Se Lênin, como Harvey pretende aqui, tivesse realmente caracterizado o imperialismo como "a última fase" do capitalismo ele teria feito uma espécie de pronunciamento final sobre o futuro que os materialistas históricos sempre tentaram evitar. De fato, a observação de Harvey quanto ao trabalho de Lênin é destituída de fundamentação uma vez que está baseada numa antiga má tradução da primeira edição do famoso panfleto de Lênin sobre o imperialismo. Lênin originalmente pensou intitular este trabalho como "As características básicas do capitalismo contemporâneo". No seu manuscrito original de 1916, ele lhe atribuiu o título "Imperialismo, a fase superior (mais elevada) do capitalismo" (Imperialism, the Highest Stage of Capitalism) . Mas ao publicar o seu panfleto em 1917 ele resolveu dar-lhe o título de "Imperialismo, a última" — no sentido de 'mais recente' — "fase do capitalismo" (Imperialism, the Latest Stage of Capitalism). Ele seguiu o precedente de Rudolf Hilferding que havia intitulado a sua grande obra "Capital financeiro, a última fase do desenvolvimento capitalista" (Finance Capital, the Latest Phase of Capitalist Development). Este ainda é o título dado em russo em todas a entradas do livro de Lênin existentes na Library of Congress.

Uma antiga má tradução para a língua inglesa, surgida num certo número de diferentes edições na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, converteu isto em "última fase" do capitalismo (por vezes também traduzido como a "fase final"). A esta má tradução é que Arendt e Harvey estavam se referindo na declaração citada acima. (O título de Lêni foi traduzido corretamente por J. T. Kozlowski na edição publicada pela Marxian Educational Society, em Detroit em 1924).

No fim da década de 1920, após a morte de Lênin, o Partido Comunista da União Soviética publicou uma nova edição do trabalho em que "fase mais elevada" ("highest stage") foi substituída por "fase mais recente" ("latest stage) e o trabalho passou a ter aquele título desde então. Entretanto, uma vez que este não era o título publicado pelo próprio Lênin, afirmações teóricas baseadas no uso do "fase mais elevada" no título do seu livro — e ainda mais no caso do mal traduzido "last stage" — são destituídas de uma base firme. (Ver John Bellamy Foster e Henryk Szlajfer ed., The Faltering Economy [1984], p. 21; Robert Service, Lenin: A Political Life , vol. 2 [1991], pp. 113–14; Lenin, Works[edição em língua russa], vol. 19, p. 79; National Union Catalog, Pre-1956 Imprints, vol. 326, p.p. 239-41).

Para confirmar, Lênin não só empregou "fase mais elevada" como título do seu manuscrito de 1916 — embora tenha acabado por decidir não publicar o trabalho sob este título — como também utilizou a expressão no prefácio das edições francesa e alemã de 1920. No entanto, é claro a partir do contexto daquele prefácio que ele estava ali a utilizar "fase mais elevada" num sentido muito definido. A revolução de 1917, acreditava ele, havia desencadeado condições para a revolução mundial e o declínio capitalista, sugerindo que a mais elevada fase do capitalismo fora alcançada — no mesmo sentido que alguém pode dizer que a fase mais elevada do Império Romano foi alcançada sob Augusto (o começo do Império Romano emergiu da República Romana). No caso romano, a Era de Augusto representou não só o apogeu do Império como também prenunciou mais de um milênio de decadência e conflitos internos/externos — passando por numerosas fases adicionais — antes da morte final de Roma. Assim, a expressão "o mais alto" não significa o mesmo que "último" ou "final". Para Lênin, assim como para Marx, o capitalismo somente acabaria com a revolução social e só na medida em que esta fosse "a precursora da revolução social proletária" numa "escala mundial" — como ele disse no fim do seu prefácio de 1920 — é que era possível falar na "fase mais elevada" do capitalismo — além da qual estende-se um período mais ou menos prolongado de revolução e declínio capitalista.

Lêrnin era na prática, assim como por profissão, um revolucionário otimista. Não há dúvida de que ele acreditou em 1917 e imediatamente após que a revolução que principiava na Rússia podia espalhar-se rapidamente para a Europa Ocidental na esteira da Primeira Guerra Mundial. Mas a sua vasta perspectiva teórica não excluía uma luta muito mais prolongada entre socialismo e capitalismo, envolvendo um declínio e queda do sistema capitalista que se estenderia bastante no futuro. Mesmo com o triunfo revolucionário da Revolução Russa por trás de si Lênin não previu uma sequência histórica definida de eventos conduzindo à rápida e inevitável morte do capitalismo em todas as suas formas. Não havia nenhum determinismo absoluto no seu pensamento. As situações revolucionárias, afirmava ele, podem ser objetivamente determinadas, mas a própria revolução permanece um fato histórico contingente.

Tal reconhecimento da contingência histórica não é contrário ao marxismo, mas faz parte da sua própria essência. A história não tem fim, e o presente como história é sempre tanto forçado como contingente. Não pode haver maior distorção do materialismo histórico do que concebê-lo como conduzindo a um estrito determinismo que, então, torna-se uma base pseudocientífica para profetizar desenvolvimentos históricos antes de eles acontecerem. Uma perspectiva aberta, não-teleológica, distinguiu o marxismo clássico — em oposição ao marxismo oficial que teve êxito na União Soviética a partir dos fins da década de 1920. O trabalho de 1917 de Lênin, "Imperialism, the Latest Stage of Capitalism", é por si próprio o exemplo perfeito da aplicação deste princípio do materialismo histórico.

* MR é uma tradicional revista marxista norte-americana, originalmente editada pelo conhecido economista Paul Sweezy.
[NT] Traduções para o português adoptadas:
last stage = última fase
latest stage = a última (no sentido de mais recente) fase
highest stage = fase superior (no sentido de mais elevada)
final stage = fase final
A edição portuguesa das Edições Avante! adopta o título "O imperialismo: fase superior do capitalismo".

O original encontra-se em http://www.monthlyreview.org/nfte0104.htm .

(Janeiro de 2004)