Mostro ainda mais como é completamente defeituoso e em parte mesmo de aprendiz o seu conhecimento da «Economia Política», cuja crítica empreendeu, e como, juntamente com os utopistas, anda à caça de uma chamada «ciência», em que a priori deverá ser congeminada uma fórmula para a «solução da questão social», em vez de criar a ciência a partir do conhecimento crítico do movimento histórico, de um movimento que produz ele próprio as condições materiais da emancipação. Designadamente, porém, mostra-se como Proudhon, quanto à base fundamental do todo, ao valor de troca, fica na obscuridade, no falso e a meio, uma vez que toma inadvertidamente a interpretação utopista da teoria do valor de Ricardo (27) por base fundamental de uma nova ciência. Ajuízo do seu ponto de vista geral, em suma, o seguinte:

«Cada relação económica tem um lado bom e um lado mau; é o único ponto em que o senhor Proudhon não se desmente a si próprio. O lado bom, vê-o posto em evidência pelos economistas, o mau [vê-o] denunciado pelos socialistas. Toma dos economistas a necessidade das relações eternas; toma dos socialistas a ilusão de na miséria só ver a miséria (em vez de ver nela o lado revolucionário, destruidor, que derrubará a velha sociedade) (28). Está de acordo com ambos quando procura apoiar-se na autoridade da ciência. A ciência reduz-se, para ele, ao âmbito anão de uma fórmula científica; é o homem à caça de fórmulas. Em conformidade, o senhor Proudhon gaba-se de ter dado uma crítica tanto da Economia Política como do Comunismo – fica profundamente abaixo de ambos. Abaixo dos economistas, porque, como filósofo que tem à mão uma fórmula mágica, crê poder dispensar-se de entrar nos pormenores puramente económicos; abaixo dos socialistas, porque não possui nem coragem suficiente nem penetração suficiente para se elevar, nem que fosse apenas especulativamente, acima do horizonte burguês… Quer planar como homem de ciência acima de burgueses e proletários; é apenas o pequeno-burguês constantemente atirado de um lado para o outro entre o capital e o trabalho, entre a Economia Política e o Comunismo.» (29)

Por muito duro que o presente juízo soe, tenho ainda hoje que subscrever cada uma das suas palavras. Simultaneamente, considere-se, porém, que, ao tempo em que eu declarava o livro de Proudhon o código do socialismo do petit bourgeois e o demonstrava teoricamente, Proudhonera ainda anatematizado como ultra e arqui-revolucionário, simultaneamente, pelos economistas políticos e pelos socialistas. Por isso, mais tarde, eu também nunca fiz coro com a gritaria sobre a sua «traição» à revolução. Não foi culpa dele se, originariamente mal compreendido tanto por outros como por si próprio, ele não correspondeu a esperanças injustificadas.

Em Philosophie de la misère, por contraste com Qu’est-ce que la propriété?, ressaltam muito desfavoravelmente todos os defeitos da maneira de expor de Proudhon . O estilo é frequentemente aquilo a que os franceses chamam ampoulé (30). Um charabia especulativo pomposo, pretendendo-se alemão-filosófico, entra em regra ali onde a perspicácia gaulesa lhe falta. Ressoa continuamente nos ouvidos de cada um um tom charlatanesco, de autoelogio aldrabão, um tom fanfarrão, nomeadamente, o matraquear sempre tão desagradável da «ciência» e de uma falsa pompa com a«ciência». Em vez do real calor que percorre o primeiro escrito, aqui atinge-se sistematicamente em certas passagens um ardor fugaz à força de declamação. Acresce o fazer de sábio repugnantemente desajeitado do autodidacta, cujo orgulho espontaneamente natural de [ser um] pensar próprio [e] original [originelles Selbstdenken] já está quebrado e que agora, como novo-rico da ciência, imagina ter de se pavonear com o que não é e o que não tem. Depois, [há] a mentalidade [Gesinnung] do pequeno-burguês que ataca um homem como Cabet (31), respeitável pela sua posição prática para com o proletariado francês, de um modo indecentemente brutal – [mas], não agudo, nem profundo, nem mesmo correcto –, enquanto, pelo contrário e por exemplo, trata bem um Dunoyer (32) (que, bem entendido, é um «Conselheiro de Estado»), apesar de todo o significado desse Dunoyer ter consistido na seriedade cómica com que ele ao longo de três grossos e insuportáveis volumes (33) pregou um rigorismo que Helvétius (34) caracterizou assim:«On veut que les malheureux soient parfaits.» (Querem que os desgraçados sejam perfeitos.)

A Revolução de Fevereiro (35) veio, de facto, muito pouco a propósito para Proudhon porque ele, precisamente algumas semanas antes tinha demonstrado irrefutavelmente que «aera das revoluções» tinha para sempre passado. A sua entrada [em cena] na Assembleia Nacional, por pouca penetração que demonstrasse na situação que estava patente (36), merece todo o elogio. Depois da Insurreição de Junho (37) foi um acto de grande coragem. Teve, além disso, a feliz consequência de o senhor Thiers, no seu discurso de resposta às propostas de Proudhon (38) que foi depois publicado como escrito separado, ter demonstrado a toda a Europa sobre que pedestal de criancinha da catequese este pilar espiritual da burguesia francesa se erguia. Diante do senhor Thiers, Proudhon atingia de facto [as proporções] de um colosso antediluviano.

