Para sermos mais exatos – indo mais longe do que este outro ideólogo da Restauração que é Baader – estamos na presença de uma “loucura de possessão satânica”; ao derrube do Antigo Regime sucedeu não a democracia mais sim a “demonocracia” , ou seja, o poder de Satã.

Mais tarde, após a vaga da revolução de 1848 e sobretudo da revolta operária, Tocqueville vai desenvolver a abordagem psicopatologisante: o que vai explicar a “doença da Revolução Francesa” é a propagação de um “vírus de uma espécie nova e desconhecida” . Nos seus Souvenirs, referindo-se ao momento em que começa a subir a agitação que desembocará nas jornadas de Junho, o liberal francês faz dizer a “um médico de mérito que dirigia então um dos principais hospitais de loucos de Paris”: “Que infelicidade e como é estranho pensar que são loucos, verdadeiros loucos, que provocaram isto! A todos operei ou tratei. Blanqui é um louco, Barbès é um louco, Sobrier é um louco, Huber sobretudo é um louco, todos loucos, senhor, que deveriam estar no meu [hospital de] Salpêtrière e não aqui”. Tocqueville acrescenta a seguir: “Sempre pensei que nas revoluções e sobretudo nas revoluções democráticas, os loucos, não aqueles aos quais se dá este nome por cortesia, mas os verdadeiros, desempenharam um papel político muito considerável”.

A referência a forças de alguma forma infernais não faltará daí em diante: nas jornadas de Junho, Tocqueville ouve soar “uma música diabólica” nos bairros que se preparavam para resistir e que convocam os habitantes à luta tocando a “generala”. Os habitantes ouvem e preparam-se com um “ar sinistro”, perdendo seus traços humanos. Eis a agitar-se de modo insensato uma “velha” que parece uma feiticeira: “A expressão odiosa e terrível do seu rosto fez-me horror, tanto o furor das paixões demagógicas e a raiva das guerras civis estavam nele bem representados”.

Na véspera da Comuna de Paris, a abordagem psicopatológica celebra o seu triunfo com Taine:
“Se há para os corpos doenças epidémicas e contagiosas, há também para os espíritos e esta é então a doença revolucionária. Ela se encontra em simultâneo sobre todos os pontos do território e cada ponto infectado contribui para a infecção dos outros […] Em todas as partes as mesma febre, o mesmo delírio e as mesmas convulsões indicando a presença do mesmo vírus, e este vírus é o dogma jacobina”.

Não só a Comuna como todo o ciclo revolucionário francês é posto na conta do “vírus” e da “alteração do equilíbrio normal das faculdades” . Lancemos um olhar a tal ou tal ator da revolução: “O médico reconheceria de imediato um destes loucos lúcidos que não encerra, mas que são os mais perigosos”. Com efeito, Marat comporta-se como “seus companheiros [do hospital] de Bicêtre”. Como se pode ver, passamos do Sapetrière de Tocqueville para o Bicêtre, mas a explicação das crises revolucionárias continua a ser procurada nos hospícios.

Aos olhos de Taine também a loucura revolucionária tem algo de diabólico. Se Voltaire é um “demónio encarnado”, Saint-Just e o protagonista de uma espécie de rito satânico: “Esmagar e subjugar torna-se uma voluptuosidade intensa, saboreada pelo orgulho íntimo, um fumo de holocausto que o déspota queima no seu próprio altar; neste sacrifício quotidiano, ele é em simultâneo o ídolo e o padre, e oferece-se vítimas para ter consciência da sua divindade” .

O ciclo que principia na Rússia em 1905 é comparável ao ciclo revolucionário francês. A cultura dominante vai então reactualizar o “diagnóstico” já efectuado. O “vírus de uma espécie nova e desconhecida” migra da França para a Rússia: é assim, num retorno explícito a Tocqueville, que argumentam François Furet e o sovietólogo estadunidense Richard Pires.

A leitura em termos psicopatológicos das grandes crises históricas está de tal modo difundida atualmente que até se pode observá-las nas categorias centrais do discurso político. Em 1964, Adorno vê no “totalitarismo psicológico” o fundamento do totalitarismo propriamente dito: há indivíduos que “não têm à sua disposição senão um eu fraco e em consequência têm necessidade, como substituto, da identificação com um grande coletivo e da sua cobertura”. Não só desvanece-se assim a situação objetiva, a geopolítica e a história, mas os próprios ideólogos não desempenham qualquer papel: “Os caracteres submetidos à autoridade são avaliados de modo totalmente errôneo ainda que sejam construídos a partir de uma ideologia político-econômica determinada”.

