Do mesmo modo que hoje é necessária uma reforma política que, ao limitar o papel das empresas no financiamento da atividade política, limite o poder que elas detém sobre as decisões públicas, ou seja, sobre o dinheiro dos cidadãos contribuintes, é preciso também atuar e debater no nível internacional o poder dos capitais privados e apontar para mecanismos que controlem a racionalidade do lucro, que muitas vezes devém na irracionalidade dos mercados e em irracionalidades ainda maiores de violações de direitos das pessoas, do seu trabalho e do seu ambiente e meio de vida.

Em artigo recente no The Guardian, George Monbiot afirma que “a questão política chave do nosso tempo, através da qual você pode julgar a intenção de todo partido político, é o que fazer com o poder das corporações. É essa a questão, negligenciada de forma perene tanto pelos políticos quanto pela mídia…”.

Para nós, no Brasil, parece não ser uma novidade: a captura do poder econômico de bens públicos como a Petrobrás, o Metrô de São Paulo, as obras da Copa e das Olimpíadas é uma das faces da moeda; a outra é a cobertura seletiva que a grande mídia faz da relação entre os negócios públicos e os privados, que evidencia em última instância a natureza econômica das empresas de comunicação cujo fim último transforma-se no lucro, que se sobrepõe à ética da informação “objetiva”.

A crise da Petrobrás oferece ao Brasil e à presidenta Dilma uma oportunidade singular para dar um passo que coloque o País na vanguarda do debate sobre o controle do poder corporativo. Primeiro, é preciso considerar a Petrobrás – apesar da sua natureza mista – como um bem público dos brasileiros e, para tanto, resgatá-la da captura das empresas que alimentam os esquemas de corrupção. É evidente que isso só se faz com uma faxina profunda.

Dilma não pode expor a sua fama de “faxineira” ao risco de, na dúvida sobre fazer ou não, engrossar as suspeitas de compromissos econômicos e políticos com os malfeitores que colocam em questão um projeto político e econômico que representa quase 10% do PIB brasileiro e compromete investimentos futuros em educação pública.

Segundo, avançar na reforma política. Monbiot parece escrever para a nossa realidade, mas não se trata disso; o problema é realmente global. Ele propõe um sistema de financiamento da política baseado na contribuição dos filiados, mas, sendo ela uma contribuição fixa de no máximo 50 libras ao ano, e acrescenta que os partidos receberiam um múltiplo desse valor por parte do Estado, e a proibição de qualquer outra forma de financiamento. Por que não?

Aqui no Brasil poderíamos conjugar essa regra com o tempo de tevê e o Fundo Partidário, achar uma fórmula que corte de vez – ou pelo menos limite, criminalize – a promiscuidade das empresas com os partidos, que, no fim das contas, também fazem parte do público. Os partidos populares não podem temer essas iniciativas que contribuem para reatar, entre outros, o vínculo entre as estruturas e os membros, a militância perdida nesses anos. A presidenta, seu partido e aliados têm que ficar na vanguarda dessa reforma, tão necessária quanto a renovação das propostas programáticas que, entre outras, as jornadas de junho de 2013 expuseram. O medo de medidas avançadas desse teor deve ser apenas daqueles que não têm bases populares nem militância fiel que dê sustento, dinâmica e alegria à vida partidária.

Terceiro, e é este o ponto de particular preocupação, avançar de forma “altiva e ativa” na reforma da governança global, que deixe de ser construída para servir à expansão e crescente concentração do capital e da globalização econômica. Não é menos ideológico que a defesa da desregulação econômica selvagem resumida nas propostas do Consenso de Washington, a proposta de implementar políticas públicas globais que limitem o poder dos capitais e, em particular, das suas formas transnacionalizadas, sejam empresas ou fundos.

Até agora, o Brasil tem se protegido relativamente ao não adotar acordos de investimentos ou de livre comércio – à exceção da OMC e dos acordos com Israel via Mercosul – com as grandes economias desenvolvidas, nem com as grandes economias emergentes, mas, nessa campanha, ficou evidenciada a pressão para o País avançar no acordo com a UE e para facilitar a integração nas “cadeias internacionais de valor”, ou seja, transformar um País de média/alta complexidade industrial, inovação, e autonomia econômica em uma montadora/importadora dependente ou propriedade de uma empresa ou investidor transnacional.

