Os “Diálogos sobre Política Externa”, organizados pelo Itamaraty entre 26 de fevereiro e 2 de abril, foram importante exercício institucional do movimento mais amplo de democratização da agenda sobre temas internacionais no Brasil. Reunindo espectro abrangente de agentes da sociedade civil, membros do Executivo, representantes dos Poderes Legislativo e Judiciário, os Diálogos demonstraram que existe uma saudável pluralidade de visões sobre os destinos da política externa brasileira (PEB). Essa diversidade de opiniões, em alguns casos, apontou para clivagens que dividem setores da sociedade e do governo. A falta de consenso é saudável na democracia, regime em que um dos principais fundamentos é propiciar a negociação de conflitos e a celebração de acordos possíveis entre posições diferentes. Os Diálogos contribuíram, assim, para desfazer o mito da existência de um consenso cristalizado em torno de um paradigma imutável da inserção internacional do Brasil. Da mesma forma, ilustraram a percepção de que o curso histórico das relações internacionais é sempre dinâmico e de que é necessário responder, no contexto da democratização da PEB, a essas mudanças com inovações no campo da política.

A heterogeneidade de visões e opiniões se manifestou, em particular, nos temas relativos a integração regional e política comercial. No tema “O Brasil, a América do Sul e a integração regional”, que contou com 41 participantes, as opiniões se dividiram entre uma perspectiva mais estritamente econômica e empresarial, nos moldes do regionalismo aberto, e uma visão política de ampla integração nos âmbitos produtivo, comercial, social, cultural, de defesa, de fronteira, etc. No primeiro modelo, o MERCOSUL deveria se restringir à mera zona de livre comércio, portanto eliminando-se a tarifa externa comum. A PEB ficaria, assim, limitada a uma diplomacia fenícia de abertura de mercados e garantia de financiamento aos investimentos regionais brasileiros. No campo oposto, encontram-se os que defendem um processo de aprofundamento da integração a partir da incorporação de novos países ao MERCOSUL e do fortalecimento da UNASUL como espaço de concertação em vários temas de política governamental. Para alguns participantes desse segundo grupo, caberia ao Brasil o papel de coordenador da ação coletiva regional. Tal protagonismo envolve custos e, portanto, implica capacidade de negociação e mobilização de recursos na sociedade brasileira, mas também produz benefícios não apenas em termos de construção de um espaço regional estável e próspero, como de projeção internacional da PEB.

Na mesa “Desafios da política comercial brasileira”, realizada no dia 20 de março, esteve em discussão a própria natureza da inserção econômica internacional do país. Muito afinada com o debate sobre regionalismo, esta mesa reproduziu clivagens semelhantes. De um lado, aquela que defende estar a perda de competitividade da economia brasileira associada ao risco de isolamento que a associação exclusiva ao MERCOSUL representaria. Sustenta maior liberalização da economia brasileira, a assinatura do acordo entre o MERCOSUL e a União Europeia, posições mais flexíveis do Brasil na OMC (serviços, facilitação de comércio, etc.) e a um visão positiva dos chamados mega-acordos comerciais. No plano doméstico, propõe maior coordenação entre as políticas industrial, comercial e agrícola, bem como o fortalecimento da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX). De outro, alguns defendem a importância das regras multilaterais construídas no âmbito da OMC e apontam para os riscos de que novas normas sejam gestadas no bojo de acordos plurilaterais. Sinalizam a possibilidade de perda ainda maior de autonomia na formulação de políticas governamentais, caso tais acordos venham a se concretizar. No entanto, como alternativa viável sustentam o fortalecimento do MERCOSUL e da integração na perspectiva do desenvolvimento regional, inclusive por via da ampliação da infraestrutura logística e da criação de cadeias produtivas regionais.

Os debates nessas duas mesas e nas outras certamente apresentaram nuances nos argumentos e concordâncias quanto às oportunidades e desafios que o novo cenário internacional representa para o Brasil. Como artifício analítico e um pouco simplificador da diversidade de posições, parece-nos clara a existência de dois campos cognitivos e políticos sobre o lugar do Brasil nessa ordem em transformação. Para aqueles que defendem uma visão economicista, em função da escassez de recursos de potência, o papel do Brasil deveria estar concentrado na projeção simplesmente mercantilista de abertura de mercados e garantias de investimento. Nesse sentido, deveria recolher suas ambições geopolíticas e focalizar em suas vantagens comparativas. Para aqueles que partem da constatação de que o contexto internacional é crescentemente multipolar e de que a PEB do século XXI precisa estar afinada as oportunidades que a nova geoeconomia oferece aos projetos de desenvolvimento, o Brasil deveria evitar alinhamentos incondicionais e participar ativamente dos diversos tabuleiros políticos e econômicos, a exemplo dos BRICS, do Fórum IBAS, MERCOSUL, UNASUL e continente africano.

Dessas percepções da ordem internacional em mudança e do lugar do Brasil no mundo decorrem diferentes concepções sobre o papel do Itamaraty na condução da PEB: de um lado, um Itamaraty como mera linha auxiliar da diplomacia de promoção comercial e de investimentos; de outro, um ministério com capacidade de incidência política no debate sobre o desenvolvimento nacional e o bem-estar da sociedade brasileira, refletindo,  em conformidade com a Constituição, as orientações programáticas do governo e os interesses do Estado como um todo e não apenas de alguns segmentos econômicos organizados.

Maria Regina Soares de Lima e Carlos R. S. Milani são respectivamente pesquisadora sênior e  professor-adjunto do  IESP-UERJ e membros do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais