Lentes de contato coloridas e alisadores de cabelo estão entre os produtos preferidos das meninas de 9 a 15 anos que percorrem a Vila Mariana, bairro da zona sul de São Paulo, entrando nas lojas, pegando esses produtos e saindo sem pagar.

Buscam padrões de beleza convencionalmente estabelecidos e, para isso, arriscam-se a estar sempre às voltas com a polícia. Mas não medem esforços para conseguir celulares cor-de-rosa, casacos coloridos e outros acessórios.

Lembram os recentes saques às lojas de Londres. A intensidade e a violência é muito menor, mas a motivação assemelha-se. Em ambos os casos, a ambição é o consumo de bens identificados com a projeção do status social.

As semelhanças não param aí. Em São Paulo, como em Londres, os serviços públicos de apoio e assistência aos jovens estão sendo dizimados pela política do “Estado mínimo”.

Em Tottenham, bairro ao norte da capital britânica, o orçamento social foi cortado pela sub-prefeitura em 75% provocando o fechamento de 8 dos 13 centros de lazer e atendimento à juventude (1).

Em São Paulo foram fechados 15 centros de referência especializados em receber jovens vindos das ruas (2). Sem falar no amplo déficit de equipamentos públicos de lazer, cultura e esportes existente na cidade.

A questão como se vê é global. Combina o desmonte neoliberal do Estado com a massificação e a homogeneização dos padrões de consumo. Não é um fenômeno recente. Ele vem sendo fermentado há algumas décadas. Recentes são as reações aqui exemplificadas.

A combinação é perversa. De um lado, retiram-se as oportunidades de lazer, educação e emprego de amplos setores da juventude e, de outro, nivelam-se para toda a sociedade os mesmos padrões sedutores de consumo. Como se a possibilidade de acesso a esses bens fosse igualitária.

Em artigo publicado bem antes dos distúrbios em Londres, o historiador britânico Timothy Clark já chamava a atenção para uma “assustadora realidade” representada no fato de que “nunca antes os miseráveis da terra existiram em tal situação híbrida de perplexidade e fúria, com as imagens de consumidores satisfeitos despejadas todas as noites pela televisão à platéia de seus novos servos endividados, em quartos alugados a preços escorchantes”(3).

No Brasil as imagens de “consumidores satisfeitos” chegam através da TV a 95% dos domicílios, nivelando hábitos e aspirações. A tensão que isso provoca nos menos favorecidos tem sido atenuada nos últimos anos com a melhoria da distribuição de renda em todo o pais.

Fator que em São Paulo tem eficácia diminuída devido às políticas restritivas aos serviços públicos implantadas pelos governos estadual e municipal. Surgem então as meninas vindas das bordas distantes da cidade em busca das lentes de contato coloridas. A Vila Mariana para elas é um parque de diversões.

Nesse aspecto a situação em Tottenham é diferente. Trata-se de um bairro pobre para os padrões britânicos e os revoltosos moram lá mesmo. Quantos não são até vizinhos das lojas atacadas?

Diferença significativa mas não suficiente para apagar os traços comuns de exaltação ao consumo e da impossibilidade de realizá-lo existentes nas duas regiões.

Ao explicar o “fetiche da mercadoria” Marx já apontava como ela, aos olhos do mundo, ganhava vida própria, obscurecendo o valor produzido pelo trabalho nela contido.

As técnicas científicas de propaganda e marketing atuais levaram a fetichização das mercadorias a níveis antes nunca vistos. Não são mais apenas úteis, são amadas, como se vida própria tivessem.

O valor simbólico por elas hoje adquirido é resultado da combinação das técnicas de manipulação da indústria publicitária com a sofisticação cada vez maior dos meios de difusão de sons, imagens, ideais e valores.

A violência dos rebeldes de Londres e a persistência ágil das meninas de São Paulo são o resultado dessa convergência. Sinais do início de um processo cujos desdobramentos são imprevisíveis.

A certeza única é que elas se perpetuarão, na medida em que a necessidade de reprodução acelerada do capital permanecer como o motor central das sociedades modernas (ou pós).

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1. Ver “Distúrbios em Londres: os limites da linha dura”

2. “Prefeitura fechou 15 centros de referência” em Folha de S.Paulo, 28/8/2011, pág. C3.

3. Clark, T.J. “O estado do espetáculo” em Salzstein, Sônia; Modernismos, Cosac Naify, São Paulo, 2007

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Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.

Fonte: Carta Maior