Uma amostra disso é o processo de progressiva queda industrial no PIB e a crescente substituição da produção local por produtos importados que estamos vendo nesses anos. Parece banal, mas proteger a economia do Brasil e os seus cidadãos é para o que os presidentes são eleitos, e é por isso que Dilma foi reeleita em outubro. É uma manipulação ideológica daqueles que não querem barreiras aos mercados, cuja preocupação não é o desenvolvimento ou a sustentabilidade de um País e seu povo, fazer da proteção o “protecionismo”. Vencer essa batalha é uma das principais defesas contra a concentração e a internacionalização/alienação do capitalismo brasileiro.

Nessa frente internacional, uma outra disputa se dá no campo da proteção dos direitos humanos de modo geral, com a sua ampla inclusão de direitos trabalhistas, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Recentemente, no âmbito da ONU, o debate em torno de regulações que obriguem as empresas em matéria de direitos humanos teve uma reviravolta: depois de 40 anos de bloqueios, os Estados decidiram começar um processo para negociar um tratado que gere regras internacionais para a proteção dos direitos humanos em caso de violações perpetradas por empresas. A Resolução “Elaboração de um instrumento internacional juridicamente vinculante sobre as empresas transnacionais e outras empresas em relação aos direitos humanos” (A/HRC/26/L.22/Rev.1) foi aprovada no Conselho de Direitos Humanos da ONU com o voto contrário da União Europeia e dos Estados Unidos, entre outros Estados que sediam o maior número de empresas transnacionais.

A iniciativa, que foi promovida pelo Equador e pela África do Sul, contou também com o apoio da China, Índia, Rússia e outros 15 países. Dos BRICs, o único que não apoiou foi o Brasil. O nosso País se absteve e tem arguido que o fez para “fugir da polarização” que emergiu entre os países do Norte e os que defendiam o tratado, e que, para fazer um tratado andar, precisaria de um apoio “mais sólido” de outros Estados. Ao contrário da atitude “altiva e ativa”, a posição brasileira em Genebra optou por ficar na “zona de conforto” da abstenção, que das opções é a que gera menos atritos com os diversos Estados engajados no debate.

Por outro lado, o governo brasileiro não tem até agora tentado mobilizar o debate em torno do tema. Os Princípios Orientadores (também chamados de Princípios de Ruggie), aprovados em 2011, são a opção mais confortável para as empresas e os Estados porque não geram obrigações e permanecem no âmbito dos princípios voluntários. O principal eixo de trabalho propõe o desenvolvimento de Planos de ação nacionais para trabalhar as violações de direitos humanos por parte das empresas, e a reparação às vítimas. Esses planos, além de serem muito criticados nos pouquíssimos casos em que foram desenvolvidos no mundo por não resolverem o problema, estão só em período de pré-consulta interna dentro do próprio governo, o que significa um atraso relativo em relação ao ano de aprovação. Mesmo o Itamaraty sendo o responsável por coordenar as ações da política externa lá fora, as posições da Fazenda a favor de não avançar nesse debate têm sido determinantes na posição brasileira.

O Brasil tem uma nova chance nos próximos dois anos de participar de forma mais ativa no processo de construção que decorre da Resolução aprovada em junho passado. Porém, os sinais para não ter um “envolvimento” muito ativo já começam a ser dados pela embaixadora em Genebra por ocasião de reuniões mantidas nessa cidade no contexto do III Fórum de Empresas e Direitos Humanos realizado no início de dezembro. Em vez de sinalizar uma vontade de se envolver no que poderia ser uma primeira ferramenta que, da perspectiva dos direitos, começasse a limitar o descalabro da ação dos grandes capitais transnacionalizados e a reparar as vítimas, o Brasil parece enveredar para uma posição de especulação morna que destoa da vontade dos amplos setores da cidadania brasileira que apoiaram a presidenta Dilma para um segundo mandato.

Por um caminho ou por outro, estão dadas as ocasiões para que Dilma Rousseff, nesse novo mandato, conduza o Brasil para a vanguarda do debate global sobre democracia, direitos, inclusão social e luta contra a desigualdade, dimensões todas elas que, seja no nosso País ou no mundo, têm por trás a operação implacável da lógica da concentração econômica e do lucro a qualquer custo.

Gonzalo Berrón é doutor em Ciência Política pela USP.

Publicado originalmente por Carta Capital.