“Não estamos cuidando de um problema de finanças públicas, mas das criaturas dos fluxos de capitais privados e dos atores financeiros.” Richard Kozul Wright, diretor da Unctad

Em seu livro “The Road to Recovery”, o economista Andrew Smithers demonstra que no período 1981- 2009 o investimento das empresas privadas, calculado sobre o PIB, caiu 3 pontos percentuais nas economias desenvolvidas. O investimento deixou de apresentar o comportamento cíclico de outros tempos em que os gastos com “capex” acompanhavam as flutuações da economia.

A tese de Smithers desloca o debate para além da macroeconomia e das controvérsias entre keynesianos bastardos e crentes ortodoxos. Para ele, a “parolagem da confiança” esconde as transformações profundas na governança de bancos e empresas e mantém nas sombras as correspondentes modificações no ambiente macroeconômico em que se desenvolvem as estratégias empresariais. As hipóteses dominantes desconsideram as complexas interações entre as estratégias das corporações – financeiras e não financeiras – e a reconfiguração das estruturas econômicas.

No “Financial Times”, em julho de 2013, o editor do jornal, Robin Harding, assinalou a desconexão entre a o desempenho da rentabilidade das empresas e o investimento. Uma fração significativa dos lucros acumulados é destinada às operações de tesouraria, mediante a busca de “valorização” das carteiras de ativos financeiros já existentes.

No âmbito da configuração do sistema de crédito e da gestão financeira, isso exigiu a queda das barreiras que impediam o envolvimento dos bancos comerciais no financiamento da alavancagem de ativos imobiliários e financeiros. As mudanças regulatórias encorajaram a securitização dos créditos jogados para “fora do balanço”, no colo dos SIVs (Special Investment Vehicles) e outros “bancos-sombra”, ilustres protagonistas das imprudências alavancadas.

Nos Estados Unidos, o volume de crédito destinado a financiar posições em ativos já existentes cresceu a uma velocidade muito superior àquela apresentada pelos empréstimos destinados ao gasto produtivo. Como proporção do PIB, o valor dos empréstimos bancários para outras instituições financeiras é hoje quatro vezes maior do que os créditos destinados a financiar a criação de emprego e renda no setor produtivo.

Alterou-se a relação entre os recursos destinados ao investimento e aqueles utilizados para propiciar a elevação “solidária” dos ganhos dos acionistas e a remuneração dos administradores (“stock options”). Nos anos 60, tempos dos oligopólios de Berle e Means e dos gerentes obcecados com o crescimento da empresa no longo prazo, a cada US$ 12 gastos com compra de máquinas ou construção de novas fábricas, apenas US$ 1 era gasto com os dividendos pagos aos acionistas. Nas décadas seguintes, a proporção começou a se inverter: mais dividendos, mais “juros sobre o capital próprio” e menos investimento nas fábricas e na contratação de trabalhadores.

A associação de interesses entre gestores e acionistas estimulou as compra das ações das próprias empresas com o propósito de valoriza-las e favorecer a distribuição de dividendos, rendimentos não sujeitos à tributação. A isso se juntam a febre das fusões e aquisições, o planejamento tributário nos paraísos fiscais, o afogadilho das demonstrações trimestrais de resultados e as aflições das tesourarias de empresas e bancos açoitadas com o guante da marcação a mercado. “Tudo pelo social”. O social, bem entendido, é o desfrute acionário abusivo dos resultados do capital “socializado”.

Na base da apropriação de renda “rentista” está o inchaço das dívidas públicas nacionais. Para a compreensão da “nova dinâmica” do enriquecimento e da desigualdade é necessário avaliar o papel do endividamento público na valorização do capital fictício e na transmissão da riqueza entre as gerações.

Os títulos dos governos se constituem no “lastro de última instância” dos mercados financeiros globais “securitizados”. No que respeita à segurança e à liquidez, há uma hierarquia entre os papéis soberanos emitidos pelos distintos países, supostamente construída a partir dos fundamentos fiscais “nacionais”. Mas essa escala hierárquica reflete, sobretudo, a hierarquia das moedas nacionais, expressa nos prêmios de risco e de liquidez acrescidos às taxas básicas de juros dos países de moeda não conversível.

O diferencial de juros entre aqueles vigentes na “periferia” e os que prevalecem nos países “desenvolvidos” está determinado pelo “grau de confiança” que os mercados globais estão dispostos a conferir às políticas nacionais dos clientes que administram moedas destituídas de reputação internacional.

Na etapa atual da Grande Estagnação, por exemplo, o Brasil, com suas taxas de juros de agiota, desempenha a honrosa função de tesouraria das empresas transnacionais sediadas no país, travestindo o investimento em renda fixa com a fantasia do investimento direto. (Trata-se, na verdade, de arbitragem com taxas de juros: as subsidiárias agraciadas com os juros do dr. Tombini contraem dívidas junto às matrizes, aborrecidas com os juros da senhora Janet Yellen ou do senhor Draghi).

Essa arbitragem altamente rentável e relativamente segura conta com a participação dos nativos “desanimados”. Juntos, engordam o extraordinário volume de “operações compromissadas” – o giro de curtíssimo prazo dos recursos líquidos de empresas e famílias abastadas.

Aprisionada no rentismo herdado da indexação inflacionária, a grana nervosa “aplaca suas inquietações” – diria Maynard Keynes – no aluguel diário dos títulos públicos remunerados a taxa Selic.

A eutanásia do empreendedor é perpetrada pelos esculápios do rentismo. A indústria e a industriosidade vergam ao peso dos juros elevados e do câmbio sobrevalorizado. A inflação resiste à baixa e sustenta a indexação. As finanças públicas se rendem ao trabuco do superávit primário apontado para o seu peito. Enquanto a ninguenzada paga os impostos, a turma do “dolce far niente” se empanturra nas festanças da austeridade.

Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

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