Publicado no jornal Avante

A eurocracia bruxelense costuma apresentar a crise na UE/Zona Euro como sendo o resultado de um desditoso «contágio». Como a peste da batata no século XIX, a crise veio do outro lado do Atlântico.

Primeiro, as «falhas de regulação» permitiram erigir gigantes financeiros com pés de barro. Depois, o desabar desses gigantes provocou tal tsunami financeiro que o velho continente – onde a «regulação» imitava, grosso modo, as «boas práticas» do parceiro norte-americano – se viu afundado na mesma crise.

Como bem sabemos, as causas da crise são muito mais profundas e vão muito além das proclamadas falhas de regulação e de supervisão do sistema financeiro. Mas, efectivamente, estas falhas potenciaram e muito os efeitos da irrupção da crise capitalista.

A partir de 2008, não houve quem não zurzisse na «irresponsabilidade» dos banqueiros. De Cavaco a Chirac, de Merkel a Barroso e tantos outros. E ao mesmo tempo que zurziam, prometiam uma ação enérgica e um «murro na mesa» perante a irresponsabilidade.

Como sempre, o tempo passou e algumas das promessas então feitas levou-as o vento: do fim dos paraísos fiscais ao imposto sobre as transações financeiras, passando pelo fim dos «produtos» financeiros derivados. A fatura da «irresponsabilidade», essa foi endossada aos trabalhadores e aos povos.

«Garras afiadas»? Só as do capital financeiro

O salto federalista em curso na integração capitalista europeia, visando o aprofundamento (alguns têm a desfaçatez de dizer «o aperfeiçoamento») da União Económica e Monetária (UEM), inclui uma proposta de «união bancária». Simplificando, pretende-se atribuir ao Banco Central Europeu (BCE) o poder de supervisão sobre os bancos dos países da Zona Euro, agora sujeitos a novas regras de regulação.

Diz a eurocracia bruxelense que este é um passo essencial para «afiar as garras» da supervisão e da regulação bancária; que será este o há muito aguardado «murro na mesa» perante a «irresponsabilidade».

A proposta de «união bancária» foi saudada pela generalidade dos banqueiros europeus. Ora, como explicar o regozijo de quem, consabidamente, gosta pouco que interfiram com o seu negócio, mais ainda, alguém com «garras afiadas»?

A resposta é simples: toda a reforma regulatória levada a cabo pela UE foi determinada pelo próprio capital financeiro.

Após o colapso do Lehman Brothers, a UE constituiu um primeiro «grupo de peritos» incumbido de estudar a reforma da regulação do sistema financeiro. O chamado «Grupo Larosiére» (nome de um alto quadro do banco BNP Paribas) era constituído por sete membros, cinco dos quais com fortes ligações a grandes instituições bancárias.

Posteriormente, Michel Barnier, o Comissário encarregado da reforma, constituiu um novo «grupo de peritos» em assuntos bancários. Dos 42 membros, 34 eram oriundos de grupos bancários e de investimento.

Os maiores bancos europeus determinaram todo o processo. O resultado foi à medida dos seus interesses. Os requisitos de capital foram fixados abaixo dos dez por cento, quando estudos iniciais recomendavam 20 por cento (mesmo o sr. Greenspan, nos EUA, recomendava 13 a 14 por cento). Qualquer estado-membro que queira elevar os requisitos de capital, de forma a proteger o seu sistema bancário, vê-se forçado a entrar numa disputa com a Comissão Europeia e pode ser impedido de o fazer, caso esta considere que se está a «minar o mercado único». E até os «rácios de alavancagem» (dinheiro emprestado em comparação com os activos) foram enfraquecidos a tal ponto que o próprio Lehman Brothers teria cumprido com os rácios agora exigidos pelas «garras afiadas» do regulador europeu…

Ataque à democracia

A UEM privou os estados da política monetária; limitou-lhes fortemente a política orçamental e fiscal. São instrumentos fundamentais para adequar as políticas públicas às necessidades e anseios de cada país e de cada povo. Necessidades e anseios que podem, evidentemente, ser diversos, porque diversa é a situação de cada país. Agora, pretendem retirar do controlo dos estados a supervisão e a regulação do setor financeiro. Fundamental para o financiamento das economias dos países, este setor deixaria de estar sob alçada dos estados – e, nessa medida, sujeito ao controlo e escrutínio público, democrático – para passar a estar sob controlo do BCE. Paulatinamente, os povos vão sendo privados de instrumentos fundamentais para a determinação do seu futuro, para a concretização dos seus anseios e aspirações.

Acentua-se o clamoroso confronto da UE com a democracia.