A deriva psicologista acaba por emergir também em Arendt. Com efeito, é recorrente nas Origens do totalitarismo a denúncia do “desprezo totalitário pela realidade e pelos próprios fatos”, pela “loucura” que a “sociedade totalitária” demonstra. Esta não é a busca com métodos brutais e sem nenhum escrúpulo moral de objetivos em todo caso logicamente compreensíveis. Não, no totalitarismo tratamos dos “paranóicos”: “A agressividade do totalitarismo não nasce do apetite de poder e o seu expansionismo ardente não visa a expansão para si mesmo, não mais do que o lucro; suas razões são unicamente ideológicas: trata-se de tornar o mundo mais coerente, de provar o bom fundamento do seu mau entendimento. Por outras palavras, o totalitarismo é a loucura que quer a loucura.

Eis-nos chegados de alguma forma à cultura da Restauração, como se verifica a partir de um pormenor ulterior. Quanto aos “regimes totalitários” (não só o regime hitleriano como também o staliniano), Arendt faz intervir a categoria de “mal absoluto”, que já não podem mais explicar “as vis motivações do interesse pessoal, da culpabilidade, da cobiça, do ressentimento, do apetite de potência e da covardia” e que portanto não pode ser explicado racionalmente. O Satã de que fala a cultura da Restauração é aqui tornado o mysterium iniquitatis.

Mas porque a abordagem psicologisante deve ser considerada como errônea e mistificadora? Vejamos o que se passa nos Estados Unidos, nas vésperas da Guerra de Secessão, ou seja, deste trágico conflito que acaba por desembocar numa revolução abolicionista. Nos campeões do Sul escravocrata, comparam-se os abolicionistas aos jacobinos, eles próprios afetados pela loucura. Mas ocorre aqui uma novidade. Faz-se também um diagnóstico psicopatológico para os escravos. O número dos escravos fugitivos aumenta e os ideólogos da escravatura espantam-se: como é possível que pessoas “normais” se subtraiam a uma sociedade tão bem ordenada? Eis-nos claramente na presença de um espírito perturbado. Mas de que se trata? Em 1851, Samuel Cartwright, eminente cirurgião e psicólogo da Luisiânia, partindo do facto de que em grego clássico drapetes é o escravo fugitivo, conclui triunfalmente que a perturbação psíquica que leva os escravos negros à fuga é precisamente a drapetomania . Outros ideólogos constatam que os escravos não obedecem mais às ordens dos mestres com a mesma celeridade anterior. O diagnóstico psicopatologisante intervém de novo: a doença em questão é agora a “disestesia”, ou seja, a incapacidade dos escravos para compreender e reagir com celeridade às ordens do mestre .

No século XIX vemos desenvolver-se uma outra revolução, a revolução feminista. E novamente caímos na denúncia da loucura e da degenerescência que estaria na base desta novidade incrível. É um grande filósofo, Friedrich Nietzche, que fala das protagonistas desta revolução como mulheres falhadas que desconhecem a sua natureza de mulheres e são mesmo incapazes de engendrar: “Emancipação da mulher – eis o que é o ódio instintivo da mulher falhada, ou seja, incapaz de procriar, contra a mulher de bom comportamento”. A polémica contra o movimento feminista é tão rude que leva o filósofo a declarações de um filistinismo desarmante. As “emancipadas” seriam “mulheres fracassadas” ou então “aquelas que não o estofo para terem filhos”. Pode-se tirar uma conclusão: historicamente, não se encontra desafio à opressão que não tenha sido taxado de loucura, de deformação da saúde e da normalidade.

De resto, o diagnóstico psicopatologisante caracteriza-se pelo seu lado arbitrário. Pode-se constatá-lo até nos grandes autores. Em 1950, ao publicar seus estudos sobre a “personalidade autoritária”, Adorno sublinha a “correlação entre anti-semitismo e anti-comunismo” e acrescenta a seguir: “Durante os últimos anos todo o mecanismo de propaganda na América foi consagrado a desenvolver o anti-comunismo no sentido de um “terror” irracional”. Naquele momento, aqueles que foram afetados por perturbações psíquicas eram os anti-comunistas; em 1964, em contrapartida, Adorno inserirá exactamente os comunistas, com os fascistas, entre as personalidades intrinsecamente autoritárias e inclinadas ao totalitarismo!

