O país necessita de uma aplicação profunda dessas leis para combater a violência que hoje perdura em nossa sociedade e se manifesta em práticas autoritárias que persistem arraigadas. Essas violências se expressam quando forças de segurança nos estados vigiam e reprimem manifestações pacíficas, quando no judiciário são perseguidos cidadãos que participam da vida política de determinadas jurisdições, quando o pobre, o negro e o indígena são tratados rotineiramente como suspeitos, quando a tortura forja depoimentos, mata nas delegacias e se espalha como uma chaga na sociedade, quando se extermina e se pratica chacina no campo e nas cidades com vítimas desaparecidas em maio de 2006. Seriam tantos exemplos que cada qual comente mais três…

Por isso, temos necessidade de conhecer essa história: os mecanismos de coerção e repressão, estruturas criadas, os crimes de lesa humanidade praticados, as distorções jurídicas, a filosofia por detrás destas ações (onde o cidadão é um inimigo interno), os porões como política de estado, o papel civil na repressão etc. Será um fator de avanço e fortalecimento da democracia se não forem privilegiadas conveniências de grupos em detrimento da cidadania e do futuro do país.

A necessidade de irmos fundo na aplicação destas leis está registrada na matéria Nós, os Inimigos, de Leandro Fortes, publicada em Carta Capital, que denuncia a elaboração do Manual de Campanha – Contra-Inteligência, documento “reservado” produzido pelo Exército Brasileiro em abril de 2009, cuja orientação à tropa afronta princípios da constituição de 1988. O referido manual utiliza ainda estreitos conceitos das cartilhas produzidas pelos militares que atuaram na ditadura militar sob a “norma legal” da Lei de Segurança Nacional. É isso que queremos para nosso país? Sociedade e Estado brasileiro (forças armadas incluídas) precisamos rever estas posições e aproveitar a oportunidade que o Brasil tem, para mudar condutas e não só conhecer a história.

É necessário uma política pública integrada para um momento tão especial. Desenvolvida de modo a garantir à população a participação e o acesso aos trabalhos de implantação e desenvolvimento destas leis, baseada na educação para os direitos humanos e amplo acesso à informação, com sessões públicas e transmitidas pela tv e disponibilização da documentação pela internet, fazendo chegar às salas de aula de escolas, faculdades e quartéis, os conteúdos levantados na Comissão da Verdade e os mecanismos de acesso à informação desenvolvidos para o uso dos cidadãos, durante todo o processo e não só na publicação do relatório.

Como diz Amparo Araújo em entrevista à Carta Maior “é preciso que as pessoas queiram exercer o direito à memória e a verdade”, sendo fundamental para isso que a sociedade discuta e se envolva nestas questões tão importantes para os direitos humanos, para os rumos de nosso país e de nossos vizinhos latinoamericanos.

Temos a possibilidade de fortalecer instituições, a cidadania e a democracia, mas para isso as mesmas mãos que promovem este avanço, têm obrigação constitucional de dar cumprimento integral à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos para o caso Gomes Lund vs. Brasil. É hora de enfrentarmos essa situação. Temos que escolher entre o fortalecimento dos direitos humanos no país ou vermos contestado o Pacto de São José da Costa Rica e nos tornarmos uma nação sem princípios e sem parâmetros em direitos humanos.

Somada às recentes leis de acesso às informações públicas e da comissão da verdade, o benefício do cumprimento integral da sentença da Corte IDH se insere neste contexto de fortalecimento da cidadania, da democracia, da justiça. E pode fazer avançar estruturalmente as nossas instituições com a internalização e respeito à jurisprudência e jurisdição da Convenção Americana, representando um grande passo para gerar mecanismos de não repetição da interrupção por golpe de estado de um mandato presidencial e as práticas condenadas decorrentes.

Ao sentenciar o país a desobstruir a justiça para que os crimes de lesa humanidade praticados entre 1964-1985 sejam apurados e seus autores responsabilizados, a Corte IDH reafirma o estado democrático de direito. Por isso afirma, no primeiro ponto, que a sentença em si é uma reparação e não é só com a lei de Anistia que a Corte aponta para a consecução da justiça.

Solicita no ponto oitavo da sentença que o Brasil ratifique a CONVENÇÃO INTERAMERICANA SOBRE O DESAPARECIMENTO FORÇADO DE PESSOAS, concluída em Belém do Pará em 9 de junho de 1994. A lei foi aprovada pelo senado em abril de 2011 e aguarda sanção na Presidência da República. Caberá à presidenta Dilma Rousseff ratificar essa convenção e bom seria se o fizesse junto à sanção das duas leis citadas no programa Café com a Presidenta, de modo a ampliar as ferramentas para se construir mecanismos de não repetição e fortalecer o Nunca Mais em nosso país.

Mesmo se ratificarmos a convenção contra o desaparecimento forçado de pessoas, ainda faltará ao país, enfrentar a discussão da Lei da Anistia, onde possíveis soluções são a ADPF 153 da OAB, cujo embargos de declaração a mantém em discussão no Supremo Tribunal Federal ou na aprovação do PL 573/11 da Deputada Luiza Erundina, que harmoniza a legislação interna com a jurisprudência da Corte IDH, ou ainda pelo acolhimento judicial de ações desenvolvidas por atingidos e familiares ou Ministério Público Federal, amparadas na sentença da Corte.

Negar este ponto da sentença é restringir muito os benefícios das leis sancionadas pelo estado Brasileiro, pois a Comissão da Verdade, o acesso a informação pública e desenvolvimento de mecanismos de controle cidadão dessas informações, a ratificação da convenção contra o desaparecimento forçado de pessoas e a adequação da Lei de Anistia, são um único conjunto e como tal deve ser entendido e aplicado, pois a negação de um deles, enfraquece os resultados dos demais e atrasa o desenvolvimento de nossa sociedade.

O estado brasileiro, ao dar cumprimento integral, ao afirmar em nossos tribunais e cortes a jurisprudência da Corte IDH, fará algo fundamental à cidadania, reafirmando-a no âmbito do judiciário.

Várias instituições, coletivos e pessoas se mobilizam para construir a Campanha Cumpra-se em nossa sociedade, entendendo ser parte importante deste processo de construção de mecanismos de não-repetição, verdade, justiça e educação para os direitos humanos.     A união e mobilização da sociedade pelo cumprimento integral da sentença do caso Araguaia, quer garantir um avanço significativo aos direitos humanos em nosso Brasil e na América Latina.

Acesse www.cumpra-se.org, divulgue, cadastre-se. Envie suas cartas às autoridades exigindo o pleno cumprimento da sentença e assine a petição on-line. Participe das mobilizações da campanha e organize eventos em sua cidade.

Cumpra-se.

Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da     Arquidiocese de São Paulo e Coordenador do Projeto Armazém Memória

Anivaldo Padilha, líder ecumênico metodista, Ex-preso político e Associado de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço