interesses “transindividuais” de grupo ou comunidade dos quais os indivíduos todavia não podem dispor, forma de afirmar interesses confirmando “o viés paternalista da filosofia que rege o ordenamento jurídico, especificamente o brasileiro”,[18] legitimando a tutela estatal sobre a sociedade civil, estabelecendo a sua estrita dependência em relação a outros poderes, sobretudo ao sistema de justiça. Postura característica do imperioso arranjo institucional brasileiro e seu modo de “dissimular autoritarismo com proteção”, de “negar ao indivíduo — não raro com violência — o pleno gozo de seus direitos, a liberdade e a oportunidade de fazer suas próprias escolhas com um mínimo de restrições”. Vícios que remontam ao colonialismo e ao protagonismo de promotores de justiça “letrados e bem entendidos para saber espertar e alegar as causas e razões” na defesa dos interesses da Coroa Portuguesa.

Mesmo finda a opressão colonial, as atribuições dos “procuradores dos nossos feitos” continuaram expandindo, a toda brida em tempos de ditadura, até os dias de hoje, curiosamente sem contestação política e jurídica, do tipo por exemplo enfrentado pelo judiciário no processo de criação do Conselho Nacional de Justiça. Nefasta tendência histórica, burocrática, de conceder preliminarmente ao Ministério Público o privilégio de interferir sempre que o interesse “público” estiver envolvido, não raro com dedicação e profissionalismo da parte dos promotores, mas via de regra no interesse precípuo da própria instituição, sem dar satisfação à sociedade civil e condenado suas instituições ao fracasso por incapacidade de desenvolver de forma autônoma a sua representatividade.[19]

Em sentido diferente, o compromisso com a transparência, os conceitos surgidos na luta anticorrupção iniciada há quase duas décadas e a correta aplicação da Lei da Empresa Limpa, descortinam horizontes novos e auspiciosos, totalmente diversos da perspectiva a que o nosso sistema de justiça se acostumou, condicionada por um código de processo retrógrado, voltado contra quem “não é nem jamais será como a gente”, relegado à condição de irremediável e perigosa alteridade, transformado em objeto de estratégias vingativas.

Notas e Referências:

[1] Financial Times (2015). Brazil’s fall from grace of its own making (22 de março).

[2] Modesto Carvalhosa (2015). O patético pacote anticorrupção. O Estado de S. Paulo (23 de março).

[3] Jeremy B. Zucker (2014). BRIC by BRIC: Anti-corruption reforms in the BRIC countries. The Corporate Counselor, 28 (11).

[4] Pedro Scuro Neto (2014). Comunismo, corrupção e a “cervejinha do guarda”. Fundação Maurício Grabois; Jornal do Brasil (2015). Operação Zelotes: um grande escândalo, uma pequena repercussão (7 de abril).

[5] Brazil: Phase 1. Review of implementation of the Convention and 1997 Recommendation. OECD/Directorate for Financial and Enterprise Affairs, 2004

[6] World Factbook of Criminal Justice Systems – Brazil. U. S. Department of Justice/Bureau of Justice Statistics, 2002

[7] Cf. Pedro Scuro Neto (2005). Por uma justiça restaurativa real e possível. Revista da AJURIS, 32 (99)

[8] Cf. Pedro Scuro Neto (2008). O enigma da esfinge. Uma década de justiça restaurativa no Brasil. Revista IOB de Direito Penal e Processo Penal, 1.

[9] K. B. Sposato et al. (2006). Sistematização e avaliação de experiências de justiça restaurativa. Relatório ILANUD, pp. 19-20.

[10] Cf. Niall Ferguson (2013). The great degeneration: how institutions decay and economies die. Penguin Press.

[11] Cf. Lawrence W. Sherman e Heather Strang (2007). Restorative justice: the evidence; disponível em www.smith-institute.org.uk

[12] Daniel W. Van Ness e K. H. Strong (2002). Restoring justice. Anderson, p. 226.

[13] Gilson Dipp, ex-ministro do STJ, citado em Beatriz Bulla (2015). Decreto da presidência “extrapola” Lei Anticorrupção. O Estado de S. Paulo (24 de março).

[14] Pierpaolo Bottini e Igor Tamasauskas (2014). Impressões sobre a Lei Anticorrupção. Folha de S. Paulo (29 Jan.).

[15]  Cf. Carlos H. da Silva Ayres (2014). An extraordinary number of enforcement authorities under Brazil’s new anti-bribery law and the potential negative consequences. FCPAmericas; Matteson Elis (2014). The problem with leniency agreements in Brazil. Corporate Compliance Insights.

[16] Adam Smith (1776). The Wealth of Nations (tomo IV, cap. VIII, § 27). W. Strahan and T. Cadell, Londres.

[17] Richard Posner (2005). Economics of corruption. The Becker-Posner Blog; Benedito Lacerda e Herivelto Martins (1949). A caixinha do Adhemar (https://www.youtube.com/watch?v=o4V9FwWy4_E).

[18] Pedro Scuro Neto (2010). Sociologia Geral e Jurídica. Saraiva

[19] Oscar Vilhena Vieira (2008). Public interest law. A Brazilian perspective. UCLA Journal of International Law & Foreign Affairs, 224.

Pedro Scuro Neto é Sociólogo, MSocSc (Praga) e PhD (Leeds) sob a orientação de Zygmunt Bauman. Revisor do programa de segurança e defesa da Transparência Internacional (Londres), membro do conselho de diretores da Sociedade Internacional de Criminologia (Paris). Introduziu no Brasil a justiça restaurativa, implantou e foi o primeiro diretor do centro de pesquisas da Escola Superior da Magistratura (RS).

Publicado em Empório do Direito