Já havia estado ali em 2009 procurando estabelecer contato e coletar informações acerca de sepultamentos de desaparecidos políticos durante a Guerrilha do Araguaia. À época tomei conhecimento mais amiudado das pressões, constrangimentos, intimidações e violências praticadas pelas forças armadas contra aquela nação indígena na tentativa de sufocar o movimento insurgente araguaiano.

Do ponto de vista da história da repressão militar no país há pouca sistematização de como o regime se comportou diante da questão indígena. Sabe-se, em geral, que as políticas indigenistas praticadas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), nos tempos de generais no poder, eram todas militarizadas e estavam no famigerado organograma do estado de exceção inaugurado em 1964.

Muito já se disse sobre os grupos que lutaram contra o regime. Há livros sobre tudo relacionado ao tema, até torturadores já escreveram sobre o assunto. Jornalistas e escritores avulsos já se debruçaram sobre a questão. O heroísmo e as violências saltam dos livros, das memórias em luta e dos documentários. Há um enorme esforço em curso para a localização dos que lutaram, muitas vezes em armas, para libertar o país do jugo dos que promoveram a mais lancinante das ditaduras vividas no país tupiniquim.

Todos já foram citados, menos os índios. A não ser pelas publicações do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e pela revista “História Imediata”, organizada por um grupo de jornalistas que em fins dos anos de 1970 apresentaram, em tempos bem difíceis, a epopéia das matas e sertões do Araguaia. Naquela publicação os índios suruís ou akewaras, como se reconhecem, são registrados nas páginas daquela publicação.

A bem da verdade o termo suruí foi um batismo de Frei Gil, religioso que em certa medida “descobriu” aqueles silvícolas. Segundo Tiwacu, borboleta azul em tupi, um caçador que morava no pé da serra das Andorinhas/Martírios, chamado Zecró foi quem informou ao religioso da presença daqueles homens e mulheres, parte das nossas gentes originarias, naquelas paragens araguaianas.

O fato é que Frei Gil estabeleceu profunda relação com os aikewaras na década de 1950. O termo tupi-guarani constitui uma visão de povo e de humanidade. Anos depois, já na década de 1960 foi que Roque Laraia, um dos principais antropólogos brasileiros estabeleceu contato com os suruís. E tudo isso com a colaboração do franciscano que vivia pelas matas e currutelas fazendo as desobrigas, ou seja, realizando casamentos e rezando missas em lugares distantes ou inóspitos.

Eram tempos em que Moroneiko era cacique. As tarefas do cacique estão sempre ligadas à condução dos destinos de seus iguais, como, também, na defesa da preservação de sua identidade cultural. Ambas as questões estão intrinsecamente ligadas formando uma unidade orgânica. Não haverá horizonte para a dignidade de nossos primeiros habitantes, mais antigos que o Brasil se a sua cultura, ancestral, não for preservada e difundida na atualidade.
 
Sabe-se que os suruís, em tempos em que ninguém mais se lembra, travavam eventuais guerras com os Gaviões, nação Jê, mas isso é coisa de um passado bem distante. Seguramente que as lutas travadas pelos aikewaras no século passado estavam sempre ligadas à sobrevivência enquanto povo, enquanto nação.

Acontece que a região do Araguaia conheceu na metade do século XX um surto de garimpo em busca de metais precisos, particularmente os cristais e diamantes. Cidades como Xambioá e São Geraldo surgiram a essa esteira.

A extração de pedras preciosas já é bastante antiga na região ao ponto dos portugueses construírem em São João, em 1795, uma fortificação para fazer o combate aos traficantes de minerais de alto valor. Os bandeirantes – dentre eles Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera – já haviam relatado nos idos dos séculos XVI e XVII sobre as montanhas de ouro dos Martírios.

A migração das gentes do nordeste e do centro-oeste para o garimpo fez crescer as pressões sobre os suruís. Ao lado disso outro surto econômico, o da castanha, fez aumentar exponencialmente as dificuldades dos silvícolas a um nível, inclusive, de alienação de territórios e grave diminuição da população. Nas décadas de 1950 e 1960 as entranhas do Araguaia e do Tocantins vão conhecer a figura de Coriolano, jagunço que fez história por matar índios sempre no sentido de limpar os castanhais para seus novos “donos”.

Os suruís quase desaparecem. Havia em torno de mil índios na década de 1940. A pressão seja dos donos de garimpos como também da grande propriedade rural reduziu-os, na década de 1960, a pouco mais de trinta indígenas como nos ensina a antropóloga Iara Ferraz, que viveu e estudou-os na década de 1970. 

O fato de quase terem chegado à extinção lhes empresta um orgulho latente. Só não desapareceram porque foram fortes, mais fortes que os que atuaram para dizimá-los. O orgulho dos akewara emociona.          

Os Suruís foram logo procurados quando as tropas oficiais invadiram o Araguaia em abril de 1972.

A memória de Tiwacu denuncia que dois helicópteros baixaram na aldeia e um sargento, valentão – apenas para com aqueles que estavam sob sua custódia, em geral agrilhoados – disse-lhe que os índios deveriam caçar “terroristas”, jargão utilizado pela repressão política para desqualificar aqueles que ousavam lutar pelas liberdades públicas. O ex-cacique além de ter levado coronhadas, de ter levado um tiro num encontro com a guerrilha nas matas, teve que – sob a mira dos fuzis – torturar a própria mãe de criação.

Muitas índias sofreram estupros e mais de uma dezena de akewaras foram obrigados a servir de rastejadores.

O processo de homologação do território suruí iniciou-se em 1973 e concluído em 1977 e na atualidade lutam pela ampliação de suas terras.

Naquele dia do centenário de Awaçai pude encontrar Massú, que já conhecia de nome através da figura emblemática de Sinvaldo Gomes e de relatos que ele me fazia nas imensas noites na beira do Fortaleza, igarapé dos insurgentes, nos anos de 1990. Sinvaldo sempre falava de Massú. Ao vê-lo lembrei-me do amigo que, em certa medida, me reapresentou as gentes e os sertões araguaianos.

Mesmo em tempo de festa os suruís não deixaram de falar de suas preocupações e, em particular, da necessidade de expansão de seu território. Em certa medida a ampliação de suas terras corresponde à sobrevivência das futuras gerações. Ocorre que ao longo dos anos o Incra assentou nas terras reivindicadas pelos akewaras mais de 120 famílias de pequenos proprietários de terras, jogando uns contra os outros.

Naquele dia perdido de fins de julho Akarapytan pintou-me, com jenipapo, a flor da castanha, no rosto e braços.  Falou-me do petymahow, festa espiritual que envolve a fartura da terra. Ensinou-me que menino é iwsa. Que kuso é mulher e que akuma é homem. E que nunca devo me comportar como um camará-punura, ou seja, branco ruim. Aprendi, também, que sahi quer dizer lua, que ara é sol e que isa é terra. A cosmologia dos nossos primeiros habitantes impressiona.

Renê Suruí que escuta a conversa nos dá a noção da dialética quando, em meio ao nosso aprendizado afirma que “o feio e o bonito está junto”. O jovem Renê deve estar falando da trajetória ancestral daquela nação.

Arekassú, sentado meio distante faz um cigarro com matá-matá, casca de pau que se não me falha a memória se chama mamae. Já não quero mais meus cariús, cigarro de branco. O velho índio que não sabe a idade me fala do mito de tuãpekwakaw-kwera, nome da índia que morreu com uma espinha de peixe entalada na garganta.

Mesmo com todas as dificuldades e pressões os suruís já são mais de 400, divididos em dois aldeamentos, Itahy e Sororó. Cerca de 20 estudam na Universidade do Estado do Pará (UEPa), são bem politizados e fazem um esforço necessário para reaprenderem sua língua e cultivarem suas tradições. Não haverá dia em que me esqueça do orgulho akewara.