A violência é um velho diabo. Ela representa o cerne essencial da relação-capital ou relação de Poder. A violência é o próprio modo de ser do capital como sociometabolismo estranhado, onde propriedade privada – divisão hierárquica do trabalho são determinações reflexivas. O capital engendra e engendrou historicamente um rol de violências (no plural) que compõem o quadro das opressões cotidianas e dominação social de classe. O assédio moral é um modo de violência do capital que possui características próprias que iremos tentar desvelar neste pequeno artigo.

A violência desde as priscas eras da história da humanidade caracterizou a relação-capital. Mas o termo “assédio moral” e suas múltiplas configurações contingentes é bastante recente. Por exemplo, o assédio moral no trabalho é um modo de violência que não se confunde meramente com o despotismo fabril salientado por Marx no século XIX. Talvez possamos dizer que o assédio moral no trabalho seja um novo modo de despotismo laboral que possui características muito peculiares que não se confundem com a violência explicita, pura e simples.

O que o conceito de “assédio moral” no trabalho nos diz, além daquilo que já sabíamos, com respeito às violências explícitas, próprias da relação-capital, que ocorrem nos locais de trabalho em nossos dias? Como o assédio moral se distingue, por exemplo, do dano moral no trabalho, ou mesmo das múltiplas violências explicitas que permeiam a cotidianidade alienada da relação salarial há séculos?

Perguntemos: qual a novidade que o conceito de “assédio moral” – no trabalho ou na vida cotidiana – anuncia no século XXI?

Primeiro, podemos dizer que o conceito de “assédio moral” desvela, em si e para si, que o capital é hoje, mais do que nunca, e acima de tudo, uma relação social de fundo moral. Por isso, o adjetivo “moral” possui um sentido profundo ao qualificar o substantivo “assédio”. Não se trata de simples assédio, mas sim assédio moral. Precisamos entender, com mais perspicácia, o que é “assédio” e por que ele é “moral”. A violência do capital assume hoje um caráter de violência implícita, isto é, ela é sutil e silenciosa, envolvente e perversa. Eis o sentido profundo do assédio moral – na vida cotidiana ou no trabalho. Na verdade, no plano da aparência, a nova violência do capital assedia, mas não violenta. Um assédio moral não é meramente um dano (ou ofensa) moral, ou mesmo uma agressão peremptória contra a pessoa-humana-que-trabalha. Ameaçar, constranger, impor, reprimir homens e mulheres que trabalham, não se configuram propriamente como assédio moral. Tudo isso representa violências explícitas do capital, mas não são, a rigor, assédio moral propriamente dito. Por exemplo, escravos não sofrem assédio moral, mas apenas trabalhadores assalariados, que são trabalhadores livres que serem explorados no mercado de trabalho e que hoje são sujeitos de direitos. A liberdade na ordem burguesa, a própria contradição em termos, é capaz de nos iludir sobre a nossa condição existencial. Apenas homens livres são capazes de serem assediados moralmente, pois eles acreditam que são livres e donos de si, quando não o são efetivamente.

Segundo, o assédio moral como novo modo de ser da violência do capital como modo estranhado de controle sociometabolico, adquire um caráter efetivamente real. Trata-se de uma violência simbólica que desmonta – por dentro – a pessoa-humana-que-trabalha como subjetividade complexa. O desmonte “violento” da personalidade humana é, efetivamente, no caso do assédio moral, um desmonte ideológico que corrói o núcleo moral da genericidade humana ideológico, tendo em vista que é operado por meio de valores-fetiches (o que explica seu caráter sutil e envolvente). O sujeito moral é intimado a consentir com sua própria degradação humano-genérica. Portanto, podemos dizer que o assédio moral é o veículo da “captura” da subjetividade do trabalho. “Captura” da subjetividade (“captura” entre aspas) não significa “seqüestro” da subjetividade, pois o termo “seqüestro” sugere violência explicita e peremptória. Por isso, podemos dizer que, efetivamente, nas novas formas de gestão de cariz toyotista não existe seqüestro, mas sim “captura”, muito embora, articulada com a “captura” possa existir formas despóticas – ou explicitamente violenta – do capital que configuram um “sequestro” ou manipulação insidiosa. Um sequestro não poderia ser sutil, envolvente e consentido, como ocorre com a “captura”, que implica resistência e coerções envolventes.

Assim, a nova violência do capital – o assédio moral que permeia o mundo do trabalho e a totalidade social, é deveras sutil, envolvente e silenciosa. Como “captura” da subjetividade ela é uma escolha moral do sujeito que trabalha, assediado pelos valores-fetiches do capital. Por ser livre, o sujeito que trabalha na ordem burguesa, escolhe moralmente ser escravo. Ao dizermos “escolha moral” significa que o sujeito assediado é o sujeito que colabora “voluntariamente” (entre aspas porque o “voluntariado” é expressão de consentimento espúrio, agenciado pelo medo e operado pelo inconsciente estendido – no nosso livro Trabalho e subjetividade (Editorial Boitempo, 2011) discutimos os mecanismos psicológicos que operam a “captura” da subjetividade).

Existe uma violência condensada na prática do assédio moral, mas o modo de ser (a violência sutil e perversa), e o sujeito-objeto da sua efetividade (personalidades humanas complexas), são radicalmente outros. Nesse caso, no caso do assédio moral, a violência implícita oculta-se como violência propriamente dita, assumindo ideologicamente um caráter de consentimento perverso (auto-alienação do homem que trabalha). O caráter cínico e farsesco da ordem burguesa hipertardia propicia a violência implícita no discurso da Exploração auto-consentida. No assédio moral, a própria pessoa escolhe sua desefetivação humano-genérica (o tema da “servidão voluntária”, de La Boetie, que emergiu na época da “acumulação primitiva” do capital é reposto, deste modo, nas condições históricas do capitalismo global, que repõem a acumulação por espoliação, como diria David Harvey).

Enfim, o assédio moral é um modo específico de manipulação: a manipulação reflexiva (o que significa que, o adjetivo “reflexiva” qualifica radicalmente o substantivo, do mesmo modo que “moral” qualificou o substantivo “assédio”). A reflexividade significa ação ideológica sobre o Outro-como-proximo, visando convence-lo e induzi-lo a colaborar, aceitar e assumir os valores do capital. A vida cotidiana e os novos locais de trabalho reestruturado estão permeados de valores-fetiches –formas ideológicas – operados por múltiplos veículos de comunicação (livros, artigos em jornais e revistas, imagens-fetiches que permeiam telas, cursos e treinamentos de fundo moral, discursos, filmes, etc). Essa prática reflexiva (e comunicativa) – densamente ideológica – configura-se como sendo um modo de ser do “assédio moral”. Na verdade, nas condições do capitalismo manipulatório onde viceja o espírito do toyotismo, o assédio moral tornou-se o próprio metabolismo social. A violência implícita permeia não apenas locais de trabalho, mas relações sociais cotidianas, onde o outro-como-próximo torna-se apenas meio para nossas satisfações egoístas.

No plano objetivo, a adoção dos valores-fetiches que compõem o universo ideológico da ordem burguesa, degradam a personalidade humana. Por exemplo, a linguagem oriunda do discurso gerencialista degrada o núcleo moral da genericidade humana. Na era da barbárie social, podemos nos desumanizar pela linguagem. Os valores-fetiches do capital que permeiam, por exemplo, o discurso do Pensamento Único neoliberal, disseminado pela mídia hegemônica, revolvem a subjetividade complexa das personalidades humanas hoje. Este é o caráter da violência do capital, que na dimensão jurídico-institucional, pode ser contestada como ilicitude na medida em que forem elaboradas provas materiais que comprovem o nexo primordial entre, por exemplo, o discurso da gestão – que permeia a vida cotidiana e os locais do trabalho reestruturados – e a degradação da pessoa humana que trabalha, manifestada pelas pressões cotidianas – sutis, envolvente e silenciosa – pelo cumprimento de metas abusivas, no dia-a-dia do labor alienado – pressões verticais e horizontais que, pouco a pouco, conduz personalidades humanas mais sensíveis, à depressão e adoecimentos laborais como expressão das múltiplas formas de desefetivação humano-genérica.

É claro que a luta juridico-politica (e sindical) é uma das frentes candentes de luta contra o assédio moral no trabalho. Mas como o assédio moral é um recurso ideológico, a ação efetiva de luta deve adquirir também predominantemente um caráter ideológico. O assédio moral é a nova violência do capital na era do poder da ideologia. Deste modo, a proliferação do assédio moral em nossos dias decorre, em parte, da renuncia da esquerda em geral, principalmente da esquerda social-democrata, em levar a cabo a luta ideológica contra o capital. Aceitamos que o Verbo neoliberal adquirisse corpo e alma, assediando moralmente as pessoas que trabalham, subvertendo referenciais ético-morais de resistência e luta contra a lógica do mercado. Por exemplo, é assédio moral atribuir à pessoa que trabalha a denominação de “colaboradores” ao invés de “trabalhadores” ou disseminar por meio de perspectivas epistemológicas nas universidades, que a categoria trabalho não constitui mais categoria ontológica fundante e fundamental do ser social. Enfim, a corrosão do universo locucional da classe é o modo de violência sociometabólica do capital na era da manipulação reflexa.

