A Presidenta Dilma apresentou uma lista cinco pactos, como forma de tentar pacificar o movimento que ganhou as ruas do País nas últimas semanas. Nesse conjunto havia dois temas que merecem ocupar posição de destaque em qualquer projeto sério de desenvolvimento nacional de longo prazo. Refiro-me aqui à saúde e à educação.

A tradição histórica do Brasil republicano sempre apresentou um modelo de organização social onde tais funções deveriam ser asseguradas pelo Estado.

No entanto, o processo político experimentado sob a ditadura militar provocou um fenômeno que muitos classificaram como sendo de uma “modernização conservadora”. Ainda que os governos que se sucederam a 1964 não tenham colocado explicitamente em marcha um projeto de “privatização radical” da saúde e da educação, o fato é que foi aberta uma larga avenida para que o setor privado passasse a operar com muita mais liberdade nesses dois domínios.

O avanço das empresas na oferta desse tipo de serviço dava início ao processo de mercantilização da saúde e da educação, em meio a processo semelhante ocorrido junto a outras categorias de serviços públicos. O ensino básico e médio foi sendo paulatinamente tomado por escolas privadas, ao passo em que a rede pública ia sendo também sucateada e desmantelada. Falta de verbas, baixo investimento em equipamento e estrutura, redução relativa dos salários de professores, enfim muitas foram as causas do redirecionamento das camadas médias urbanas em busca de um ensino supostamente de melhor qualidade. No ensino superior, o processo foi mais lento, mas também ali foi aberto um universo enorme para a acumulação de capital com a negociação da nova mercadoria, a chamada “educação universitária”.

Na área da saúde deu-se fenômeno semelhante. O processo de deterioração das condições de serviços públicos oferecidos à população combinou-se ao incremento da participação de empresas privadas na criação e na gestão de hospitais, laboratórios, clínicas, maternidades e toda a sorte de serviços associados ao setor. A contrapartida desse movimento inovador foi a consolidação de um ramo de grupos gerenciando as atividades de planos de saúde e de seguros de saúde, todos privados. Antes ocupado basicamente pelas instituições filantrópicas, o espaço privado passou a operar segundo a lógica explícita do capitalismo: geração de lucro como prioridade essencial.

O processo político da transição democrática, porém, veio a oferecer uma alternativa a essa tendência mercantilizante. O desenho final do modelo votado pela Assembleia Constituinte em 1988 consolidou um modelo de organização do País, onde saúde e educação ganham destaque especial, junto com outros serviços públicos. Passam a ser reconhecidas como direito de cidadania e uma obrigação do Estado perante a população.

O Título VIII da CF trata do conjunto dos dispositivos da Ordem Social. Dentre os inúmeros capítulos, seções e artigos, cabe destacar aqui os mais significativos a respeito desses itens que constam do pacto proposto por Dilma. O artigo 196 dá os contornos gerais da abordagem sobre a saúde, enquanto os seguintes tratam do sistema Único de Saúde, das responsabilidades compartilhadas entre União, Estados e Municípios e demais temas.

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Já a educação é definida no artigo 205, enquanto os demais itens dessa seção definem atribuições dos entes federados segundo o tipo de ensino considerado, a gratuidade no âmbito do ensino público, a natureza do ensino universitário e outros aspectos do sistema educacional.

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

A caracterização do modelo em termos políticos e institucionais é muito importante, mas não é condição suficiente para seu funcionamento. Outro aspecto essencial é o relativo à atribuição de fontes de recursos para a operação dos sistemas da saúde e da educação. E, desse ponto de vista, o Brasil conheceu um enorme retrocesso no período que se seguiu logo após a promulgação na Constituição cidadã. A partir de 1990, combinando com a eleição de Collor para a Presidência da República, consolidou-se o processo de liberalização e desregulamentação generalizadas. Era uma tentativa de desmonte do ente público – a implementação dos ajustes macroeconômicos impostos pelo FMI e aceitos pelos responsáveis pela política econômica dos sucessivos governos desde então.

Com isso, o Estado não apenas deixou de investir de forma adequada nas áreas que o texto constitucional considerava como obrigatoriedade, como também passou a organizar e estimular o ingresso da iniciativa nas mesmas: saúde e educação. Assim, a tensão pela disputa de dois projetos nacionais opostos se fazia presente a cada momento na dinâmica governamental e parlamentar, secundada pelo movimento social e suas entidades representativas.

