1. O objetivo de qualquer sociedade e de qualquer Governo deve ser o pleno desenvolvimento dos recursos naturais e da mão de obra, e a construção da capacidade produtiva, do capital físico, do país.

2. A integração econômica (e eventualmente social e política) é apenas um instrumento da política de desenvolvimento, ao ampliar mercados e torná-los mais estáveis, ao contribuir para desenvolver a cooperação, em especial tecnológica e social e ao estimular a coordenação política.

3. O Mercosul é apenas um instrumento de integração que permitiu a expansão do comércio entre a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai, o aumento dos investimentos privados, a cooperação para a construção da infraestrutura através do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul – FOCEM, a experiência de comércio em moedas locais, e finalmente, mas não menos importante, a defesa da democracia. Mais poderia ter sido feito, mas o feito foi muito desde 2003.

4. Um (mas não o único) desafio para o Mercosul mas também para o desenvolvimento de qualquer Estado (e não só na América do Sul) é a emergência da China como a maior potência econômica (e talvez tecnológica) a partir de 2020-2030, caso a crise se prolongue nos países altamente desenvolvidos e permaneçam as diferenças extremas de taxas de crescimento.

5. A China, que é uma economia cada vez mais capitalista, vem crescendo a mais de 10% a/a desde 1979, em média. Esta taxa de crescimento sustentado está transformando a China de um país subdesenvolvido, semifeudal e periférico em uma sociedade desenvolvida, moderna e central da economia (e cada vez mais da política) mundial. Há características importantes deste processo extraordinário de transformação da China e do sistema mundial que merecem ser analisados pelos seus efeitos e por deverem servir de exemplo para os países do Mercosul.

6. A transformação da economia chinesa tem sido comandada pelo Estado, em um sistema político estável, caracterizado pela liderança coletiva, e por um amplo (ainda que opaco para os ocidentais) processo de consulta dentro do Partido Comunista. O Estado se faz presente pela elaboração de planos de desenvolvimento, pela ação de megaempresas estatais, em especial na infraestrutura de transportes e energia, pela regulamentação das atividades econômicas, inclusive das megaempresas multinacionais.

7. As empresas multinacionais foram admitidas de forma gradual na economia chinesa em regiões geográficas e setores de atividade, em geral com compromissos de transferência de tecnologia, de exportação e de associação com empresas locais.

8. A transferência de tecnologia e o esforço de geração de tecnologia são um ponto central da estratégia chinesa, indo desde a aquisição de fábricas completas, à compra de empresas (e de seu acervo tecnológico) ao recrutamento de pesquisadores, à criação de centros de pesquisa, ao fortalecimento e à expansão das universidades, à ênfase nos setores de ponta do futuro: nuclear, espacial, tecnologia da informação (hardware), nanotecnologia, novos materiais, energias renováveis. Os resultados chineses em termos de aumento do número de graduados e pós-graduados, e nos testes internacionais de educação são impressionantes, assim como o aumento do registro de patentes e do número de artigos científicos.

O volume de recursos para o programa espacial permitiu o lançamento de numerosos satélites assim como a simbólica caminhada do astronauta chinês no espaço, façanha que indica o nível de desenvolvimento cientifico e tecnológico alcançado; o esforço tecnológico permitiu também a construção do maior computador do mundo, capaz de processar 2,5 trilhões de informações por segundo; a construção simultânea de cerca de 30 usinas nucleares e desenvolver a capacidade de construção de reatores modernos. O esforço de pesquisa e desenvolvimento em energias renováveis tornou a China o maior produtor mundial de equipamentos para a geração de energia eólica e fotovoltaica.

9. Aspecto central da estratégia chinesa de desenvolvimento foi a abertura comercial, que levou a extraordinários e crônicos superávits comerciais (em especial com os EUA e a Europa) e, em consequência, ao acúmulo gradual de extraordinárias reservas, que chegam hoje a cerca de três trilhões de dólares, o que corresponde ao PIB do Mercosul. Essas reservas extraordinárias, aplicadas principalmente em títulos do Tesouro dos Estados Unidos, criam, juntamente com os investimentos e as exportações das empresas multinacionais, em grande parte americanas, na China, uma verdadeira simbiose entre a economia da República Popular da China e os Estados Unidos da América, fato que contribui para reduzir a influencia dos defensores americanos de uma política mais rigorosa sobre direitos humanos na China. O uso de parte das reservas chinesas para adquirir títulos de Estados europeus endividados (e falidos) levará a uma cada vez maior influência política da China, do que é um prenúncio seus entendimentos com a Alemanha.

10. A política econômica externa da China (à semelhança da política americana) tem como grande objetivo assegurar o acesso a fontes de matérias primas minerais, energéticas e agrícolas em todo o mundo, mas, como não poderia deixar de ser, em especial no mundo periférico da África e da América Latina. Esta demanda, que continuará a existir em grande escala, mesmo que haja uma crescente ênfase da China no desenvolvimento de seu mercado interno, tem impacto direto para a economia do Mercosul, em seu conjunto e para cada Estado-Parte, em especial para o Brasil.

11. Um segundo aspecto da política econômica externa da República Popular da China é a sua busca incessante de mercados para suas manufaturas, inicialmente na área de bens de consumo mais simples, porém hoje em toda a gama de sofisticados bens industriais, inclusive bens de capital.

12. Outro aspecto importante da política chinesa tem sido a criação de uma área de influência econômica na Ásia, através de laços comerciais e de investimentos em países de mão de obra ainda mais barata que a chinesa. Essa área de influência chinesa de certa forma inclui o Japão e a Coréia pela importância do comércio bilateral e pelos investimentos de empresas desses países na China e também todos aqueles países onde há significativas comunidades chinesas. Esta área chinesa, que também inclui Taiwan e a Austrália (devido a seus recursos naturais) e a Indonésia, poderia vir a ter importância financeira pela eventual criação de um “FMI asiático”, estimulada pelas experiências negativas da crise financeira do passado.

13. A política econômica chinesa se apresenta como uma política de desenvolvimento pacífico, de integração na economia mundial, de cooperação econômica, de criação de um mundo multipolar e de uma “sociedade harmoniosa”. A constante reafirmação chinesa dessas ideias tem a ver com sua preocupação de não aparecer como uma competidora com os Estados Unidos pela hegemonia mundial, ciente que está do poderio americano, inclusive militar.

14. A preocupação da China em se apresentar ao mundo como uma potência pacífica reflete sua preocupação com a política militar americana que vem de atribuir à Ásia a posição de principal área de ação e com a reorientação da estratégia da OTAN no sentido de englobar todo o mundo e qualquer tema, desde conflitos armados, ao terrorismo, ao cybercrime, ao narcotráfico. A política americana de reativação de seus acordos de segurança com países na vizinhança próxima da China e a sua iniciativa de negociação da Trans-Pacific Partnership – TPP, um acordo econômico de grande amplitude, mostram sua firme determinação de continuar a ser uma potência asiática.

15. Tanto a China como o Mercosul não se encontram em um vácuo econômico e político mundial.

16. A crise mundial, que se iniciou como financeira, passou a econômica, se tornou social e cada vez mais política, mesmo institucional (no caso da Europa, do euro e da União Européia) tende a se agravar e a se expandir, devido às políticas pró-ciclicas, recessivas, impostas pela troica (FMI, BCE e Comissão) aos países da periferia européia e pela eventual crise fiscal nos Estados Unidos, que pode levar a políticas igualmente recessivas. Essas políticas, que provocam, além de uma redução natural de importações, a adoção de programas de contenção de importações e de promoção agressiva de exportações (que se beneficiam das consequências cambiais das políticas de expansão monetária) e a impossibilidade (ou falta de vontade) de intervir no sistema financeiro para saneá-lo e regulamentá-lo, afetam a China cujas taxas de crescimento tem sustentado o crescimento mundial e direta e indiretamente as economias dos países do Mercosul e o próprio Mercosul como esquema de integração.

17. Os países do Mercosul se caracterizam por serem importantes produtores e exportadores de commodities agrícolas (e no caso do Brasil também de minérios e até de petróleo); por terem grande potencial de expansão da agricultura; por terem parques industriais menos integrados, menos sofisticados e menos competitivos do que os dos países desenvolvidos e mesmo da China; por terem uma grande presença de megaempresas multinacionais em suas economias, inclusive na área de exportação; por terem elevado grau de urbanização de suas sociedades exceto o Paraguai; por terem extremas disparidades de renda e riqueza, com exceção do Uruguai.

18. O impacto da emergência da China, que se tornou um dos três maiores parceiros comerciais de cada país do Mercosul em curtíssimo espaço de tempo, tem sido duplo ao que se soma o impacto das políticas econômicas decorrentes da crise nos países desenvolvidos, também duplo.

19. De um lado, a demanda chinesa contribui para manter a atividade no Mercosul e gera um influxo de receita cambial que valoriza as moedas locais, estimula a importações, desestimula as exportações e “desintegra” as cadeias produtivas industriais e estimula as despesas com itens como viagens e remessas de lucros etc.

20. De outro lado, a crise reduz a demanda por importações de manufaturados e de produtos primários na Europa e nos Estados Unidos enquanto esses países fazem enorme esforço exportador e geram superávits. A política monetária nos Estados Unidos, denominada de forma eufemística de quantitative easing, aumenta a oferta de dólares nos mercados e contribui para a valorização das moedas locais.

21. Em terceiro lugar, a demanda por produtos primários e a fragilização do setor industrial estimula os investimentos internos e externos nos setores da agropecuária e da mineração e desestimula os investimentos no setor industrial, local, que se tornam obviamente menos lucrativos.