Podemos dizer que o assédio moral configura-se como uma ação predominantemente ideológica que opera, em si e para si, o fenômeno do estranhamento que, na perspectiva lukacsiana, significa a degradação da pessoa humana que trabalha (vide capítulo “O estranhamento”, volume II, do livro Para uma ontologia do ser social, de Georg Lukács, Editorial Boitempo, 2014). Na era do capitalismo global manipula-se reflexivamente, pessoas humanas mais desenvolvidas em suas relações sociais, personalidades humanas complexas, portanto, mais ricas, prenhes de possibilidades de desenvolvimento omnilateral (o que distingue as individualidades pessoais de classe dos séculos passados). O capital como processo de desenvolvimento civilizatório, expande e reduz, ao mesmo tempo, as possibilidades de desenvolvimento humano. Esta é a “contradição viva” que cria subjetividades complexas e, ao mesmo tempo, as reduz no plano das relações humanas instrumentalizadas. Por isso, o assédio moral é sintoma do processo sistemático – e não meramente casual ou contingente – que reduz a genericidade humana. O assédio moral no trabalho e na vida cotidiana é um traço da crise de civilização intrínseca à própria lógica do capital global. Enfim, vivemos na civilização do assédio moral.

O assédio moral como fenômeno social – e que se diferencia de outras formas de violências do capital, apesar de estar articuladas com elas (como o dano moral, discriminação racial e sexual, despotismo laboral, etc) – diz respeito, deste modo, a um sistema social e a um processo de subjetivação. Por exemplo, fala-se hoje em assédio moral organizacional. Entretanto, o “organizacional” apenas compõem uma totalidade social, cujo sociometabolismo incorporou práticas de assédio moral. Pode-se falar assim, com maior precisão conceitual, em assedio moral sistêmico, que se confunde com a própria vigência da ideologia dominante do capital. Enfim, o assedio moral sistêmico é o eufemismo para o poder da ideologia do capital. O discurso da Ordem interpela – e assedia – cada vez mais as pessoas que trabalham como sujeitos morais. É claro que o capital atua nos locais de trabalho reestruturados, moldando a gestão e a nova organização do trabalho. Mas é importante perceber o assédio moral como sendo elemento compositivo intrínseco do modo de controle estranhado do capital global, articulando, mais do que nunca, vida e trabalho. Ele pode manifestar-se com vigor nos locais de trabalho – afinal, como diria Antonio Gramsci, a hegemonia nasce da fábrica. Entretanto, constitui-se hoje todo um processo de subjetivação baseado no assedio moral com suas características perversas e manipulatórias dos sujeitos humanos.

Tem havido hoje uma ampla discussão na sociedade sobre assédio moral – principalmente assédio moral no trabalho. Na verdade, trata-se de algo sintomático: ao constituir-se o conceito de “assédio moral”, explicita-se o reconhecimento politico e social da nova violência do capital no plano categorial. É a nominação da nova miséria humana silenciosa e sutil que expõe o espectro da barbárie social. A nova violência do capital é, ao mesmo tempo, um velho diabo e um novo demônio que explicita, como traço orgânico da nova ordem do capital global, o fenômeno do estranhamento na acepção lukacsiana. Como dissemos acima, o assédio moral opera em si e para si, o fenômeno do estranhamento que explicita uma densa e profunda contradição social: o desenvolvimento das capacidades humanas por conta do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, não se traduz em desenvolvimento pleno da personalidade humana. Pelo contrário, o sistema social do capital, incubador de personalidades humanas perversas, provoca o desmonte e degradação de personalidades humanas complexas. O assédio moral como metabolismo social e processo de subjetivação estranhada cria personalidades humanas perversas que operam no trabalho e na vida cotidiana a degradação da pessoa que trabalha. O assédio moral contém a lógica da reificação e instrumentalização do Outro-como-próximo que se interverte em mero objeto de manipulação dos desejos egoístas. Trata-se de uma forma sofisticada – sutil, perversa e envolvente – de relações humanas alienadas que permeiam a sociedade burguesa.

É claro que a lógica da instrumentalização do outro é a lógica da produção capitalista em si e para si, desde sua constituição originaria. O capitalismo nasce reificando o trabalho vivo, transformando-o em força de trabalho como mercadoria. Mas o que diferencia o assédio moral das formas de violência primitiva, exposta e brutal, que caracteriza a exploração/espoliação, opressão e dominação do capital desde as priscas eras históricas até os dias de hoje, é seu caráter de instrumentalização moral, sutil, envolvente e consentida. Enfim, instrumentalização perversa onde o eu torna-se carrasco de si mesmo (a auto-alienação dos empreendedores) e, ao mesmo tempo, sujeito de fruição de sua própria desefetivação humano-genérica.

A vigência do “assédio moral” como a forma dominante da violência do capital no trabalho e na vida cotidiana é, de certo modo, a proclamação daquilo que poderíamos denominar a “vigência de Sade”. No alvorecer da ordem burguesa, nos fins do século XVIII, o literato libertino Marques de Sade explicitou em seus romances, as consequências (des)humanas da nova lógica do liberalismo clássico imbuído do individualismo possessivo. Na ótica sadeana, o liberalismo clássico levado às últimas conseqüências, constituiria o outro meramente como um meio para minha fruição perversa. É de seu nome que surge o termo “sadismo”, que define a perversão sexual de ter prazer na dor física ou moral do parceiro ou parceiros.

No filme Saló ou os 120 dias de Sodoma, de 1975, inspirado na obra homônima do Marques de Sade, adaptado para o século XX, o cineasta visionário Pier Paolo Pasolini, vislumbrou a miséria da sociabilidade instrumental do capitalismo global. No filme, na Itália, durante o outono europeu de 1944, um grupo de jovens são selecionados por quatro dirigentes fascistas (um presidente de um banco, que representa o poder econômico; um bispo, representando a igreja; um duque, que representa a nobreza; e um juiz, que representa o poder judicial) para serem o objeto de uma série de torturas e experimentos sádicos, ao longo de 120 dias.

A razão liberal, tal como a razão iluminista denunciada por Adorno e Horkheimer no livro Dialética do esclarecimento, continha sua própria miséria histórica: a degradação do Outro-como-próximo. Na verdade, a lógica do liberalismo clássico – a dominação do Outro como meio para a Exploração e produção da riqueza abstrata; e a lógica do Iluminismo – a dominação da Natureza como símbolo do Progresso e desenvolvimento da Tecnologia – compunham a lógica sistêmica da razão instrumental que caracterizaria o capitalismo histórico.

Na mesma época histórica, o filósofo Immanuel Kant, aterrorizado pelas consequências éticas da nova racionalidade instrumental do liberalismo burguês, buscou em vão, fundamentar sua ética do imperativo categórico, no corolário de que nenhum homem pode ser meio para o outro. Para ele, a moralidade pode resumir-se num princípio fundamental – o “imperativo categórico” – a partir do qual se derivam todos os nossos deveres e obrigações. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) exprimiu-o desta forma: “Age apenas segundo aquela máxima que possas ao mesmo tempo desejar que se torne lei universal”. No entanto, Kant deu igualmente outra formulação do imperativo categórico. Mais adiante, na mesma obra, afirmou que se pode considerar que o princípio moral essencial afirma o seguinte: “Age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca apenas como um meio”. Portanto, pare ele a moralidade exige que tratemos as pessoas “sempre como um fim e nunca apenas como um meio”. Kant foi o primeiro a reconhecer que ao homem não se pode atribuir valor (preço), devendo ser considerado como um fim em si mesmo e em função da sua autonomia enquanto ser racional (o contrário da lógica do capital que se constituía historicamente naquela época).

Entretanto, a perspectiva do Marques de Sade foi deveras mais realista. A nova civilização do capital, que nascia efusivamente no século XVIII, deixava claro que a vigência do processo do trabalho como processo de valorização, implicava que o homem seria, não apenas meio para uma finalidade estranhada (a produção do valor), mas que, num segundo momento, o próprio desenvolvimento do processo de valorização (com a grande indústria), “negaria” o processo de trabalho, subsumindo realmente (e não apenas formalmente) o sujeito humano como força de trabalho tornado não apenas apêndice do sistema de máquina – no plano formal, mas realmente guardião e regulador do processo de produção (o que exige novo modo de manipulação do capital).