De um lado, os que pautam sua ação pela crença de que os serviços públicos deveriam ser tratados como simples mercadorias, propugnando pela retirada do Estado da condição de agente oferecedor desse tipo de bens. No lado oposto, aqueles que defendem a particularidade dos direitos listados na Constituição e a necessidade imperiosa da administração pública estar bem aparelhada para oferecer esse tipo de serviço à população.

E assim, a disputa política se ampliou e se generalizou. De maneira que sempre estava pautada na agenda política nacional alguma ameaça aos sistemas ou alguma reivindicação a respeito do desenho do modelo e da origem das verbas para sua oferta pela estrutura do Estado. Avançar ou recuar quanto às diretrizes colocadas na Constituição passou a ser a regra das divergências.

Os governantes de plantão sempre tentam alguma manobra para evitar o chamado “engessamento” do orçamento. Para tanto costumam lançar mão de expedientes como contingenciamento de recursos, cortes horizontais na atribuição das verbas, atraso na liberação das dotações para Estados e Municípios, dentre tantas outras esperteza no manejo da contabilidade pública. Como não havia definições explícitas ou quantitativas de como obter recursos para cumprir o que determina a Constituição, a lógica fiscalista acaba prevalecendo sobre as necessidades políticas e sobre a ordem social.

Os defensores de uma administração pública em condições de cumprir com suas atribuições constitucionais operam no sentido de estabelecer nos textos legais os limites mínimos para assegurar verbas para saúde e educação. É daí que surgem, portanto, as soluções do tipo “10% do PIB para educação” ou “regulamentação da Emenda 29”. Mas nem sempre esses movimentos obtêm êxito em suas movimentações. Pelo contrário, chegam a perder espaços importantes, como foi o caso da extinção da Contribuição Provisória para a Movimentação Financeira (CPMF), que servia como importante fonte de recursos para o sistema de saúde pública.

A polêmica na área da saúde foi parcialmente resolvida pela aprovação da lei Complementar n° 141, ainda no ano passado. Apesar do texto final estar muito distante das reais necessidades do setor, pelo menos o vácuo jurídico criado pela chamada Emenda Constitucional n° 29 foi preenchido. Essa emenda foi concebida em 2000 para dar uma solução provisória até 2004 – mas a coisa foi sendo empurrada com a barriga até a sanção da lei regulamentadora em janeiro de 2012. O fato mais decepcionante é que a regulamentação estabelece apenas os mínimos obrigatórios para Estados e Municípios, deixando a União com os percentuais do PIB dos anos anteriores.

Por outro lado, a conjuntura atual oferece também perspectivas mais otimistas para os defensores de um modelo fundado na oferta desses serviços pelo próprio setor público. A bandeira de “10% do PIB para educação” pode se transformar em realidade por meio da tramitação Plano Nacional de Educação (PNE) no Congresso Nacional. Aprovado pela Câmara dos Deputados, o texto se encontra em fase final de votação no Senado Federal.

Finalmente, os olhos todos se voltam para a votação do projeto de lei que destina os “royalties” do petróleo para a saúde e a educação, na proporção de 25% e 75%, respectivamente. Contra a orientação restritiva do Executivo, os parlamentares adotaram critérios mais amplos para a constituição dos recursos para esse fim. Como o projeto ainda depende de acertos em sua versão final nas votações entre Câmara e Senado, não se pode afirmar de forma definitiva os valores envolvidos.

Mas de qualquer maneira, isso significa um avanço em relação ao modelo estratégico de utilizar os recursos do pré-sal para um fundo que contribuirá para as futuras gerações de nosso País. É a possibilidade de sair do discurso para o projeto concreto. Agora, cabe muita atenção e sensibilidade para escapar das malandragens e encomendas de última hora, para fins de cálculo dos valores. Por exemplo, é necessário evitar que sejam incorporadas manobras como a de considerar os recursos transferidos paras empresas privadas de ensino superior (bolsas do Prouni) ou as despesas realizadas com planos e seguros de saúde privados no cômputo mais geral de gastos orçamentários com educação e saúde públicas.

Uma vez assegurados os recursos, deve-se dar continuidade ao processo de melhoria da gestão e maior eficiência na prestação dos serviços públicos. Afinal, ninguém é ingênuo a ponto de achar que são razoáveis os níveis de qualidade da saúde e da educação tal como oferecidas atualmente pelo Estado à sociedade brasileira. Os desafios são muitos e as tarefas são enormes. Mas aí já se trata de tema para outro artigo.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

Publicado em Carta Maior