“Se a China votasse como votam hoje as chamadas democracias liberais, teríamos lá  um governo de camponeses chineses, furiosamente nacionalista, que já estaria em guerra contra Taiwan ou Japão. Os atuais governantes são cautelosos, moderados em suas políticas externas, são pragmáticos, são educados para governar à maneira chinesa, o que atende muito bem aos interesses de todos os chineses e, de fato, como se vê, atende muito bem também aos interesses ocidentais”
[14/1/2012, Zhang WeiWei, em entrevista à Al-Jazeera, em http://www.aljazeera.com/programmes/talktojazeera/2012/01/2012114143938654345.html].

A China é quase sempre apresentada na imprensa-empresa ocidental como eivada de crises sociais e políticas, à espera de uma revolução colorida que a converta em democracia liberal. Mas o recente 18º Congresso do Partido Comunista Chinês demonstrou claramente que nada disso está previsto ou é desejado; de fato, tudo sugere fortemente que o país descobriu via própria para um presente e um futuro bem-sucedidos, chamada oficialmente de “socialismo com características chinesas”. Muitos no ocidente talvez descartem a ideia como mais uma tentativa de impedir alguma reforma política, sem a qual não haveria futuro para a China. Depois de tantas ‘predições’ sobre o futuro do Império do Meio, aqui vão cinco razões pelas quais se deve levar a sério o que Pequim diz e faz.

1. Senso comum. A população chinesa é maior que as de EUA, Europa, Rússia e Japão somadas,  jamais teve qualquer tradição de democracia liberal, e as lembranças do colapso devastador da União Soviética ainda sobrevivem bem vivas. A história recente da China mostra caos e guerras; na média, entre 1840 e 1978, houve um grande levante a cada sete ou oito anos. Portanto, os chineses têm justas razões para temer o caos, baseados só no senso comum e na memória coletiva, com medo real e bem justificável de que o país tornar-se-ia ingovernável, caso adotasse o sistema político opositor ocidental.

A China é única em vários sentidos. É um amálgama entre a civilização mais longeva que o mundo jamais conheceu, e um imenso estado moderno. É produto de centenas de estados que se foram amalgamando ao longo da história, até constituir estado único. Mais ou menos como um Império Romano que tivesse sobrevivido até hoje, se tivesse convertido num grande estado moderno unificado, com governo centralizado e economia moderna, sem perder todas as suas muitas tradições e culturas multifacetadas e diversas, com população imensíssima, que ainda falasse um só latim como língua comum para todos.

Fato é que até hoje nem a União Europeia, dos territórios onde nasceu a democracia liberal e com um terço da população da China, foi capaz de criar e manter modelo próprio de democracia liberal. Se escolher a via de eleições diretas para escolher os principais governantes, a União Europeia logo se verá mergulhada no caos e talvez se desintegre logo à primeira eleição direta.

2. Sinais empíricos. A China tentou a democracia de modelo americano depois da Revolução Republicana de 1911 e rapidamente desistiu dela, porque resultou em catástrofe devastadora. Em pouco tempo o país estava mergulhado em caos e guerra civil, com centenas de partidos políticos lutando pelo poder e os senhores-da-guerra combatendo uns contra os outros, todos apoiados, para os mais diferentes lados, por outros países do resto do mundo. A economia foi destruída e dezenas de milhões de chineses morreram nas décadas seguintes. Essa é lição que permanece bem viva na memória dos chineses comuns, de tal modo que o que mais temem é o luan – palavra chinesa para “o caos”. Pesquisas independentes construídas para conhecer os valores chineses mostram que, em praticamente todos os estratos sociais, nada supera em importância a paz e a ordem pública: é o valor principal entre os chineses, como, para os norte-americanos, ao que parece, a liberdade de expressão é o valor número um (embora os chineses não entendam bem como uma sociedade social e politicamente desigual, como é a sociedade norte-americana, conseguiria assegurar legítima liberdade de expressão para todos).

Conheço bastante bem mais de 100 países em todo o mundo, a maior parte dos quais são países em desenvolvimento, e não me lembro de ter conhecido um único caso de modernização bem-sucedida que tivesse sido conduzida em regime de democracia liberal; excelente exemplo para ilustrar essa evidência são as diferenças que separam Índia e China. Há 60 anos, esses dois países estavam em estágios muito semelhantes de desenvolvimento; hoje, o PIB da China é quatro vezes maior, e a expectativa de vida é dez anos mais longa.

