Em recente evento cultural em Belo Horizonte, o fotógrafo Sebastião Salgado fez algumas afirmações que não repercutiram na mídia. De acordo com ele, uma das grandes mudanças, senão a maior, na cena brasileira, diz respeito ao fato de “o governo federal não ser mais comandado por pessoas ligadas aos monopólios de comunicação”. Este é, inclusive, o motivo pelo qual, a seu ver, tantas denúncias de corrupção estão vindo à tona, enquanto no passado foram ignoradas ou abafadas. Ao contrário da maior parte da mídia brasileira, que diuturnamente tem previsto o caos, ele avalia que “o Brasil já é um grande país e está cada vez mais sério”.

Salgado não é nenhum ingênuo ou pessoa sobre a qual possam pesar suspeitas de interesses menores. Por isso, não deixa de ser curioso observar a disparidade entre sua visão (e a de dezenas de especialistas nacionais e internacionais) e a que prevalece na mídia brasileira. Disparidade que leva qualquer um, com informação e independência, a constatar que a mídia não viu (ou não quer ver?) que o Brasil realmente mudou.

Se não fosse a referência aos governos petistas, o editorial “Momento de se reaproximar dos Estados Unidos”, publicado pelo jornal O Globo na edição do domingo (29/03) poderia ser confundido com tantos outros de cinco décadas atrás, às vésperas do golpe civil-militar de 1964. Naquela época, os mais influentes jornais brasileiros atendiam pelos nomes de Diários Associados, Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa, Diário Carioca e Última Hora. O Globo era uma publicação acanhada, de propriedade da família Marinho que até 1962 havia sido vespertina. A televisão vivia a sua fase elitista, com o aparelho sendo considerado um luxo ao qual apenas a elite econômica tinha acesso e o rádio era a mídia de massa.

À exceção de Última Hora e da Rádio Nacional, praticamente todos os demais estavam ou ficaram contra o presidente João Goulart. As denúncias de que ele pretendia implantar uma “república sindicalista” eram permanentes. Os “barões” da mídia, adversários das “reformas de base” propostas pelo governo, queriam ver Jango pelas costas e não mediam esforços para alcançar seus objetivos. Os ataques mais contundentes partiam de Assis Chateaubriand, o primeiro magnata do setor no país, e de Carlos Lacerda. Roberto Marinho, mesmo longe do peso que viria a adquirir no futuro, foi fundamental na desestabilização e derrubada de Jango, ao franquear os microfones da sua Rádio Globo, para os ataques golpistas e destemperados de Lacerda.

O “bruto pigmeu”

Em fins de março de 1964, enquanto as demais publicações registravam as tentativas de articulação de Jango contra a conspiração em marcha, os Diários Associados, de Chateaubriand, radicalizavam o noticiário, contribuindo para a tomada de posição dos setores civis e militares favoráveis ao golpe. Chateaubriand, em artigo de 26 de março, por exemplo, referia-se a Jango como sendo “o bruto pigmeu”, dado ao “seu ódio contra o benemérito capital estrangeiro”. Além de afirmar que Jango e seu governo trabalhavam de acordo com as ordens do Partido Comunista, exaltava a necessidade de uma intervenção por parte dos “setores de bom senso”. Leia-se: militares e aliados.

Vivia-se, naquela época, o auge da Guerra Fria, com o mundo dividido entre as áreas de influência dos Estados Unidos e as da União Soviética. A vitória de Fidel Castro em Cuba e sua aliança com uma potência comunista foi considerada intolerável pelos Estados Unidos, que reagiram à sua maneira. A política externa norte-americana passa a atuar em dois movimentos estratégicos simultâneos. Um, visível, através da Aliança para o Progresso, cujo objetivo era demonstrar a superioridade do modelo norte-americano de livre iniciativa, democracia liberal e individualismo sobre o socialismo, como a solução mais eficiente para o subdesenvolvimento da região. O outro, encoberto, através do apoio a ditaduras de direita, repressoras e violentas, como instrumentos de eliminação de movimentos de esquerda e de seus dirigentes.

Lógica semelhante à do movimento civil-militar que derrubou Jango no Brasil e se espraiou para a Argentina, a Bolívia, o Uruguai e o Chile. Nestes países, dirigentes eleitos foram alijados do poder com pleno apoio do governo “democrático” dos Estados Unidos. Naquela época, os círculos intelectuais e de propaganda norte-americanos criaram, para justificar as políticas repressivas de combate à subversão, as teorias da modernização. Segundo estas teorias, os militares seriam os setores menos comprometidos com as estruturas oligárquicas no continente sul, devendo a eles, portanto, caber o destino destas nações, logicamente “supervisionados” pelo Tio Sam.

A ditadura brasileira escondeu a participação dos Estados Unidos na derrubada de Goulart. A prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, em Londres, em outubro de 1998, possibilitou que grupos de direitos humanos e liberdade de informação passassem a pressionassem o governo Clinton para que os documentos envolvendo esta sórdida história pudessem ser conhecidos. Nos dias atuais, eles estão disponíveis para consulta, além de já terem sido publicados em livros no Brasil e no exterior.

Afronta à inteligência

Não há como um jornalista – sobretudo o responsável por editoriais – desconhecer este fato. No entanto, é esse “desconhecimento” que pode ser verificado no sintomático editorial “Momento de se reaproximar dos Estados Unidos”. O texto defende que o Brasil abra mão da política externa independente adotada a partir da chegada do PT ao poder e volte a cerrar fileiras com os Estados Unidos. Numa retórica que afronta a inteligência do leitor, o editorial frisa que a política externa brasileira perdeu espaço desde 2003, atribuindo este “fato” à “ingerência petista na diplomacia”.

Mas que ingerência é esta? A política externa brasileira está sendo feita a partir da visão de mundo do partido que legitimamente venceu as eleições. Mutatis mutandis, será que os Marinhos consideram igualmente ingerência a adoção das premissas do Partido Democrático na política externa norte-americana? Ou será que o governo brasileiro, segundo O Globo, deveria pautar-se pelos interesses norte-americanos na formulação de sua política externa?

Sintomaticamente, o editorial não faz qualquer menção à Unasul e, sem base na realidade, tenta minimizar a importância dos Brics, duas entidades que estão redesenhando a política externa na América do Sul e contribuindo para alterar os próprios contornos da política mundial. A criação da Unasul não teria sido possível sem a habilidade e paciência da diplomacia brasileira, tendo à frente o chanceler Celso Amorim, que materializou as diretrizes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no sentido de um subcontinente integrado e atuando em prol de interesses próprios.

A recente diplomacia brasileira deu contribuição das mais significativas para sepultar o histórico de subimperialismo regional, além de contribuir para desfazer divergências e rixas (a maioria estimuladas por potências externas) que marcam o passado da América do Sul.

Quanto aos Brics, a mídia brasileira, O Globo à frente, praticamente escondeu a realização, em Fortaleza (CE), em julho do ano passado, da reunião que criou o Banco de Desenvolvimento da entidade. Some-se a isso que não foi dado qualquer destaque ao fato de caber ao Brasil a primeira presidência do seu Conselho de Administração, cargo de fundamental relevância, que definirá linhas e valores para projetos de desenvolvimento. Em vez disso, o editorial prefere sentenciar que “o esfacelamento do Mercosul e a desaceleração chinesa impõem ao Brasil se reaproximar dos EUA, cuja economia deve acelerar a recuperação”.

O editorial, beirando a má-fé, desconhece que o governo brasileiro anunciou, dois dias antes, na sexta-feira (28/03), que fará parte do Asian Infrastructure Investiment Bank (AIIB), o banco de desenvolvimento criado pela China, de longe uma das mais importantes decisões dos últimos tempos. Mais do que o Banco dos Brics, ele deverá ser um dos principais competidores de estruturas como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Dito de outra forma, ao contrário do que afirma o editorial, quem está perdendo força são os Estados Unidos.

Ainda sobre o editorial de O Globo, o curioso é que ele tenta recolocar em pauta, bem ao estilo dos argumentos maniqueístas das décadas de 1960 e 70, rixas entre Brasil e Argentina, além de defender a volta da política de vassalagem em relação aos Estados Unidos. Pior ainda, procura reviver, através da demonização do “bolivarianismo chavista e do Irã”, o antigo pavor em relação ao comunismo. Pavor que, na prática, encobre o medo a qualquer aprofundamento democrático no Brasil. Afinal, são os Estados Unidos, e não o Brasil, que têm problemas com estes dois países.

A supremacia norte-americana mostra-se cada dia mais discutível. Óbvio que o Tio Sam ainda dispõe de capacidade quase ilimitada de destruição e que, investindo-se, por conta própria da condição de xerife do planeta, sente-se no direito de meter o bedelho em toda parte. As instituições brasileiras, no entanto, depois da experiência nefasta de 21 anos de ditadura e de mais de duas décadas de retorno ao estado de direito, mostram-se maduras e fortalecidas o suficiente para conviver com pressões de toda ordem, aí incluída uma mídia que mente, distorce os fatos e, principalmente, desprovida de qualquer sentimento patriótico.