22. A escassez de oportunidades de investimentos nas economias altamente desenvolvidas faz com que se torne atraente adquirir empresas locais nos países do Mercosul o que agrava o já profundo processo de desnacionalização de suas economias.

23. Diante do agravamento da crise internacional o Mercosul se encontra diante de alternativas, nem todas positivas, para seu desenvolvimento.

24. A primeira se refere à negociação de acordos de livre comércio com os países desenvolvidos, tais como o Canadá e a União Européia. A crise nos países desenvolvidos leva a políticas agressivas de promoção de exportações e de “abertura” de mercados. Assim sob o pretexto de combater o protecionismo e “estimular a economia mundial” estes países ressuscitam propostas de negociação de acordos de livre comércio com os países da periferia, inclusive com o Mercosul. Hoje, a China também se encontra entre aqueles países que propõem ao Mercosul a negociação de acordos de livre comércio certamente para consolidar seus ganhos extraordinários nos mercados de produtos industriais na periferia.

25. Na realidade, estes acordos consolidariam as reduções e até a eliminação de tarifas, criariam novas amarras que impediriam as legislações nacionais capazes de regulamentar o capital multinacional, estimulariam as importações periféricas sem que houvesse nenhuma contrapartida no setor industrial, pois as tarifas industriais nos países desenvolvidos já são baixas, e não permitiriam a expansão das exportações agrícolas dos países do Mercosul devido à recessão e à resistência tradicional dos setores agrícolas nos países desenvolvidos.

26. A assinatura de qualquer acordo de livre comércio desencadearia uma pressão para celebrar acordos com outros países (como ocorreu com a Colômbia, o Chile e o Peru depois de assinarem os acordos com os Estados Unidos) o que praticamente eliminaria a possibilidade de fazer política industrial e política econômica em geral e de fazer políticas de integração o que, em sua essência, corresponde a conceder privilégios a empresas instaladas no território do país.

27. Seria, em síntese, o fim do Mercosul como instrumento de desenvolvimento econômico porque eliminaria seu elemento principal que é a Tarifa Externa Comum – TEC e a possibilidade de estabelecer regimes preferenciais para as empresas instaladas no território do Mercosul e eliminaria um estímulo de atração do capital estrangeiro produtivo que são os obstáculos à importação, como a tarifa.

28. A segunda “alternativa”, que aparentemente é a que está ocorrendo, é uma política de laissez faire, acompanhada de intervenções pontuais, nacionais e não coordenadas, nos mercados, aguardando, sem disso se aperceber nem desejar, o fim do Mercosul.

29. A progressiva fragilização dos setores industriais nos países do Mercosul em decorrência da penetração das exportações chinesas, européias e americanas farão com que os Estados do Mercosul percam mercados para seus produtos industriais nos países do bloco e assim percam gradualmente importância na pauta de comércio exterior de cada país. Como o vínculo principal do processo de integração é o comércio industrial (e não o comércio de produtos agrícolas ou de minérios), o Mercosul deixaria de ser relevante para a Argentina, o Brasil, o Paraguai, o Uruguai e a Venezuela e se dissolveria, como já ocorreu com outros esquemas de integração na América do Sul.

30. Excluídas estas duas alternativas, negativas e fatais, há duas hipóteses de ação que permitiriam o fortalecimento e um salto qualitativo no processo de construção do Mercosul.

31. A primeira ação positiva para o Mercosul seria uma estratégia que tivesse como objetivo sua transformação de instrumento neoliberal de integração, através de uma união aduaneira, em uma agência de desenvolvimento regional através de medidas tais como:

• ampliação significativa do FOCEM, o que representaria um estímulo e uma compensação para as economias menores;

• acordos de comércio organizado em setores controlados por megaempresas multinacionais, como já ocorre no setor automotriz;

• tratamento comercial preferencial para os Estados menores, única forma de permitir sua industrialização;

• acordos de cooperação tecnológica;

• acordo sobre acesso das empresas da região ao sistema financeiro de qualquer país do Mercosul.

32. A crise da economia mundial, que durará pelo menos mais uma década, e a maior liberdade de políticas econômicas na área externa, decorrente do enfraquecimento do pensamento e da prática neoliberal que a provocou e das ações protecionistas dos países desenvolvidos, fazem com que os países do Mercosul possam aproveitar essa rara oportunidade no decurso da sua história para aproveitar a extraordinária demanda chinesa por produtos primários e torná-la um fator de seu desenvolvimento econômico, isto é do seu desenvolvimento industrial.

33. Assim, em conjunto com estratégia de transformação do Mercosul, seria de extraordinária importância a celebração de acordos de comércio e indústria com a China para o processamento industrial das matérias primas, em conjunto com garantia de acesso, em um sistema de cotas. Esta alternativa estaria em perfeita consonância com o objetivo do desenvolvimento da economia que é a capacidade de transformar seus recursos naturais, de agregar valor à produção, de criar empregos melhor remunerados, de elevar seu nível tecnológico e de integração vertical de setores de suas economias.

Fonte: Carta Maior