Há um debate importante na sociedade que precisa encontrar uma conclusão. Ele diz respeito ao fenômeno do uso da violência contra a democracia.

Seja dentro ou fora de manifestações, seja praticada por grupos de direita ou de esquerda, o debate é sobre o nível de repúdio e condenação que se deve empregar contra quem usa a violência não como autodefesa, mas como meio de afirmação política.

Esse é o debate que deveria estar por trás da chamada lei antiterrorismo (Projeto de Lei do Senado Nº 499, de 2013). A proposta ficou perambulando no Legislativo, sendo no meio do caminho envenenada pela mídia tradicional, com o auxílio luxuoso dos que trazem uma memória seletiva da velha ditadura de 1964.

O tema deveria mobilizar uma ampla parcela dos cidadãos, pois interessa a todos. Tudo o que mexe com a vida e a liberdade de cada cidadão precisa, antes, ser profundamente debatido.

Ao mesmo tempo, em uma democracia, não se faz debate pelo debate. O que se pretende e se deve fazer é chegar a uma conclusão e tomar uma decisão amplamente respaldada.

Não é o que se vê, porém, na discussão da lei antiterrorismo. A questão está diante de dois graves riscos. Um é o de se tomar decisões erradas,  aprovando uma lei mal feita.

O outro risco vai em sentido contrário. É o risco de que esse debate seja simplesmente abandonado, com a grave consequência de se manter um entulho autoritário, a Lei de Segurança Nacional.

A democracia e a cidadania clamam por um meio termo.

Acirrado e federalizado desde a morte do cinegrafista da Band, Santiago Andrade, o debate sobre a lei antiterrorismo acabou sendo açodado.

Na base do oito ou oitenta, ficamos entre os que quiseram aprovar a lei a toque de caixa e os que foram ao êxtase ao defender que a nova lei seria mais dura do que a famigerada Lei de Segurança Nacional (LSN).

A LSN existe no Brasil desde 1935, forjada na esteira da dura repressão de Vargas contra a Aliança Nacional Libertadora, contra os partidos e organizações de esquerda.

Acabou servindo depois a todo o período da Guerra Fria, incluindo o que compreende a ditadura de 1964. Tal lei foi sucessivamente modificada, em 1969, 1978 e 1983. É uma lei das ditaduras, pelas ditaduras e para as ditaduras.

Os adeptos da ditabranda saborearam o tema com um sorriso nos lábios. A turma da ditabranda é aquela que defende a tese de que a ditadura instaurada em 1964 não foi lá tão dura assim, comparada à de países vizinhos.

Que a ditadura brasileira foi diferente da chilena e da argentina, é fato. Daí dizer que ela foi “branda” vai uma distância imensa.

Enfim, pelos argumentos dos defensores da ditabranda, a legislação em vias de ser aprovada no Senado seria mais dura que a LSN.

Não só defensores da ditabranda, mas muitos que repudiam aquele regime distribuíram a esmo o artigo de Elio Gaspari, “A histeria dos comissários”, que segue essa linha de ataque. Foi publicado em O Globo e na Folha de São Paulo.

O problema é que o artigo de Gaspari traz “erros” banais que só interessam a quem quer e gosta de banalizar a ditadura. Vale a pena indicar tais erros para evitar que o cordão da ditabranda cada vez aumente mais.

Um “erro” elementar foi ter acusado o senador Paulo Paim (PT-RS) de ser o autor do projeto da lei antiterrorismo. Não é. O “erro” poderia ter sido facilmente evitado com um mínimo de apuração jornalística.

Sendo o jornalista sabidamente experiente, ficam as aspas sobre o “erro”, de modo a manter uma saudável dúvida quanto ao deslize.

Afinal, uma das profissões de fé de Gaspari é tratar os governos do PT (Lula e Dilma) como um regime de “comissários”, os quais, a qualquer momento, podem implantar uma ditadura. “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, é o que está encravado nas entrelinhas de seus artigos.

Diz Gaspari que, enquanto a proposta em trâmite no Congresso prevê penas que vão de 15 a 30 anos de prisão, a LSN previa, para crimes similares, penas de 8 a 30 anos.

Nesses termos, se o pior de uma ditadura se mede pelo tempo de pena, vamos chegar à conclusão de que a mais ditatorial de nossas leis é o Código Penal, que prevê penas ainda mais duras, de 20 a 30 anos, por exemplo.

Vamos ter que incluir o Canadá na lista de ditaduras cruéis das Américas. O país acaba de transformar em crime o uso de máscaras em manifestações. Um mascarado pode ser condenado a passar até 10 anos preso, seja vestido de Batman ou de Homem Aranha. Isso é que é ditadura!

Muitos passaram batidos pela mais imaculada de todas as frases do artigo de Gaspari sobre a bandura da Lei de Segurança Nacional:

Caso o delito resultasse em morte, a pena seria de fuzilamento. Apesar de ter havido uma condenação, ninguém foi executado dentro das normas legais”.

Vale a pena ver de novo: “ninguém foi executado dentro das normas legais”.

Mais uma vez, só para reforçar: “ninguém foi executado dentro das normas legais”.

Isso é que é ditadura. “ninguém foi executado dentro das normas legais”. Éramos felizes e não sabíamos.

A LSN de 1969, se alguém se der ao trabalho de lê-la direto na fonte, para entender do que se tratava sem precisar de intermediários, verá que ela prevê, em caso de morte de algum agente da repressão,  desde a prisão perpétua, “em grau mínimo”, até a pena de morte, “em grau máximo” (artigos 80 a 107).

Mas fiquemos tranquilos. Na ditadura cinquentenária, ninguém foi executado. Não legalmente. Que bom saber disso!

De repente, não mais que de repente, parece que ser contra o terrorismo é que se tornou antidemocrático.

De repende, não mais que de repente, a mesma legião de articulistas e comentaristas que defendeu, histérica e macarrônicamente, a extradição de Cesare Battisti (acusado de terrorismo na Itália) resolveu ser contra a lei antiterrorismo.

O Congresso discute faz tempo a proposta de legislação antiterrorismo. Falhou, como tem falhado, ao deixar o assunto se arrastar inconcluso. Tem sido assim com muitos outros assuntos que aguardam regulamentação.

Nada disso deve nos levar a tirar conclusões erradas, que sepultem um debate extremamente importante. O Brasil precisa sim de uma lei antiterrorismo para sepultar de vez a LSN.

É preciso colocar em seu lugar uma lei que proteja as pessoas da violência e que faça jus ao que diz o art. 5º. da Constituição, que equipara a condenação ao terrorismo à condenação da tortura.


É disso que se trata e é nisso que a proposta que tramita no Congresso está longe de atender. Ela ainda é genérica o suficiente para deixar margem ao perigo da discricionariedade tanto de juízes quanto do guarda da esquina.

O tema é delicado como nitroglicerina e deve se lidar com todo o cuidado do mundo, mas sem que seja deixado de lado, esquecido.

Muito menos o assunto deve servir de pretexto para fazer aumentar o cordão da ditabranda.

Às vésperas dos 50 anos da dita cuja, é preciso rechaçar a todo o momento as tentativas reiteradas, reeditadas e em liquidação de se mascarar a lógica daquele tenebroso regime de exceção.

Um regime em que as normas eram apenas para Inglês ver.

Um regime em que, sabidamente, a verdadeira lei era ditada no cárcere e cumprida por tribunais compostos por torturadores.

Mais sobre o assunto:

O termo ditabranda foi cunhado por um editorial do jornal Folha de S. Paulo de 17 de fevereiro de 2009. Marco Aurélio Weissheimer, em Carta Maior, nos mostra “O que a falácia da ditabranda revela”.

A lei antiterrorismo, na íntegra, com seus de autoria e tramitação, pode e deve ser  acompanhada na página do Senado.

Uma visão ponderada sobre a discussão da lei antiterrorismo está no artigo do Fábio de Sá e Silva, em Carta Maior “O terrorismo da impaciência”.

A versão da Lei de Segurança Nacional editada em 1969 está na íntegra no Portal de Legislação da Casa Civil da Presidência da República Portal de Legislação da Casa Civil da Presidência da República.

Obs: a lei aparece rabiscada nessa página para deixar claro que não está em vigência.

A LSN atual pode ser lida no Portal de Legislação da Casa Civil da Presidência da República

(*) Antonio Lassance é cientista político.