O diagnóstico psicopatologisante toma habitualmente como alvo os campeões da revolução, nunca os da guerra

Também vale a pena notar que o diagnóstico psicopatológico toma habitualmente como alvo os campeões da revolução, nunca os da guerra. Os loucos são Robespierre e os jacobinos, mas não os girondinos feitores da guerra, cujas consequências devastadora para a liberdade civil e política são denunciadas de modo antecipado e com uma grande lucidez exactamente por Robespierre. Os loucos são os bolcheviques que invocam a Revolução para por fim à carnificina da Primeira Guerra Mundial, não aqueles que, prolongando a participação da Rússia nesta carnificina, não hesitam em sacrificar milhões de pessoas e em provocar no país uma crise política, económica e social de proporções espantosas. Mais ainda, a Primeira Guerra Mundial é saudada não só na Rússia mas em todo o Ocidente como um momento de regeneração espiritual exaltante e os maiores intelectuais da época empenham-se nesta obra de celebração e de transfiguração.

Finalmente. Vimos Tocqueville identificar na obra de um “vírus de uma espécie nova e desconhecida” a causa do interminável ciclo revolucionário francês. Mas porque o autor desta explicação não poderia ser submetido, também ele, a um diagnóstico psicopatológico? Para demonstrar a loucura da “raça de revolucionários que parece nova no mundo” e que está a actuar em França, ele observa que esta “não só pratica a violência, o desprezo do direitos individuais e a opressão das minorias, mas, o que é novo, professa que assim deve ser”. E vejamos agora como o liberal francês celebra a primeira guerra do ópio:

“Trata-se de um grande acontecimento, sobretudo se se sonha que não é senão a sequência, o último termo de uma multidão de acontecimentos da mesma natureza que, todos eles, empurram gradualmente a raça europeia para fora da sua casa e submetem sucessivamente ao seu império e à sua influência todas as outras raças […]; é a submissão de quatro partes do mundo pela quinta. Não difamemos nosso século e nós próprios; os homens são pequenos mas os acontecimentos são grandes”.

Ou então vejamos qual comportamento Tocqueville sugere ao exército francês empenhado na conquista da Argélia:

“Destruir tudo o que se pareça a uma agregação permanente de população, ou por outras palavras, a uma cidade. Creio da mais alta importância não deixar subsistir ou elevar-se nenhuma cidade nos domínios de Abd-el-Kader” (o líder da resistência).”

Nestas duas declarações ressoa esta celebração da violência e da lei do mais forte de que se censura a “raça dos revolucionários” em acção em França. Por outras palavras, é de modo não só arbitrário mas também dogmático que procedem os fazedores da abordagem psicopatológica: eles não aplicam a si mesmos os critérios que fazem valer para os outros.

Poder-se-ia observar com Furet que o carácter patológico da violência jacobina (e bolchevique) reside no fato de que ela devora os seus próprios filhos. Se não fosse a dialética de Saturno que está bem presente na Reforma protestante na primeira revolução inglesa e que se manifesta também, com modalidades particulares, na revolução americana. Por ocasião da Guerra de Secessão, os dois campos reclamam-se da luta pela independência conduzida em conjunto contra a Coroa inglesa. Os abolicionistas referem-se ao princípio proclamado pela Declaração de independência segundo a qual “todos os homens foram criados iguais” e ao incipit solene da Constituição de Filadelfia na qual o “povo dos Estados Unidos” declara querer ulteriormente “aperfeiçoar a União”. A propaganda da Confederação reivindica a herança da luta dos patriotas contra um poder central opressivo, sublinha a centralidade do tema dos direitos de cada estado singular no processo de fundação e na tradição jurídica do país, e observa que Washington, Jefferson e Monroe eram todos proprietários de escravos. Os dois campos opostos declaram avançar no rastro dos Pais Fundadores, mas isso não evita o choque e o torna mesmo mais rude. Não há dúvida: também neste caso, Saturno devora os seus filhos.

