Afirmava-se que o Euro traria taxas de crescimento económico elevadas, na Estratégia de Lisboa apontava-se mesmo para taxas de crescimento do produto de 3% ao ano, mas na verdade o crescimento médio anual foi apenas de 1,1%, entre 2001 e 2010. Afirmava-se que o Euro traria um forte crescimento do emprego, contribuindo para a redução dos elevados níveis de desemprego verificados na União Europeia (UE), mas o que se verificou foi um crescimento anémico, em termos médios de 0,6% ao ano, com uma taxa de desemprego média de 8,7% e que, em 2010, voltou novamente aos dois dígitos, ultrapassando os 10%, ou seja, quase 16 milhões de desempregados na Zona Euro.

Os desequilíbrios macroeconómicos agravaram-se, o que pode ser constatado nas disparidades crescentes dos saldos das balanças comerciais entre os países que compõem a Zona Euro (ver Gráfico 1), com a existência de países "importadores líquidos" e, por isso devedores, com um nível de dívida crescente, como Portugal, e de países "exportadores líquidos" e, por isso credores.

De acríticos muitos passaram a reconhecer as consequências da política do Euro forte, sobretudo imposta pela Alemanha desde o início, na perda da dita competitividade da UE, nomeadamente da sua periferia e particularmente dos denominados "países da coesão", como Portugal. Passaram a reconhecer as dificuldades de uma união económica e monetária, com as consequências decorrentes da aplicação de uma política monetária comum, a países com profundas disparidades nos níveis de desenvolvimento económico e social e, por isso mesmo, com necessidades de políticas diferenciadas ao nível monetário e cambial.

E havendo aqueles que apontam o risco de implosão do Euro, o terreno do "falhanço" está pejado dos federalistas mais convictos que, omitidos pela supremacia alemã, retornaram ao sonho da unificação política da Europa – uma moeda, um Estado, um governo económico. E, como não podia deixar de ser, retornaram aos "pais fundadores" e aos grandes líderes de outrora. Retornam também as teorias do núcleo super-integrado, defendendo mesmo a "expulsão" das economias mais débeis e periféricas da Zona Euro.

Também existem aqueles que reconhecem a necessidade de os Estados retomarem nas suas mãos os instrumentos de política económica, monetária, orçamental e cambial, defendendo que os países por sua própria iniciativa devem sair da Zona Euro, numa saída negociada com compensação financeira.

Mas o que é certo é que sem reconhecer o Euro e a União Económica e Monetária como instrumentos de classe não podemos compreender o papel que o Euro teve nesta década e muito menos responder à questão sobre se o Euro falhou. Em termos económicos, todos sabiam à partida que a Zona Euro não era uma Zona Monetária Óptima, nem uma inevitabilidade decorrente de necessidades económicas objectivas, da evolução das forças produtivas. O Euro foi e é uma decisão política, uma opção do grande capital "europeu", no contexto da integração capitalista no quadro do processo de classe que constitui a UE.

O instrumento de classe

O Euro e a União Económica e Monetária têm que ser enquadrados na resposta do capital à crise de rentabilidade que o sistema capitalista mundial atravessa. O Euro foi parte da resposta do capital "europeu", transpondo as orientações do denominado "Consenso de Washington" que caracterizou a resposta do capitalismo à crise nos últimos 20 anos.

Por detrás do objectivo único da política monetária – a dita estabilidade dos preços, encontra-se o objectivo, hoje cada vez mais claramente assumido e repetido, de reduzir os custos unitários do trabalho, ou seja, tornar a evolução dos salários dependente da evolução da produtividade, o que é o mesmo que dizer garantir a transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o capital, contribuindo para a aumentar a taxa de exploração e com ela garantir sustentação das taxas de lucro.

O Euro criava assim o quadro propício para a "moderação salarial", pois retirando aos países a política monetária, cambial, mas também a orçamental e a fiscal, por via das obrigações decorrentes do Pacto de Estabilidade e dos seus programas – os PECs, os únicos factores de ajustamento a choques económicos recaem sobre os salários e o emprego, ou melhor dizendo, pela desvalorização dos salários e o aumento do desemprego. Obviamente, o aumento do desemprego é a arma estratégica por excelência do capital – o exército de reserva, para "disciplinar" o trabalho e "moderar" o crescimento dos salários.

Mas com o Euro acentuou-se também a liberalização dos movimentos de capitais e, consequentemente, o grau de mobilidade do capital multinacional que opera no mercado interno europeu, reduzindo os custos de internalização e internacionalização do capital. As próprias deslocalizações, quer no interior na UE, quer para países terceiros, juntam-se ao desemprego para "disciplinar o trabalho". Ao mesmo tempo, a redução ocorrida das taxas de juro não só contribuiu para reduzir os custos de refinanciamento do capital e sustentar artificialmente as taxas de lucro, mas para estimular crédito junto também da classe trabalhadora, permitindo acomodar desvalorizações dos salários por conta do endividamento, o que em si mesmo corresponde a um acentuar da exploração do trabalho, agora também por via do pagamento de juros ao capital financeiro.

Ao mesmo tempo, a mobilidade do capital põe também em concorrência as forças de trabalho dos diferentes países. Com a redução dos custos unitários de trabalho a ser o móbil incentivador da concorrência inter-capitalista, quer ao nível nacional, quer estrangeiro, pela obtenção de maiores quotas de mercado, ou seja, pela apropriação e centralização da riqueza produzida pela força de trabalho "comandada" por outros capitalistas. Um "jogo de soma nula", que como mostra o Gráfico 1 para a Zona Euro, tem ganhadores e perdedores, decorrentes do desenvolvimento desigual do capitalismo.

Sendo de sublinhar, neste contexto, os ganhos evidentes do grande capital alemão, sobretudo o financeiro, com o Euro. Com Alemanha a assumir excedentes comerciais por conta dos défices e o endividamento de outros países, como Portugal.

O excedente comercial intra-comunitário alemão aumentou 172,3%, entre 2000 e 2007, e mesmo em 2009, apesar da recessão, o excedente comercial ascendeu a 70,5 mil milhões de euros, representando quase 42% do PIB português desse ano. Por seu lado, em simetria, países como Portugal viram o seu défice comercial intra-comunitário agravar-se no mesmo período 23%, a Grécia 34,2%, a Espanha 105,9% e, até França, teve um agravamento do seu défice de 208,2%. Talvez também aqui se explique que, apesar das aparências, o eixo franco-alemão que conduziu o processo de integração capitalista europeia, seja já só alemão.

Estes números também são demonstrativos da desindustrialização dos países ditos da "Coesão" e do papel a que estes foram votados no interior da UE. Por um lado, de consumidores, para escoamento da produção excedentária – quer bens transaccionáveis, quer bens de produção, quando não mesmo armamento, do centro da UE. Por outro lado, fornecedores de mão-de-obra barata para servir os interesses de divisão da cadeia de valor do capital multinacional, numa enorme rede de subcontratação. Por isso os fundos estruturais e de coesão foram essenciais, servindo os interesses do capital alemão e associados, da mesma forma que o Plano Marshall serviu o capital norte-americano.

Este foi claramente o caso Português, onde o modelo económico assentou (e assenta) nos baixos salários e na re-exportação, a par da progressiva desindustrialização e liquidação do sector primário substituída por uma terciarização económica, assente em sectores de baixo valor acrescentado. Em 2010, a produção industrial em Portugal encontrava-se ao nível de 1996. Entre 2001 e 2010, já sobre os auspícios do Euro, a produção industrial nacional recuou 14,1%. Na Grécia, a contracção foi maior, 20,4%. Na Espanha, foi de 14% e na França a contracção foi de 6,4%. O que mais uma vez indica, que o Euro fortaleceu o imperialismo alemão face a outros imperialismos, nomeadamente o francês.

Fica muitas vezes por dizer que o dito ganho competitivo da Alemanha deveu-se sobretudo à estagnação do crescimento dos salários reais dos trabalhadores alemães durante a última década.

Aqui, o Euro não falhou, cumpriu o papel para o qual foi criado. O Euro foi e é um instrumento fundamental, ao serviço da exploração do trabalho e da restauração das condições de rentabilidade do capital. O Gráfico 2 é disso elucidativo. Em termos médios anuais, na Alemanha, os lucros líquidos cresceram 81 vezes mais que os salários reais. Em Portugal cresceram 4 vezes mais e na Zona Euro 7 vezes mais. Paralelamente, os custos unitários do trabalho reais, em termos médios anuais, tiveram uma redução de 0,5% na Alemanha e 0,1%, quer em Portugal, quer na Zona Euro. Isto tendo já em conta a recessão mundial de 2009, onde a Zona Euro teve um recuo no produto de 4,1%, afectando por isso a produtividade do trabalho (produto por pessoa empregada).

Mas é talvez mais significativo ter em conta os valores acumulados da década do Euro. Entre 2001 e 2010, os lucros do capital alemão aumentaram 41,7%, enquanto os custos unitários do trabalho reais tiveram uma redução 4,6%. O mesmo se passou na Zona Euro, onde os lucros aumentaram 35,8%, enquanto os custos unitários do trabalho reais tiveram uma redução de 1,1%. Também em Portugal, onde os lucros cresceram na última década 25,6%, por conta de uma redução dos custos unitários do trabalho reais de 1,3%.

Este é um instrumento que o grande capital "europeu" não quer perder, mesmo face às rivalidades inter-imperialistas existentes, inclusive nos países que compõem a Zona Euro. Aliás, um instrumento para o qual as principais organizações do capital "europeu", a Business Europe (confederação patronal europeia) e a ERT (mesa redonda dos industriais europeus), deram um importante contributo na sua criação e sustentação.

As zonas e a integração

Sendo central a questão do papel do Euro e do seu enforcer, o Banco Central Europeu, para a redução dos custos unitários do trabalho, a verdade é que existiam em paralelo outros objectivos com a criação do Euro. Logo à partida, aliás como noutros saltos da chamada construção europeia, o aprofundamento da integração em termos económicos contribuía sempre para uma maior integração política, num processo contínuo de aprofundamento vs. alargamento da União, como forma de resolver os bloqueios e as crises do processo de integração e "limar" as contradições em torno do poder e a da repartição de ganhos e perdas. O Euro, uma das pedras lançadas pelo Tratado de Maastricht, reforçava assim o caminho da integração que veio a ser cumprido, no essencial pelo Tratado de Lisboa.

Uma unificação monetária, a capacidade de emitir moeda que é uma das componentes da soberania de um Estado, criava as condições objectivas para reforçar as componentes da constituição de um efectivo governo económico. Logo em 1997, é criado o Pacto de Estabilidade, impondo o processo de condicionamento da política orçamental e fiscal dos países participantes, em paralelo, mais tarde, com a Estratégia de Lisboa (agora apelidada de Estratégia 2020), impunham-se novos constrangimentos, com programas de execução e orientações traçadas ao nível comunitário, ao nível da liberalização de sectores estratégicos na área das comunicações, energia, transportes e dos serviços, das reformas ao nível do mercado de trabalho e nas áreas sociais, assim como da financeirização da economia.

Até o agora aprovado e em curso "Semestre Europeu", que no fundo coloca todas as áreas da política de um Estado, no crivo da decisão comunitária. Tornando-se assim um constrangimento absoluto a qualquer modelo de desenvolvimento endógeno que um Estado preconize. Obviamente, não para todos, mas de acordo com a dimensão e poder do Estado em causa, pois o que se aplica aos pequenos e médios países, não se aplica aos grandes, como se demonstrou com o incumprimento do Pacto de Estabilidade, por parte da Alemanha e da França em 2005.

É claro, que em torno da União Política e de uma União Económica e Monetária, havia também a criação de uma zona de influência do Euro, que rivalizasse com a do dólar, dando cobertura às necessidades comerciais do capital "europeu", garantindo ao Euro um papel de reserva mundial. A única questão é que ao contrário da zona de influência do dólar (que continua a dominar os principais mercados de matérias-primas), que tem no seu centro os Estados Unidos disposto a funcionar como consumidor e devedor de último recurso, no caso do Euro existe uma Alemanha que assume um papel inverso. Num contexto de um quase inexistente orçamento comunitário que representa cerca de 1% do produto da UE, vinte vezes inferior ao orçamento federal dos Estados Unidos.

Surgem aqui as contradições inter-imperialistas. Está disposta a Alemanha, o capital alemão, a assumir o seu papel na zona de influência do Euro, obviamente implicando assumir perdas e partilhar ganhos? E será isso suficiente? Pois a questão não é tanto se o Euro aqui falhou, mas sim o facto do capital alemão saber que o Euro mesmo assim vale mais do que o Marco como instrumento de classe ao seu dispor. Sendo certo que sem intervenção para acudir aos crescentes desequilíbrios macroeconómicos, o Euro corre riscos de implodir ou de a Zona Euro ficar mais reduzida.

A questão é que mesmo tendo o Euro cumprido o seu papel, no caso europeu, a verdade é que este não foi suficiente para responder à crise sistémica em que o capitalismo continua mergulhado – uma crise de rentabilidade, uma crise de sobre-acumulação de capital sob todas as formas, onde o sistema capitalista mundial vai (sobre)vivendo de episódio de crise em episódio de crise. Sustentado artificialmente em "montanhas" históricas de dívida e de capital fictício, sem qualquer cobertura, sem uma retoma efectiva do processo de valorização do capital. E claro, afectando e moldando o próprio papel instrumental da integração capitalista europeia.

O "Pacto para o Euro mais", decidido no Conselho Europeu de Primavera a 24 e 25 de Março de 2011, mostra sem rodeios para que serviu e serve o Euro – reduzir os custos unitários de trabalho. A austeridade imposta pelo Euro, por via de uma política monetária restritiva e do(s) PEC(s), serve o propósito estratégico de restaurar as condições de rentabilidade do capital, por via do incremento da exploração do trabalho, num contexto de uma crise sistémica.

O Euro foi e é uma "declaração de guerra" aos trabalhadores dos países da Zona Euro e de toda a UE. Uma década de desvalorização social e de desemprego crescente assim o demonstra. Apesar das contradições, a integração capitalista reforça-se criando mecanismos de constrangimento absoluto, elevando o patamar da ofensiva de classe em curso.

A emancipação dos trabalhadores portugueses, e dos outros trabalhadores dos países que constituem a UE, passa pela tomada de consciência de que não existem saídas no actual quadro que não passem por uma ruptura com as políticas vigentes, pela necessidade de derrotar o instrumento de classe que é a UE, de fazer retornar aos Estados os instrumentos de política económica, monetária, orçamental e cambial e pôr no domínio público os sectores estratégicos que permitam alavancarem o desenvolvimento económico dos países, ao serviço dos trabalhadores e dos povos. Ter consciência que só a luta de massas e a elevação do grau de organização da luta poderão derrotar a ofensiva em curso. Tendo presente que os tempos das inevitabilidades e das irreversibilidades acabaram e que os tempos são de oportunidade, tendo em conta as contradições inter-capitalistas. Hoje, como ontem, o que é necessário é que os trabalhadores e os povos tomem nas suas mãos a afirmação do seu destino, liberto da exploração. O combate ao Euro, às orientações que lhe dão suporte e às políticas que viabiliza, é parte indissociável desta luta mais geral.

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Economista.

O original encontra-se na revista Portugal e a UE, nº 61, Agosto 2011.

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