3. Desempenho. Parece não haver dúvidas de que a China teve desempenho melhor que praticamente todas as democracias liberais ao longo dos 30 últimos anos, sobretudo nos domínios que mais interessam e preocupam a maioria dos chineses. A China evidentemente tem problemas, mas o sucesso do país é autoevidente e indesmentível. O desempenho da China alcança números superiores à soma de tudo que todos os demais países em desenvolvimento produziram, incluídas aí todas as democracias liberais do mundo em desenvolvimento. A pobreza que a China erradicou dentro da própria China equivale a 70% de toda a pobreza que foi erradicada no mundo nos últimos 20 anos – segundo dados da ONU.

A China pode-se orgulhar também de ter tido melhor desempenho que todas as democracias transicionais somadas: a economia chinesa cresceu 18 vezes desde 1979 (no mesmo período, a economia coletiva da Europa Oriental, por exemplo, apenas duplicou).

Além de ter tido desempenho econômico total muito melhor que muitos países desenvolvidos, a China já tem hoje uma “região desenvolvida”, com população de cerca de 300 milhões de habitantes, equivalente à população dos EUA, e em vários aspectos equivalente aos países mais desenvolvidos, tanto na prosperidade geral quanto na expectativa de vida. As metrópoles chinesas de primeiro nível, como Xangai, competem hoje com New York ou Londres; e a “região desenvolvida” está em interação dinâmica e para mútuo benefício, com o resto da China – a “região emergente”. Essa interação para fortalecimento mútuo explica em boa medida por que a China consegue crescer tão rapidamente.

4. Competição desenfreada. O modelo de democracia liberal vê-se cercado de problemas terríveis, crises financeira e econômica, os EUA terrivelmente endividados, a Europa pressionada por dentro e por fora. Apesar de suas capacidades bem conhecidas, a democracia liberal é instituição que se deixou erodir por problemas persistentes de demagogia, projetos sempre de curtíssimo prazo, populismo simplório, excessiva influência do poder do dinheiro, e grupos de interesses privados especiais em postos criados para defender interesses coletivos gerais.

O ideal de Abraham Lincoln, de “governo do povo, pelo povo, para o povo” mostrou-se inalcançável em todas as democracias liberais onde foi tentado. Nas palavras de Joseph Stiglitz, Nobel de Economia, criticando talvez com excesso de dureza o sistema nos EUA, disse que é “governo do 1%, pelo 1%, para o 1%”. Até Francis Fukuyama, que tanto pregou o fim da história como remédio para todos os males, lamentou, em coluna para o Financial Times, há dois anos, que a democracia dos EUA tivesse hoje tão pouco a ensinar à China.

5. O modelo chinês. Os sucessos econômicos do modelo chinês atraíram atenção global, mas falou-se comparativamente pouco do modelo político e suas ramificações institucionais, talvez por razões ideológicas. Sem alarde, Pequim introduziu reformas significativas na governança política e implantou sistema que se pode chamar de “eleições + seleção”: líderes que se comprovem competentes são selecionados por desempenho e apoio popular, mediante vigoroso processo de acompanhamento, pesquisas de opinião, avaliações internas e inúmeras eleições diretas de pequena escala.

Alinhada à tradição confuciana de governança meritocrática, Pequim pratica a meritocracia – nem sempre com integral sucesso – em todo o estrato político. Os critérios de desempenho na erradição da pobreza, criação de empregos, desenvolvimento econômico local e, cada vez mais, atenção ao meio ambiente são fatores chaves na ascenção e promoção de governantes e administradores públicos locais. O crescimento dramático da China nas últimas três décadas não pode ser separado desse modelo político meritocrático. À parte casos escandalosos de corrupção de funcionários e outras tragédias pessoais-sociais, a governança na China, como a economia chinesa, permanecem robustas e resistentes.