A descoberta de Proudhon do «crédit gratuit» (39) e do«banco do povo» (banque du peuple) nele baseado foram os seus últimos «feitos» económicos. No meu escrito Para a Crítica da Economia Política, fascículo 1, Berlin 1859 (pp. 59-64) encontra-se a demonstração de que a base teórica da perspectiva dele brota de um desconhecimento dos primeiros elementos da «Economia Política» burguesa, a saber: da relação das mercadorias com o dinheiro enquanto a superstrutura [Überbau] prática era uma mera reprodução de planos muito mais antigos e de longe mais bem elaborados. De que o sistema de crédito, tal como, por exemplo, em Inglaterra, no começo do século XVIII e mais tarde de novo no século XIX, serviu para transferir a fortuna de uma classe para outra, possa, em determinadas circunstâncias económicas e políticas, servir para a aceleração, e a emancipação da classe trabalhadora, não resta a mínima dúvida, é evidente. Porém, considerar o capital portador de juros como a forma principal do capital, querer fazer de uma aplicação particular do sistema de crédito, da pretensa abolição do juro, a base da reconfiguração da sociedade – é uma fantasia completamente pequeno-burguesa [spiessbürgerliche]. Daí que, de facto, se encontre também esta fantasia, mais esmiuçada, já nos porta-vozes económicos da pequena burguesia inglesa do século XVII. A polémica de Proudhoncom Bastiat (1850), no que se refere ao capital portador de juros (40), fica profundamente abaixo da Philosophie de la misère. Consegue fazer-se bater mesmo por Bastiat e desata numa gritaria burlesca quando o seu adversário exerce violência sobre ele.

Há poucos anos, Proudhon escreveu para um concurso – creio que patrocinado pelo governo de Lausanne – um escrito sobre os «Impostos» (41) Também aqui se extinguiu o último vestígio de genialidade. Não ficou senão o petit bourgeois tout pur (42).

No que toca aos escritos políticos e filosóficos de Proudhon, mostra-se em todos eles, como nos trabalhos económicos, o mesmo carácter duplo e pleno de contradição. Por isso têm apenas um valor local francês. Os seus ataques contra a religião, a Igreja, etc., possuíam, contudo, um grande mérito local num tempo em que os socialistas franceses consideravam que ficava bem ser superior, pela religiosidade, ao voltairianismo burguês do século XVIII e ao ateísmo alemão do século XIX. Se Pedro, o Grande (43) abateu a barbárie russa com a barbárie, Proudhon fez o possível por derrubar o sistema francês da frase com a frase.

Não apenas como escritos maus, mas como baixezas – ainda que baixezas correspondentes ao ponto de vista pequeno-burguês – devem ser designados o seu escrito sobre o «Coup d’état» (44), em que coqueteia com L. Bonaparte (45), em que de facto se esforça por o tornar aceitável aos operários franceses, e o seu último escrito contra a Polónia (46) onde, em honra do tsar, exerce um cinismo de cretino.

Comparou-se frequentemente Proudhon com Rousseau (47).Nada pode ser mais falso. Tem antes semelhanças com [Nic[olas] Linguet , cuja Théorie des lois civiles (48) é, de resto, um livro muito genial.

Proudhon pendia por natureza para a dialéctica. Mas, uma vez que ele nunca compreendeu a dialéctica realmente científica, apenas a reduziu a sofística. De facto, isso coincidia com o seu ponto de vista pequeno-burguês. O pequeno-burguês é tal como o historiador Raumer (49) composto de «por um lado…» e de «por outro lado…». [É] assim nos seus interesses económicos e, por conseguinte,[também] na sua política, nas suas visões religiosas, científicas e artísticas. [É] assim na sua moral, [é] assim in everything (50). Ele é a contradição viva. Se, além disso, como Proudhon, for um homem rico de espírito, em breve aprenderá a jogar com as suas contradições próprias e a elaborá-las, segundo as circunstâncias, em paradoxos vistosos, ruidosos, umas vezes escandalosos, outras vezes brilhantes. Charlatanismo científico e acomodação política são inseparáveis de um tal ponto de vista. Resta apenas um motivo impulsionador, a vaidade do sujeito, e trata-se, como com todos os vaidosos, apenas do sucesso do momento, da sensação do dia. Assim se extingue necessariamente o simples tacto moral que, por exemplo, sempre manteve afastado um Rousseau mesmo de qualquer compromisso aparente com os poderes subsistentes.

Talvez que a posteridade venha a caracterizar a fase mais recente dos assuntos franceses como tendo sido Louis Bonaparte o seu Napoleão e Proudhon o seu VoltaireVoltaire(51).

Tem agora V. próprio de assumir a responsabilidade de, tão pouco tempo após a morte do homem, me ter encarregado do papel de juiz dos mortos.