É preciso notar igualmente que os colonos americanos protagonistas da guerra de independência contra o governo de Londres são definidos pelos seus contemporâneos ingleses, quer num julgamento positivo ou negativo, como “os dissidentes do desacordo”. E se Burke denuncia a “doença” francesa desde a primeira da revolução , Mallet du Pan põe em causa nesta revolução a “inoculação americana”. Como se vê, a remessa à dialéctica de Saturno e à psicopatologia para explicar as revoluções não esperou o jacobinismo para vir à luz!

Mas coloquemos agora uma pergunta: qual é o ponto de partida da loucura ideológica que teria assolado primeiro o ciclo revolucionário francês e depois o ciclo revolucionário russo? Furet, tal como Pipes, partem da França das Luzes e das sociedades de pensamento. E é do mesmo modo que argumenta Taine, que vimos criticar Voltaire como demónio incarnado e que vê a França revolucionária “intoxicada pela má aguardente do Contrato Social” de Rousseau . Pode-se agora considerar como terminada a investigação para trás das origens do maldito vírus revolucionário? Nada disso! Bem antes da revolução que em França liquida o Antigo Regime, verifica-se na Alemanha a Guerra dos Camponeses que, conduzidos por Müntzer, insurgem-se contra os senhores feudais e querem abolir a servidão de gleba. Os protagonistas desta revolução são estigmatizados por Lutero como “profetas loucos” (tolle Propheten) que excitam a “populaça louca” (tolle Pöbel), como “visionários” (Schwärmerer, Geister, Schwarmgeister), loucos que perderam totalmente o sentido da realidade. Mas esta campanha contra o ex-discípulo que se tornou louco não impede Lutero de ser por sua vez classificado por Nietzche entre os “espíritos doentes”, a saber, entre os “epilépticos das ideias” (com Savonarole, Luther, Rousseau, Robespierre et Saint-Simon) ( O Anticristo, 54).

Sim, segundo Nietzche, para encontrar as primeiras origens da doença revolucionária convém remontar bem mais para trás do que o fazem os críticos habituais da revolução: a loucura que desejaria o advento de um mundo perfeito e igualitário e que condena a riqueza e o poder enquanto tais começou a manifestar-se já com o cristianismo e mesmo, ainda antes, com os profetas judeus. Convencido da longa duração do ciclo revolucionário que assola o Ocidente, Nietzche convida a proceder finalmente ao acerto de contas com “estes milhares de anos de um mundo de choças” e com as “doenças mentais” que o assolam a partir do “cristianismo” (O Anticristo, 38). Poder-se-ia ler esta conclusão como a involuntária reductio ad absurdum da interpretação psicopatologisante do conflito político e, em particular, das grandes crises históricas. Mas não esqueçamos que Nietzche declara ter “passado pela escola de Tocqueville e de Taine”, e que tem com este último relações epistolares marcadas por uma estima recíproca.

Nos nossos dias, igualmente, na esteira do filósofo alemão, um ilustre historiador das religiões (Mircea Eliade) e um eminente filósofo (Karl Löwith) explicam a loucura sanguinária do século XX partindo de longe, de muito longe: tudo teria começado em tempos bastante recuados com a recusa do mito do retorno eterno e com o advento da visão unilinear do tempo e da fé no progresso que a acompanha: tudo teria começado com, uma vez mais, a afirmação da cultura judia e cristã. A tendência para liquidar as grandes crises históricas (e em última análise a história universal) enquanto expressões de loucura caracteriza a cultura actual de modo talvez ainda mais forte do que a cultura da Restauração.

Mas como explicar o facto de que as explosões de loucura manifestam-se mais frequentemente e numa escala mais vasta em certos países do que em outros? Conhece-se em Tocqueville a tendência para celebrar um sentido moral e prático superior e um mais forte apego à liberdade que caracterizariam os cidadãos estado-unidenses, em oposição aos franceses. Quer dizer que a leitura psicopatológica do conflito tende a desembocar numa leitura de cariz etnológico (e de tendência racial). É uma tendência que se manifesta também fortemente na historiografia e na cultura contemporânea. Segundo Norman Cohn, a Inglaterra “faz-se notar por uma ausência quase total de tendências chiliásticas” e de ” chiliaísmo revolucionário”, que em contrapartida assolam a França e a Alemanha . Mais radical na deriva etnológica (e, em última análise, racial) é Robert Conquest, que vê na França e na Rússia (e na Alemanha) os lugares das “aberrações mentais”, das quais em contrapartida estão imunes as revoluções inglesa (não se fala senão da Revolução Gloriosa de 1688) e americana. Além disso, a civilização autêntica encontra sua expressão mais acabada na “comunidade de língua inglesa” e o primado desta comunidade tem seu fundamento étnico preciso, constituído pelos “angloceltas”. Então coloca-se aqui uma questão: por o culto dos “angloceltas” deveria ser mais aceitável do que o culto dos “arianos”, particularmente caro aos nazis?

