É sempre um prazer permitir que nossas ideias circulem por aí. O  prazer é ainda maior quando o assunto é favela, tema que provoca dor ou repúdio em muita gente.

Quando recebi o convite para escrever neste espaço, confesso que me alegrei. Afinal, a mídia pode esticar mais uma ponte entre o morro e o asfalto. No entanto, fui assolado pela dúvida. Destacar o quê? Contar o quê?

Se o internauta me permite, portanto, começo por minha própria história. Quando criança, no Rio de Janeiro, provei das piores dificuldades. Vivi nas ruas, comendo o que encontrava. De manhã, era uma surpresa abrir os olhos e comprovar que meu coração ainda batia.

Lembro-me de 1970, ano em que a empolgação com a seleção brasileira patrocinava bondades públicas. Avistei em uma rua de Marechal Hermes, bairro da zona norte carioca, um brilhante Karmann Ghia, carro chique na época. Dentro dele, havia uma mulher e sua filha, ambas bem vestidas.

Diante da janela do veículo, fiquei hipnotizado com colorida bola de praia da menina. De repente, ganhei uma moeda e corri para a calçada. Logo, porém, ouvi a bronca: “ô, neguinho mais mal-educado, nem agradece”.

Ora, eu me calei porque ainda sonhava com aquela bola. Além disso, sabia que minha voz nunca atravessaria o muro de concreto sólido que separava o meu mundo daquele da grã-fina motorizada.

Preconceito e estereótipo

Contei esta pequena história para ilustrar um pensamento que julgo importante: as elites e a classe média tradicional criaram e mantêm estereótipos para definir a favela, lugar que eles chamam carinhosamente de comunidade carente, como se não houvesse carência em outros lugares fora da favela.

Essas pessoas bem intencionadas aprenderam que esses territórios são lugares de vagabundos, preguiçosos, ignorantes e bandidos. Se não prosperam, segundo essa crença, é porque não gostam de trabalhar.

Quando criamos a Cufa (Central Única das Favelas), o desafio estava no próprio nome. A ideia era provar que essa é uma visão adulterada da realidade. Em 1996, eu administrava uma quase falida loja de discos e camisetas de hip-hop, em Madureira. Nesse período, comecei a pensar mais profundamente no processo de mudança nas periferias e subúrbios, vilas, palafitas, quebradas, ou “aglomerado sub-normal”, como prefere o IBGE.

Assim, resolvi reunir, nas noites de quarta-feira, uma turma de favelados boa de papo. Falávamos de tudo: política, religião, arte, cultura e problemas sociais. Dessa assembleia popular, destinada a compartilhar dúvidas e conhecimentos, surgiu a Cufa.

A entidade cresceu rapidamente. Os loucos e as loucas viraram protagonistas. Em 2014, a Cufa está presente em todo o país e possui filiais em outros países. Cada núcleo desenvolve projetos adaptados à realidade local, pensando sempre em criar mecanismos de inclusão para essas populações.

A Cufa, portanto, atesta que o povo da favela realiza grandes façanhas. Mora ali o sujeito que ergue o prédio bacana na Barra da Tijuca, o músico talentoso e também aquele que programa os computadores do metrô.

Vida melhorou nas favelas

Nesse cenário, precisamos levar em consideração o resgate social que vem ocorrendo no Brasil nos últimos anos: a antiga favela desapareceu. Sim, a clássica favela-palafita.

Está certo: ainda está longe, bem longe, da maravilha que desejamos. Há problemas estruturais sérios nesses bolsões urbanos. E o povão das favelas ainda é discriminado em razão da cor da pele, da origem e do local onde mora.

Mesmo assim, emergiu da pobreza uma nova favela, mais consciente, mais atenta, mais articulada, mais capacitada a lutar pela universalização de direitos e pela democratização da riqueza.

Para medir o tamanho dessa evolução, estabelecemos uma parceria com Renato Meirelles, presidente do Instituto Data Popular, o profissional que mais entende de Classe C no Brasil.

Aproveitando seu rigor científico, investigamos a vida em 63 favelas de todas as regiões do país. E o resultado da pesquisa do Data Favela surpreendeu até aqueles que transitam diariamente nesse ambiente.

Mesmo com todas as dificuldades, 81% dos favelados gostam da comunidade em que estão fixados e 66% não estão dispostos a abandoná-la. E o mais relevante: 94% dessa população considera-se feliz.

Por quê? Porque valorizam as relações comunitárias, enxergam novas oportunidades e percebem que a vida tem melhorado. São 11,7 milhões de pessoas que, somente no ano passado, destinaram ao consumo R$ 63, 2 bilhões.

Em 2003, a média salarial do favelado era de R$ 603. No fim de 2013, tinha pulado para R$ 1.068. Cresceu 54,7%. No Brasil, de modo geral, essa evolução foi de 37,9%. Além disso há muito mais gente trabalhando e 49% dos empregados carregam uma carteira de trabalho.

Hoje, a parcela de famílias faveladas na classe média é maior do que a do Brasil como um todo: 65% a 54%. No ano passado, 50% dos domicílios de favelas já contavam com conexão à Internet. Na época, 85% carregavam um telefone celular. Destes, 22% eram smartphones.

Em 2013, 16% já tinham viajado de avião e 2,4 milhões de pessoas tinham intenção de voar no ano seguinte. Nesse período futuro, 1,2 milhão delas planejava adquirir um tablet.

O estudo, registrado no livro “Um país chamado favela”, que lançamos em agosto deste ano, oferece muitos outros exemplos dessa evolução no campo do consumo.  É  importante não confundir com consumismo, pois essas pessoas passaram a consumir máquinas de lavar, por exemplo, para se libertar.

Minha principal conclusão? A favela é o lugar onde o Brasil muda primeiro, onde se reinventa. Ela hoje dita tendências e gera oportunidades em todos os segmentos de negócio, para o empreendedor do asfalto e para o da favela.

Infelizmente, há muitos brasileiros, até mesmo empresários, que seguem imaginando uma favela que não existe mais.

Portanto, se desejamos avançar no plano das conquistas da cidadania, se temos como meta ampliar as trocas econômicas que conduzem o país adiante, é preciso que o conhecimento substitua a ignorância.

Os estudos do Data Favela trouxeram o morro para o asfalto, exibindo esse mundo fascinante em positiva transformação. Agora, é preciso retribuir a visita, mas não para fazer safari, mas para contribuir de verdade com o desenvolvimento. Do contrário, o Brasil poderá crescer e, se a favela não o fizer, teremos apenas aumentado a distância entre os dois mundos.

CELSO ATHAYDE
51 anos, é produtor, ativista social e um dos fundadores da Central Única das Favelas (Cufa). Em 2013 criou a primeira holding do Brasil focada exclusivamente em favelas