Fosse ainda vivo, o teórico da propaganda política e da publicidade comercial Edward Bernays franziria o cenho diante das invectivas bélico-nucleares do governo norte-coreano contra o norte-americano.

Por outro lado, as reações de Washington à mobilização gigante e à declaração de guerra do país fundado por Kim Il-sung e dirigido por seu neto Kim Jong-un revelam inegável preocupação com uma das nove nações nuclearizadas do planeta.

Jamais se chegou a um consenso sobre a origem da divisão da península coreana durante a Conferência de Potsdam (1945): partira de Stalin ou de Truman? Curiosa proposta essa, de criarem-se duas áreas de ocupação num país não beligerante.

Na prática, a divisão territorial de um povo muito antigo acoplada às explosões atômicas de Hiroshima e Nagasaki e às invasões soviéticas da Manchúria e do Japão marcaram o início da Guerra Fria. Na prática, convém repetir, porque a tomada de Berlim e a mentalidade antianarquista e anticomunista reinante nos EUA não devem ser esquecidas nessa ontologia guerreira de disputas ideológicas em aparência, conquanto intrinsecamente estratégicas.

Os EUA se empenhariam desastradamente em “não perder a China”, conceito vezeiro no Departamento de Estado, de modo que os ocupantes designados teriam de ser implacáveis. Até 1948, data oficial da desocupação, registraram-se massacres de mais de 200 mil pessoas. Os massacres de esquerdistas e social-democratas, já empregando “mão de obra” nacional, estão inscritos como ultrajes históricos dos coreanos. Já da ocupação soviética ao norte comenta-se pouco, salvo quanto ao treinamento de tropas e entrega de equipamento militar.

Os norte-coreanos, e também multidões no mundo inteiro, forçoso reconhecê-lo, acham justo que, no processo de desenvolvimento nuclear, suas forças armadas contem com armas e explosivos originados em tais pesquisas.

Em outras palavras, como os cinco do Conselho de Segurança das Nações Unidas não puseram cobro ao aperfeiçoamento de seus artefatos nucleares, outros países asiáticos -Índia, Paquistão, Israel e RPDC (República Popular Democrática da Coreia)- decidiram adotá-los. Com a saída da última do TNP (Tratado de Não Proliferação) em 2006, nenhum deles se vê obrigado a proibir os engenhos, mas só um é sancionado, a Coreia do Norte.

O problema central da questão coreana é o da sua reunificação: duas ocupações depois de 1945, uma guerra em que pereceram 2,5 milhões de civis, um armistício com o sul que acaba de ser denunciado e uma fronteira tida como “desigual” pelo norte, na verdade, tornaram-se empecilhos menores que o causado pela falta de negociações de Pionguiangue (Pyongyang, em grafia prosódica inglesa) com Washington. Não que inexistam contatos.

Há, porém, equívocos, que se acumulam nas incursões diplomáticas que houveram. A militarista RPDC tem opositores em Washington, e não apenas nas hostes mais acirradamente anticomunistas dos republicanos: o Pentágono, eis aí.

Se a China é crescentemente visada e a Rússia passou a dispor de prioridades nas pranchetas de planejamento militar dos EUA, não é difícil inferir-se que o regime sem par da RPDC, verificando que é, mais que abandonado, acuado com severíssimas sanções das Nações Unidas, reage conforme suas prementes necessidades de fazer-se valer perante o mundo.

A questão coreana é um tema que merece mediações, envolvendo Washington principalmente, Moscou, Pequim, Seul e Tóquio. Por que não encarregar do assunto emissários especiais de países não nuclearizados e fora dos esquemas de alianças defensivas? Por que não um membro do mecanismo Brics?

Afinal, o vienense Edward Bernays precisa do seu merecido descanso, após 104 anos de existência.

ARNALDO CARRILHO, 75, é consultor de negócios com o Oriente Médio e Ásia. Foi o primeiro embaixador do Brasil (2009-12) na Coreia do Norte

Publicado em TENDÊNCIAS/DEBATES da Folha de S. Paulo de 6/4/2013