Alguém que não tinha ilusões a respeito da transformação da democracia norte-americana em uma plutocracia animada por sonhos imperialistas de “guerra permanente”. Sonhos que se repetiram sistematicamente a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, animados por uma corrida armamentista que, como bem mostrou Vidal, fora criação norte-americana, com todo seu artefato de propaganda construído para convencer o povo americano de que seu dinheiro não deveria ir para escolas públicas, mas para compras militares que os deixariam mais “seguros”.

Agora que Gore Vidal está morto, os jornais norte-americanos deleitam-se em fazer longos obituários em que se podem ler detalhes de sua vida sexual, de suas extravagâncias e sua linhagem, na qual era possível encontrar relações de parentesco com Jackie Kennedy e Al Gore.

Ou seja, uma espécie de celebridade intelectual frívola e aristocrática que, entre outras coisas, tinha opiniões “bizarras” (ao menos para o norte-americano médio) a respeito da política externa dos Estados Unidos, do conflito palestino, da paranoia securitária, da ameaça terrorista, da necessidade de eliminar a Otan e do fracasso educacional dos EUA. Todos reconhecem a elegância de sua prosa, mas suas posições políticas são retratadas como gosto aristocrático por um radicalismo só assumido por ser inócuo.

É assim que a imprensa dos EUA procura interpretar afirmações precisas de Vidal como: “Neste país há apenas um partido: o Partido da Propriedade – e ele tem duas alas direitistas: a Republicana e a Democrata. Republicanos são um pouco mais rigidamente estúpidos, mais doutrinários em seu capitalismo laissez-faire do que os Democratas.

Estes são mais amigáveis, um pouco mais corruptos – até recentemente – e mais dispostos a fazer pequenos ajustes quando os pobres, negros e anti-imperialistas saem do controle. Mas, essencialmente, não há diferenças entre os dois partidos”. Dificilmente alguém conseguiria colocar, no entanto, em palavras tão precisas a raiz do esvaziamento da democracia americana.

Essa sensibilidade de Vidal vinha, na verdade, de uma tradição bem americana. Pois ele era o legítimo representante de uma tradição crítica que poderíamos chamar de “liberalismo de esquerda” e que encontra raízes profundas na formação dos EUA. Basta lembrarmos aqui das posições políticas de pais fundadores da República norte-americana como Thomas Paine. Para esse liberalismo de esquerda, defender os valores liberais não significa fazer uma defesa tosca do individualismo e do empreendedorismo que escamoteia a maneira com que a concentração de riquezas quebra completamente o princípio de crescimento por mérito. Valores liberais não andam sem uma visão profunda a respeito da necessidade de elevar a luta contra a desigualdade econômica à condição de princípio político maior. Gore Vidal nunca se esqueceu disso.

Por outro lado, Vidal sabia que o conservadorismo na dimensão dos costumes é indissociável de uma elevação do medo a afeto político central. Medo que, por sua vez, serve de motor fundamental do conservadorismo político. Daí sua maneira de afirmar que, por exemplo, “sexo é política”, que a liberalidade a respeito dos modos da vida afetiva e de suas instituições é indissociável do fortalecimento de uma verdadeira consciência política crítica.

Por tudo isso, Gore Vidal tinha clara consciência de que ele era uma espécie de resquício de um tempo que não se realizou. Uma versão de um país que nunca se calou, mas que tinha cada vez menos vozes. Seu humor amargo era a expressão de alguém que sabia lutar contra o próprio tempo, isso em nome de um futuro que se conserva como promessa. Ele era a prova viva de como é possível ser liberal sem ser estúpido e simplório.

Fonte: Carta Capital