A subsunção real do trabalho ao capital, ocorrido com a grande indústria, caracterizou o século XX. Na era do fordismo-taylorismo, as dimensões perversas do nexo psicofísico do capital não estavam postas de modo pleno. Como mero apêndice da máquina, o homem que trabalha tinha apenas a função de suporte da linha de montagem. É com o toyotismo como fordismo genuíno, e a nova base técnica informacional, que instaura a nova forma de produção do capital – a maquinofatura – que se explicita a radicalidade perversa da exploração capitalista na medida em que se instaura, como diria Ruy Fausto, a subordinação formal intelectual (ou espiritual) do trabalho ao capital.

A lógica da gestão toyotista é a lógica do assédio moral. É o que salientamos no livro Trabalho e subjetividade (Editora Boitempo, 2011). No plano da lógica da acumulação de valor, a moral torna-se campo de disputa. A nova base técnica do sistema do capital com a vigência da maquinofatura, alteram o modo de ser da subsunção real do trabalho ao capital. Como salientou Ruy Fausto (ele utiliza o termo pós-grande indústria e não maquinofatura), a subsunção real torna-se subsunção formal intelectual (ou espiritual), onde a “captura” da subjetividade – inclusive como “captura” da espiritualidade – se impõe. É nesse novo campo de exploração do homem que trabalha, que constitui-se o terreno fértil para o assédio moral. O homem-que-trabalha torna-se implicado efetivamente, em sua dimensão moral (ou espiritual) com a lógica do capital. Enfim, a proliferação do assédio moral no trabalho e na vida cotidiana diz respeito a mudanças estruturais na forma de produção do capital.

Como contradição viva em processo, o capital opera movimentos contraditórios: primeiro nega, com a grande indústria, o homem como sujeito moral, que torna-se mero apêndice da máquina. Depois de negar o homem como sujeito moral, volta a “resgata-lo” – no interior da nova materialidade de exploração do capital – como subjetividade (e espiritualidade) com a dita “pós-grande indústria” ou maquinofatura. Na “sociedade de serviços”, onde predomina o que denominamos de “trabalho ideológico”, o homem aparece não apenas como força de trabalho, mas também como trabalho vivo, com a dimensão moral sendo restaurada, para logo a seguir, ser “capturada” pelo capital – como exige a nova materialidade “espiritual” do capital. Nesse caso, constitui-se o campo ideológico propicio para o assédio moral, principalmente nos locais de trabalho reestruturados – tanto do setor privado quanto do setor público da totalidade viva do trabalho.

A contradição candente implícita do “assédio moral” é que a “negação” da personalidade humana – que assume uma dimensão perversa – ocorre no momento em que o desenvolvimento civilizatório, posto como redução das barreiras naturais, produz, de forma intensa e extensa, personalidades humanas complexas. Temos novamente outro “nó contraditório” do capital: o resgate da subjetividade ocorre para que se possa disputa-la e “captura-la” em prol dos valores-fetiches do capital (o que implica sua deformação perversa – ou perversidade narcísicas). Ao “resgatar” a subjetividade, o capital da pós-grande indústria/maquinofatura busca – no sentido literal – espoliar a riqueza de personalidades humanas complexas que se constituíram com o processo civilizatório do capital.

Ao dizermos “processo civilizatório do capital” expomos outro “nó contraditório” do capital, isto é, na medida em que ocorre o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, ocorre a redução das barreiras naturais (embora, ao mesmo tempo, em virtude do fetichismo social, imponha-se uma “segunda natureza” cada vez mais social). É para lidar com personalidades humanas complexas, resultado do processo civilizatório, e prenhe – de modo contraditório – por novas possibilidades de desenvolvimento humano, que o sistema social do capital altera a forma de ser da sua violência ancestral. Para operar de modo hegemônico em sociedades complexas, o capital constitui-se como capitalismo manipulatório. É por isso que o “assédio moral” emerge como categoria política e social candente para expor a miséria da normalidade burguesa. Como diria Horácio, em Hamlet (de William Shakespeare), “há algo de podre no reino da Dinamarca”.

É como personalidades humanas complexas, que nós dizemos hoje “não” à violência sutil do capital que assume a forma de manipulação reflexiva. De certo modo, a luta contra o “assédio moral” é quase como a vingança do filosofo Kant, que em sua ética da razão prática, condenava qualquer um que utilizasse o outro como meio para fins egoístas. Como perversidade, o “assédio moral” representa a prática ideológica sistêmica de dispor o outro – de modo instrumental – como sujeito perverso da barbárie social do capital. Com o assédio moral ocorre a instrumentalização do outro para as finalidades alienadas – particularistas e ensimesmadas – das “personas” do capital.

Ester de Freitas e Roberto Heloani definem assim o assédio moral no trabalho: “O assédio moral é uma conduta abusiva, intencional, freqüente e repetida, que ocorre no ambiente de trabalho e que visa diminuir, humilhar, vexar, constranger, desqualificar e demolir psiquicamente um indivíduo ou um grupo, degradando as suas condições de trabalho, atingindo a sua dignidade e colocando em risco a sua integridade pessoal e profissional”. Deste modo, o assédio moral possui um traço de intencionalidade sistêmica na medida em que é freqüente e repetido e não meramente casual. Na medida em que possui um caráter sistêmico, ele diz respeito à própria lógica organizacional (e social) da exploração da força de trabalho e do trabalho vivo. A degradação da personalidade humana torna-se um meio para a satisfação de personas do capital que visam com isso, obviamente, não apenas satisfazer idiossincrasias de chefias (ou colegas de trabalho) perversas, mas cumprir objetivos de gestão do negócio. O assédio moral torna-se horizontal – entre colegas de trabalho – porque tornou-se efetivamente assédio moral sistêmico, ideologia dominante do sociometabolismo do capital.

Finalmente, cabe tratar do nexo essencial entre assédio moral e capitalismo necrófilo. O capitalismo global baseia-se numa dinâmica sociometabólica que não contribui para o desenvolvimento. Pelo contrário, representa aquilo que apresenta-se como o próprio resultado do assédio moral: a diminuição, humilhação, vexame, constrangimento, desqualificação e demolição psíquica do homem que trabalha. É que ocorre com o metabolismo social do desemprego e precariedade do trabalho que tem se dissmeninado nos últimos “trinta anos” perversos de capitalismo global. O conceito candente de “assédio moral” sinaliza que vivemos hoje no tempo histórico do perverso – perversidade que flerta com a morte. Por exemplo, fazendo um paralelo com o filme Saló ou 120 dias de Sodoma, de Pier Paolo Pasolini, diríamos que o vínculo orgânico entre assédio moral e morte representa o último círculo que compõe a narrativa de Pasolini baseada no livro de Sade – o Círculo de Sangue. A obra de Pasolini, tida por muitos como uma das mais perturbadoras da história do cinema, é dividida em 3 fases, chamadas de ‘círculos’, que são o Círculo das Manias, onde os fascistas satisfazem seus desejos sexuais; o Círculo das Fezes, repleto de escatologia, onde os jovens são obrigados a ingerir fezes; e o Círculo de Sangue, onde os prisioneiros desobedientes são punidos através de mutilações, torturas físicas e assassinato. Extrapolando a narrativa pasoliniana para a lógica gerencialista diríamos que nas organizações sistêmicas temos as Manias do Desempenho (ou Produtivismo), as Fezes da Resiliência e o Sangue da degradação psíquica da pessoa que trabalha.

O psicologo marxista Erich Fromm salientou a dimensão necrófila do capitalismo tardio. O gozo da morte reverbera, por exemplo, na perversidade explicita ou implícita das pequenas (e grandes) loucuras da cotidianidade alienada. Na medida em que a produção do capital torna-se totalidade social, o assédio moral torna-se assédio moral sistêmico. É traço endêmico do metabolismo social. Na era da barbárie social, o assédio moral é o veículo dos consentimentos espúrios que degradam a personalidade humana como condição sine qua non da reprodução social da ordem burguesa hipertardia. Portanto, da respiração ofegante do co-piloto que, trancado na cabine, provocou a morte de 150 passageiros e tripulantes do avião da Germanwings (em março de 2015), às narrativas ficcionais de sexo e sado-masoquismo que seduzem hoje multidões de jovens e adultos (do romance best-seller Cinquenta tons de cinza ao filme maldito Ninfomaníaca, de Lars von Trier), vivemos na era do perverso ou era do assédio moral como metabolismo social.

Na era do perverso, onde o “apagão ético” se contrasta com a proliferação do assédio moral, vivemos formas supremas de irracionalidades sociais. Em pleno século XXI, personalidades humanas complexas são dilaceradas pelas candentes contradições sociais ou “nós contraditórios” do capital. O desvelamento do sentido ontológico do “assédio moral” é apenas a “ponta do iceberg” da barbárie social que caracteriza a ordem sociometabólica do capital global.

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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011).

Publicado no Blog da Boitempo.