Denúncias engavetadas

O “mar de lama” denunciado por uma histérica UDN (o PSDB da época), com o apoio da mídia, mostrou-se decisivo para o suicídio de Vargas, em 1954 que, agindo assim, abortou um golpe em marcha. Goulart, 10 anos depois, foi vítima de golpe civil-militar, apoiado pela CIA. A autointitulada “Nova República”, que pôs fim à ditadura, deixou visível, desde o primeiro momento, que não seria fácil livrar-se dos filhotes dos “anos de chumbo”.

Tancredo Neves, presidente eleito via Colégio Eleitoral, morreu antes de tomar posse. Seu vice, José Sarney, assumiu e deu posse ao ministério escolhido por Tancredo, no qual figurava, como titular das Comunicações, ninguém menos que Antônio Carlos Magalhães. ACM, como era conhecido, dominou a Bahia, seu estado natal, por décadas e foi um dos políticos mais ativos nos tempos da ditadura. Oficialmente, mudara de lado, mas não de métodos.

No governo Sarney, foi aprovada uma lei que passava o poder de dar/retirar concessões públicas para TV e rádio do presidente para o parlamento. Um dia antes de a lei entrar em vigor, ACM e Sarney fizeram 100 concessões públicas para TV e rádio, boa parte delas para afiliadas da TV Globo que, através do acordo ilegal com o grupo norte-americano Time-Life e graças às benesses da ditadura, já havia se transformado no maior conglomerado de mídia do país. É importante lembrar que Sarney e ACM controlavam, eles próprios, a maior parte dos veículos de comunicação em seus estados.

Fernando Collor, o primeiro presidente eleito pelo voto popular depois do golpe de 1964, chegou ao poder em grande medida através do apoio das Organizações Globo. Para a sua vitória foi decisiva a edição manipulada do debate entre ele e Lula, candidato do PT, em 1989. A manipulação, óbvia para boa parte dos profissionais e pesquisadores da área, foi negada durante 22 anos, até que o ex-todo poderoso dirigente da emissora, José Bonifácio Sobrinho, decidiu contar a verdade.

As Organizações Globo não gostavam de Itamar Franco, o vice de Collor que assumiu a presidência após o impeachment do titular do cargo. Rapidamente, Roberto Marinho encontrou no chanceler, e depois ministro da Fazenda de Itamar, Fernando Henrique Cardoso, um nome confiável. Quando a disputa sucessória desenhou-se em torno de Fernando Henrique e de Luiz Inácio Lula da Silva, era nítido o lado que jornais, revistas, rádios e TVs tomariam.

As afinidades dos “barões” da mídia com o ideário neoliberal defendido por Fernando Henrique Cardoso (PSDB) impossibilitaram que prosperasse qualquer denúncia sobre corrupção no governo. As concessões de rádio e TV (RTVs) foram importante moeda de troca neste processo. Até setembro de 1996 foram outorgadas 1.848 licenças de RTVs, das quais pelo menos 268 beneficiaram entidades controladas por 87 políticos (Lima & Caparelli, 2004).

A generosidade de Fernando Henrique coincidiu com a aprovação da emenda constitucional que permitiu a sua própria reeleição. Ao longo de seus dois governos, além das 539 emissoras concedidas por licitação, ele autorizou 357 concessões “educativas” sem licitação. A maior parte desta distribuição ficou concentrada nos três anos em que o deputado federal Pimenta da Veiga (PSDB-MG) esteve à frente do ministério das Comunicações e destinaram-se a políticos do seu partido e a aliados.

Nem Fernando Henrique nem seu ministro sofreram quaisquer sanções, apesar da Constituição de 1988 determinar que cabe ao Congresso Nacional apreciar todos os atos do Poder Executivo. O que inclui – mas nunca foi feito – a análise prévia da outorga ou renovação de concessões, permissão e autorização para serviços de radiodifusão.

A aprovação da emenda que permitiu a reeleição foi marcada por denúncias de corrupção envolvendo a compra de votos. O jornal Folha de S.Paulo levantou o assunto e publicou, em 1997, trechos de gravações em que dois deputados do PFL (atual DEM) do Acre afirmavam ter recebido R$ 200 mil cada (o equivalente hoje a R$ 530 mil) para votar a favor da emenda patrocinada pelo Palácio do Planalto. O então procurador-geral da República não se interessou pelo caso, transformando-o em uma das centenas de denúncias de corrupção que engavetou.