Bom exemplo disso viu-se agora, quando saiu, do 18º Congresso do Partido Comunista Chinês, a próxima geração de governantes chineses. Seis, dos sete membros do Comitê Central do Politburo, o mais alto corpo decisório da política chinesa, serviram pelo menos por dois mandatos como secretários do Partido em alguma província da China, e tiveram desempenho destacado. É indispensável ter talento e capacidade excepcionais, para governar uma típica província chinesa – uma província chinesa de tamanho médio tem território equivalente a cinco países europeus somados.  O sistema chinês meritocrático impediria, completa e absolutamente, que governantes notoriamente incompetentes como George W. Bush, dos EUA; ou Yoshihiko Noda, do Japão, jamais chegassem à presidência de seus respectivos países.

Não é exagero dizer que o modelo chinês leva mais a sério os próprios governantes e a própria responsabilidade de governar, e é mais eficaz no planejamento para a próxima geração; enquanto a democracia liberal não dá qualquer interesse nem aos reais conhecimentos e talentos sociais e políticos dos candidatos (são avaliados como se fossem candidatos a emprego de apresentador de telenoticiários), nem cuidam de qualquer planejamento para formar novas gerações de governantes (no máximo, a democracia liberal preocupa-se com ter candidato a apresentar à próxima campanha eleitoral e à eleição seguinte; e o eleito tem, de futuro, apenas os primeiros 100 dias, ao final dos quais é ‘julgado’, no máximo, por jornalistas). 

A governança meritocrática chinesa desafia a dicotomia estereotipada e ideologizada de democracia versus autocracia. Do ponto de vista chinês, a natureza do Estado, inclusive sua legitimidade, tem de ser definida por sua própria substância: boa governança, comando competente e sucesso no trabalho de satisfazer os cidadãos. Por isso, apesar das deficiências que o sistema ainda apresenta, as políticas e os governantes chineses selecionados por esse sistema de construção e seleção já produziram a economia que mais cresce no mundo e já melhoraram as condições e o padrão de vida da maioria dos chineses.

Segundo pesquisa do Instituto Pew, que tem sede em Washington, 82% dos chineses pesquisados em 2012 declararam-se otimistas quanto ao futuro. Não se veem números semelhantes em nenhuma das democracias liberais ocidentais..

A frase famosa de Winston Churchill, para quem “a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras jamais tentadas” talvez faça algum sentido na cultura ocidental. Para muitos chineses, a frase de Churchill soa como paráfrase do que Sun Tze, o grande estrategista chinês, chamou de xiaxiace (a saída menos ruim, dentre duas saídas ruins), saída pela qual os maus comandantes sempre podem tentar salvar a própria pele. Mas na China, a tradição de meritocracia, vista à luz do que Confúcio ensina, obriga o Estado a sempre e necessariamente buscar o que se diz shangshangce, a melhor dentre as melhores alternativas; por isso, na China, dá-se a máxima atenção à formação e a escolha dos governantes.

Evidentemente, não é fácil, mas nem por isso os esforços podem esmorecer. Até aqui, as inovações políticas e institucionais introduzidas pela China já produziram um sistema que, em vários sentidos, combina a melhor via para selecionar governantes bem testados por critérios meritocráticos, e a  opção menos ruim (a melhor dentre opções todas ruins) de poder excluir do governo os governantes que não satisfaçam ao interesse coletivo, por ato de uma liderança coletiva, com mandato e idade limitados.

O modelo meritocrático chinês, de “seleção + eleição”, com as feições que está assumindo, ganha cada vez mais condições de competir com sucesso contra o modelo ocidental de democracia popular.

A China muito aprendeu do Ocidente, e continuará a aprender, para seu próprio benefício. Talvez seja hora, agora, de o Ocidente, nas palavras de Deng Xiaoping, “emancipar a própria mente” e começar a aprender com as ideias e práticas chinesas. Esse modelo chinês, com melhorias de que ainda precisa e certamente virão, é o modelo que pavimentará o caminho dos chineses para mais uma década de ascensão, até a posição de maior economia do mundo, com todas as consequências e efeitos econômicos e políticos que daí advirão, para a China e para todo o mundo.
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* Zhang Weiwei é professor de Relações Internacionais na Universidade Fudan, de Xangai, autor do recente The China Wave: Rise of a Civilizational State. Trabalhou como intérpreto para Deng Xiaoping e outros governantes chineses, em meados dos anos 1980s. Recebe e-mails em [email protected]

Publicado originalmente em Europe’s world – http://goo.gl/Pv8tn

Traduzido pelo coletivo Vila Vudu