Pois. Para se dar conta do absurdo da remessa à psicopatologia basta reflectir no facto de que o carácter catastrófico da crise revolucionária na Rússia foi previsto com décadas de antecipação por autores muito diferentes entre si. Em 1811, na São Petesburgo ainda abalada pela revolta camponesa de Pugatchev, Maistre vê perfilar-se uma revolução (desta vez apoiada por “Pougatcheve de Universidade”, isto é, por intelectuais de origem popular) de uma amplitude e de uma radicalidade de fazer empalidecer a Revolução Francesa. Em 1859 previne: se a nobreza continuar a se opor a uma emancipação real dos camponeses, emergirá um cataclismo social “sem precedentes na história”. Em 1905, mesmo o primeiro-ministro russo Serge Witte exprime-se em termos semelhantes!

Podem-se fazer considerações análogas para a crise que na Alemanha acabou no advento de Hitler ao poder. Pouco tempo após a assinatura do Tratado de Versalhes, o marechal Ferdinand Foch observa: “isto não é a paz, isto não é senão um armistício para vinte anos”. O imperialismo alemão não ia tardar em tentar a sua desforra; e ele vai tanto mais facilmente obter um consenso de massa na medida em que os vencedores da Primeira Guerra Mundial se mostram vindicativos e míopes. Neste mesmo período o grande economista John Maynard Keynes, que fez parte da delegação inglesa em Versalhes, põe em guarda contra as consequências de uma “paz cartaginesa”:

“A vingança, ouso prever, não tardará. Nada poderá então retardar por muito tempo esta guerra civil final entre as forças da reacção e as convulsões revolucionárias desesperadas; face a que os horrores da última guerra alemã desaparecerão no nada e destruirão, qualquer que seja o vencedor, a civilização e o progresso da nossa geração”.

Portanto: “Que o céu nos proteja a todos!” Uma prova de força ia-se perfilando para a hegemonia ainda mais brutal e bárbara que do que aquela que se havia desencadeado no decorrer do primeiro conflito mundial.

O nazismo caracteriza-se também por sua pretensão a retomar a tradição colonial para realizá-la também, nas suas formas mais bárbaras, na Europa oriental. Pois bem, a partir já do século XIX a cultura europeia mais avançada colocou-se uma questão angustiante: o que teria acontecido se os métodos de governo e de guerra em acção nas colónias tivessem acabado por se impor também nas metrópoles? O próprio genocídio dos judeus não acontece de modo de algum de modo improvisado. Basta-nos dizer que na Rússia devastada pela guerra civil, os judeus, estigmatizados como fantoches do bolchevismo, tornam-se as vítimas de massacres desencadeados pelas tropas brancas apoiadas pela Entente: isto é o prelúdio – observam eminentes historiadores – do que será a seguir a “solução final”.

Concluamos. A leitura psicopatologisante das grandes crises históricas permite por um lado liquidar como uma expressão de loucura o gigantesco processo de emancipação que vai da Revolução Francesa (das Luzes mesmo) à Revolução de Outubro; por outro lado, ela atribui o Terceiro Reich a uma personalidade doente individual (Hitler), absolvendo indirectamente o sistema político-social e a tradição ideológica que o produziram. A crítica da leitura psisopatologisante (mesmo demonológica) das grandes crises históricas é um hoje um dever essencial da crítica da ideologia e da luta pela razão.

*Domenico Losurdo é professor de História da Filosofia na Universidade de Urbino (Itália). Dirige desde 1988 a Internationale Gesellschaft Hegel-Marx für Dialektisches Denken e é membro fundador da Associazione Marx século 21.