No segundo governo de FHC não faltaram denúncias envolvendo privatizações de empresas estatais a preço de banana, das quais a mais eloquente foi a da Companhia Vale do Rio Doce, vendida por R$ 3,3 bilhões, quando valia perto de R$ 100 bilhões. Pouco depois, o polêmico jornalista Paulo Francis, denunciou, no programa Manhattan Connection, da TV Globo, que os dirigentes da Petrobras mantinham contas secretas na Suíça, fatos que via como indícios de corrupção na estatal.

Mídia e governo não lhe deram ouvidos. A empresa entrou com ação indenizatória no valor de 100 milhões de dólares e, para muitos que conheceram Francis, este foi o motivo de sua morte prematura, em 1997, vítima de um ataque cardíaco fulminante, aos 67 anos. O tempo viria dar razão às denúncias de Francis.

Lula derrotou os candidatos tucanos José Serra, em 2002, e Geraldo Alckmin, em 2006, e ainda conseguiu, em 2010, fazer de Dilma Rousseff sua sucessora. As vitórias de Lula, como ele mesmo diz, aconteceram contra a mídia tradicional que nunca teve dúvidas que o “sapo barbudo” e o ex-torneiro mecânico, que não possui um dos dedos, não era dos seus. O mesmo pode ser dito de Dilma Roussseff, a ex-guerrilheira contra a ditadura e primeira mulher a chegar ao Palácio do Planalto.

Novos tempos

Nas eleições de 2010, a mídia brasileira apostou novamente no tucano José Serra, convencida que o peso do estado de São Paulo e os desgastes enfrentados pelo PT com as denúncias de corrupção envolvendo o Mensalão seriam suficientes para derrotar a candidata de Lula. Como não foram, a mídia partiu para o vale tudo em 2014, disposta a fazer qualquer coisa para dar vitória ao tucano Aécio Neves.

O tudo ou nada da campanha eleitoral se manteve nestes primeiros 100 dias de governo Dilma, com a mídia transformando-se em partido de oposição, insuflando e cobrindo manifestações de protestos de “revoltados” a “favor do impeachment”, do “Fora Dilma”, e de “intervenção militar constitucional” (!). Enfim de qualquer arranjo ou casuísmo, inclusive com digitais externas, que apeie o PT do poder ou o impeça de governar, por intermédio da conhecida “fórmula para o caos”, outro nome para o constante sangramento de adversários no poder.

No dia 1º de setembro de 2013, as Organizações Globo, por meio de editorial publicado no jornal de sua propriedade, fez autocrítica, considerando “um equivoco” o apoio ao golpe civil-militar de 1964. Mesmo sem muita convicção e minimizando os fatos, uma vez que a empresa não apenas apoiou o golpe, mas foi parte de sua articulação e vitória, alguns viram no gesto da família Marinho (o patriarca já havia morrido) uma espécie de recomeço em novas bases. Menos de dois anos se passaram para que a “autocrítica” desse lugar a articulações semelhantes às dos idos de 1964. A resposta de Dilma, um tanto lenta, veio através de suspensão de verbas para a TV Globo e a revista Veja e a escolha do ex-deputado petista Edinho Silva para dirigir a Secom.

Há muito por fazer, a começar pela democratização da verba de publicidade institucional do governo e das empresas estatais. Em permanente queda de audiência, os veículos das Organizações Globo continuam recebendo a maior parte destes recursos, numa época em que as verbas em várias partes do mundo, a começar pela Inglaterra, Canadá e Estados Unidos (que eles tanto admiram), já migraram ou estão migrando para a mídia digital.

A crise e o caos brasileiro, que a velha mídia apregoa, estão longe de ser realidade. O Brasil mudou. Quem não mudou foi a mídia e ela, sim, está em crise. Aos poucos surgem histórias que ela gostaria de manter desconhecidas dos respeitáveis telespectadores, ouvintes e leitores, como as contas secretas de seus proprietários na agência suíça do banco HSBC e as denúncias de propinas pagas pela Rede Brasil Sul (RBS), afiliada da TV Globo. Tudo isso precisa e deve ser investigado, mas a velha mídia parece não se dar conta das mudanças, aferrada a padrões do século passado, quando mamatas e privilégios foram suficientes para garantir tranquilidade a governos e dinheiro e poder aos seus proprietários.

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Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade