Fábio Palácio*

Metáforas políticas inspiradas em conceitos psicanalíticos; piadas sobre as lacunas e insuficiências da tradição marxista; reflexões sobre temas caros à filosofia, a exemplo das relações entre ser e linguagem; hipóteses extraídas da tradição dos estudos culturais, como a de que a luta de classes pode estar presente, de forma velada, até mesmo em filmes de terror. Tudo isso – e muito mais – “gratinado” com pitadas de Hegel, Marx e outros pensadores.
Estes são apenas alguns dos ingredientes da mistura teórica servida pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek às quase 800 pessoas que, na noite da última sexta-feira (8), lotaram o teatro Paulo Autran do Sesc Pinheiros para ouvir sua conferência “De Hegel a Marx… E de volta a Hegel! A tradição dialética em tempos de crise”.
O evento, uma promoção da editora Boitempo em parceria com o Sesc, teve o apoio das fundações Maurício Grabois, Lauro Campos e Rosa Luxemburgo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU-USP. Formada em sua imensa maioria por jovens e estudantes, a distinta plateia congregava ainda professores, pesquisadores, artistas e curiosos das tradições e da cultura dos meios marxistas e de esquerda.
A conferência foi aberta por Ivana Jinkings, da editora Boitempo, que relatou os propósitos e a estrutura do ciclo “Marx: a criação destruidora”, no qual se insere, como momento alto, a conferência de Zizek. À fala de Jinkings seguiram-se as saudações das entidades apoiadoras. Adalberto Monteiro, presidente da Fundação Maurício Grabois, saudou a presença de Zizek no Brasil e lembrou que, na atualidade, o ideário socialista volta a se colocar com força na ordem do dia. Monteiro citou como exemplo o episódio do falecimento do presidente venezuelano Hugo Chávez, que causou forte comoção mundial, colocando em evidência o sentimento anticapitalista e o renovado vigor dos projetos emancipatórios.

Legado de Chávez

“Peço desculpas por usar a linguagem universal do imperialismo.” Com essa referência ao fato de comunicar-se em inglês, Slavoj Zizek deu início a sua apresentação. O esloveno – alcunhado pela grande imprensa de “filósofo pop” – retomou o tema da morte de Chávez usando-o como uma espécie de “fio condutor” de sua exposição, de resto entrecortada na estrutura e variegada nos temas.
Chávez deixa, na opinião de Zizek, um “legado ambíguo”. Há, por um lado, pontos passíveis de crítica no projeto chavista, como seu voluntarismo no campo econômico ou medidas políticas consideradas inadequadas – como a proibição na Venezuela do desenho animado “Os Simpsons”. Por conta de atitudes como essas, Zizek afirmou que por muito tempo não fez bom conceito do líder venezuelano.
Porém, “tudo isso é pálido quando nos damos conta do imenso sistema de apartheid social existente hoje no mundo, com o crescimento de favelas e bairros pobres habitados por uma população marginalizada que se tornou a clientela favorita da caridade liberal”. Segundo o conferencista, a caridade tornou-se mais que uma manifestação de altruísmo. Em tempos de crise, ela virou estilo de vida. “Por exemplo, se você vai à Starbucks tomar um café, paga mais caro e sai feliz porque parte do seu dinheiro vai para as crianças carentes da África.” O projeto chavista é importante, na visão de Zizek, porque percebeu que o apartheid social amplia-se cada vez mais e que soluções baseadas nesse tipo de atitude – uma caridade nada desinteressada, e até egoísta – não são suficientes.
Ademais, Chávez não apenas “cuidou dos pobres, no sentido peronista”. Ele colocou todas as suas energias na tarefa de mobilizar o povo. “A Constituição americana fala em governo do povo, pelo povo, para o povo. É o que realizou Chávez. É preciso então considerar esse fato, mesmo sabendo que ele falhou em muitos pontos.”

“Difícil mesmo é mudar a vida ordinária”

O modelo chavista, fortemente estribado na mobilização popular, conduziu Zizek a uma reflexão sobre modelos de participação social e política. “A noção de passagem do ‘em-si’ ao ‘para-si’, que o marxismo herdou de Hegel”, diria muito sobre o que ocorre na Venezuela. Segundo Zizek, os teóricos de extração “deleuziana”, como Toni Negri, apostam no modelo das “multidões moleculares”, com seu ideal do indivíduo autônomo, atuante e consciente, de cujo somatório são compostas as grandes massas. É um modelo que menospreza o papel de lideranças políticas e organizações centralizadas. “Eu pessoalmente confesso que não gostaria de ser obrigado a permanecer mobilizado 24 horas por dia, de maneira a poder prescindir de um líder. Tenho muitas outras coisas a fazer, além de acompanhar todos os assuntos que me pareçam politicamente importantes”, ironizou.
Segundo Zizek, “não há nada de protofascista na figura da liderança política”. Para abrir espaço à participação no plano local é necessário, sim, dar ensejo a grandes estruturas sociais e políticas. Além disso, ressaltou o filósofo, a verdadeira medida do processo transformador não são os grandes momentos de clímax protagonizados pelas grandes massas. Zizek citou como exemplo os acontecimentos do Maio de 1968: “A direita adora esses momentos de êxtase coletivo”, que quase sempre terminam em refluxo, apostasia e expectativas frustradas. O difícil, para o conferencista, não está em promover momentos de excepcionalidade. “Difícil mesmo é mudar a vida ordinária”, assegurou.

Importância do universalismo

Outro tópico abordado por Zizek a partir de sua reflexão sobre Chávez foi o tema do eurocentrismo – conceito caro à vertente dita “pós-colonial” dos estudos culturais. Conforme lembrou, o projeto bolivariano muitas vezes defendeu o retorno a soluções oriundas de populações indígenas e tradicionais. “Não creio que isso seja a solução, e por conta disso já fui chamado de eurocêntrico por amigos da Índia. No entanto, se observarmos a situação da própria sociedade indiana, veremos que ela se tornou uma moderna civilização pós-colonial”, afirmou o esloveno, lembrando que, quando de sua independência da Grã-Bretanha, a sociedade indiana não optou simplesmente pelo retorno a tradições milenares. Homens como Nelson Mandela e Malcolm X também foram evocados por jamais terem caído na “armadilha multiculturalista” de propor o retorno a soluções tradicionais. “Nunca esqueçam a lição básica de Marx: para superar o capitalismo é preciso passar por ele”, sentenciou.
Essa importância e essa realidade do universalismo teriam sido muito bem captadas por Hegel. Em sua Lógica, o pensador romântico introduz a noção de algo que não desaparece com sua queda, mas que, ao contrário, emerge de sua própria perda. Ao retomar a formulação hegeliana, Zizek postulou: “Muitos podem pensar que o multiculturalismo é um projeto de esquerda”. A fim de combater esse engano, seria necessário lembrar que a burguesia e os imperialistas sempre se utilizaram do particularismo multicultural tendo em vista seus próprios interesses. Nesse ponto o filósofo parece recordar as condições que levaram ao surgimento da Antropologia, ciência que nasce sob a égide da partilha colonial do planeta.

Empreendedorismo do eu

Citando o pensador norte-americano Fredric Jameson, Zizek afirmou que a humanidade vivencia uma época “cínica”, na qual nada é verdadeiramente levado a sério. Alguns partem dessa constatação para extrair dela a conclusão de que qualquer crítica da ideologia se teria tornado inútil. Para Zizek isso é falso: “A teoria do fetichismo de Marx tem aqui grande importância: há realidade e há ilusões. O problema é que as ilusões não têm caráter marginal. Ao contrário, elas ocupam o próprio coração de nossas vivências cotidianas. Por isso continuamos precisando da crítica da ideologia. Ela nunca foi tão necessária”.
Na visão do conferencista, uma das ilusões hoje mais amplamente disseminadas é aquela que ele classifica como “empreendedorismo do eu”. “Ela se resume na seguinte assertiva: ‘Todos, ricos ou pobres, somos capitalistas’.” Esse “empreendedorismo do eu” – baseado em bordões como “Decida e faça você mesmo!” ou “Você não precisa dos favores do Estado” pretende fazer passar a escravidão como se fosse a própria liberdade.
No entanto, adverte Zizek, a ideologia não é hoje o único mecanismo de controle usado pela ordem dominante. Há ainda instrumentos de natureza econômica e política que completam a missão, como os ciclos de endividamento. No plano coletivo, a dívida jogaria papel idêntico ao que é operado, no plano do psiquismo individual, pela noção freudiana de “superego”. “Manter sociedades inteiras em permanente situação de endividamento é uma das mais eficientes formas de controle”, teorizou.

Repensar o marxismo

Para Zizek, é inegável que “o comunismo falhou”, que uma primeira rodada de experiências socialistas foi derrotada. Em face dessa situação, pergunta-se, como evitar a queda em um pensamento meramente cínico-irônico, segundo o qual nada mais haveria a ser feito? O pensamento de Hegel ofereceria, novamente, a solução: é preciso persistir, ter visão histórica, olhar além das experiências que falharam talvez por insuficiência, por imaturidade. “Hegel era às vezes mais materialista do que o próprio Marx”, postulou o esloveno, para emendar em seguida: “A filosofia de Hegel é aberta, avessa a previsões teleológicas, flexível a ponto de poder abrigar quaisquer contingências”.
“Claro que precisamos repensar Marx”, afirmou. Questões como a do papel estratégico do proletariado, por exemplo, continuam a exigir novas e mais avançadas respostas. “Ainda é ele mesmo [o proletariado] o verdadeiro sujeito coletivo da revolução?”, questiona-se o esloveno, para quem pensadores como Jameson oferecem respostas interessantes. “Segundo Jameson, é necessário incluir os desempregados entre os explorados” potencialmente revolucionários. “O desempregado de hoje não é o mesmo da época de Marx”, constatou.

Europa e América Latina

A Europa vive hoje sob forte crise econômico-social. A partir dessa constatação, Zizek pergunta se o modelo chavista valeria para além da América Latina. Sua resposta a essa questão é negativa. Ele circunscreve o significado do projeto bolivariano à própria América Latina. É nesse momento que sua dialética parece entrar em colapso, dando razão aos “amigos indianos” que o acusam de eurocentrismo.
Afinal, não custa comparar a resposta de Zizek sobre o bolivarianismo à de Lenin quando questionado sobre o significado universal da Revolução Russa. Para o teórico e líder russo, a experiência soviética não seria passível de repetição, em todos os seus detalhes, fora do contexto russo. Ainda assim, ela possuiria, sim, significação universal, pois guardaria simbolismo e lições capazes de inspirar a luta universal dos povos por sua emancipação.
Mas o que vale para a Revolução Russa parece não ter o mesmo efeito para o projeto bolivariano, se tomarmos por base a visão de Zizek. Mesmo assim, talvez sentindo a decepção da plateia, talvez reconhecendo os limites de sua própria resposta, o conferencista gira sobre os calcanhares e conclui: “Vocês [brasileiros e latino-americanos] vem dando ao mundo uma lição”. A afirmação faz referência ao momento de maior afirmação soberana dos países latino-americanos, expresso por meio de atitudes como o rompimento com o FMI. A experiência recente desses países teria revelado a existência de alternativas ao receituário do pensamento único neoliberal emanado dos países centrais. “As potências dominantes, isto é, os países de capitalismo mais avançado, propõem às nações do Terceiro Mundo o enfraquecimento do Estado. Nada mais distante do que praticam esses países, nos quais é sempre muito proeminente o papel do Estado e das instituições regulatórias”, finalizou Zizek antes de partir, em estado de quase euforia, para a seção de autógrafos de seu novo livro, “Menos que nada – Hegel e a sombra do materialismo dialético”.

* Jornalista, diretor da Fundação Maurício Grabois.