Devotadamente seu,

Karl Marx

Escrito por Marx em 24 de Janeiro de 1865. Publicado noSocial-Demokrat, n. os 16, 17 e 18 de 1, 3 e 5 de Fevereiro de 1865.

Publicado segundo o texto do jornal, confrontado com o publicado em apêndice à 1.ª edição alemã da Miséria da Filosofia (1885). Traduzido do alemão.

Notas


(28) A frase entre parênteses foi acrescentada por Marx para este artigo.

(29) Loc. cit., pp. 119, 120. (Nota de Marx.)

(30) Em francês no texto: empolado.

(31) Etienne Cabet (1788-1856): publicista francês, representante do comunismo utópico pacífico, autor do livroViagem a Icária.

(32) Charles Dunoyer (1786-1862): economista vulgar e político francês.

(33) Charles Dunoyer, De la liberte du travail, ou Simples exposé des conditions dans lesquelles les forces humaines s’exercent avec le plus de puissance [Acerca da Liberdade do Trabalho, ou Simples Exposição das Condições nas Quais as Forças Humanas Se Exercem com o Máximo de Potência], t. I-III, Paris, 1845.

(34) Cluade-Adrien Helvétius (1715-1771): filósofo francês, ateísta, representante do materialismo mecanicista.

(35) Trata-se da revolução de Fevereiro de 1848 em França, que derrubou a dinastia Orléans e proclamou a República Francesa.

(36) Marx tem em vista o discurso pronunciado por Proudhon em 31 de Julho de 1848 numa sessão da Assembleia Nacional francesa. Nesse discurso Proudhon avançou diversas propostas concebidas no espírito das doutrinas utopistas pequeno-burguesas (abolição dos juros, etc.) e, ao mesmo tempo, qualificou como uma arbitrariedade e uma violência a repressão exercida pelas autoridades sobre os participantes na insurreição proletária de Paris de 23-26 de Junho de 1848.

(37) Insurreição de Junho: insurreição heróica dos operários de Paris em 23-26 de Junho de 1848, reprimida com excepcional crueldade pela burguesia francesa. A insurreição foi a primeira grande guerra civil da história entre o proletariado e a burguesia.

(38) Trata-se do discurso que Thiers pronunciou em 26 de Julho de 1848 contra as propostas de Proudhon entregues à comissão financeira da Assembleia Nacional francesa.

(39) Em francês no texto: crédito gratuito.

(40) Gratuité du crédit. Discussion entre M. Fr. Bastiat et M. Proudhon [Gratuitidade do Crédito. Discussão entre o Senhor Fr. Bastiat e o Senhor Proudhon], Paris, 1850.

Frédéric Bastiat (1801-1850): economista vulgar francês, defensor da teoria da harmonia dos interesses de classe na sociedade burguesa.

(41) Trata-se do escrito de Proudhon: Théorie de l’impôt, question mise au concours par le conseil d’état du canton de Vaud en 1860 [Teoria do Imposto, Questão Posta a Concurso pelo Conselho de Estado do Cantão de Vaud em 1860], Paris, 1861.

(42) Em francês no texto: o pequeno burguês completamente puro.

(43) Pedro I (1672-1725): tsar russo desde 1682 e imperador de toda a Rússia desde 1721.

(44) Trata-se do escrito de Proudhon: La révolution sociale démontrée par le coup d’état du 2 décembre [A Revolução Social Demonstrada pelo Golpe de Estado do 2 de Dezembro], 2.a ed., Paris, 1852.

(45) Napoleão III (Luís Napoleão Bonaparte) (1808-1873): sobrinho de Napoleão I, presidente da Segunda República (1848-1851) e imperador de França (1852-1870).

(46) P. J. Proudhon, Si les traités de 1815 ont cesse d’exister? Actes du futur congrès [Se os Tratados de 1815 Deixaram de Existir? Actas do Futuro Congresso], Paris, 1863. Nesta obra, Proudhon opunha-se à revisão das decisões do Congresso de Viena de 1815 sobre a Polónia, que ratificavam definitivamente a sua divisão entre a Áustria, a Prússia e a Rússia, e protestava contra o apoio da democracia europeia ao movimento de libertação nacional polaco. Justificava assim a política de opressão do tsarismo russo.

(47) Jean-Jacques Rousseau (1712-1778): iluminista francês, democrata, ideólogo da pequena burguesia, filósofo deísta, autor do Discurso sobre a Economia Política e outros livros.

(48) Trata-se da obra de Simon-Nicolas-Henri Linguet: Théorie des lois civiles, ou príncipes fondamentaux de la société[Teoria das Leis Civis, ou Princípios Fundamentais da Sociedade], Londres, 1767.

(49) Friedrich Raumer (1781-1873): historiador e político alemão.

(50) Em inglês no texto: em tudo.

(51) François-Marie Voltaire (nome verdadeiro: Arouet) (1694-1778): iluminista francês, filósofo deísta, escritor satírico e historiador.

 

___________

 

Fonte: Avante!