Causa espanto a desfaçatez com que a grande imprensa decide tratar, destratar, maltratar ou não tratar assunto que por algum infinitésimo de segundo lhe cause incômodo na esfera política. Refiro-me ao filho adulterino do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso com a jornalista Miriam Dutra, então funcionária da Rede Globo de Televisão. A vida do inocente filho sempre foi permeada por mistério, muitos silêncios, excessivas pausas e imoderada paciência em levar a público o que já era de conhecimento de meia Brasília política, de meio país dos mexericos e se podiam contar nos dedos os jornalistas desinformados de paternidade tão noticiada nos bastidores do Poder quanto sigilosa nos meios noticiosos de circulação nacional e de maior audiência radiofônica e televisiva.

Causa espanto a desfaçatez com que a grande imprensa vem, com atraso de 19 anos, dar conta que o filho do experiente político com a renomada jornalista na verdade não é seu filho biológico: dois exames de DNA deram negativo. E o mesmo espanto é estendido à informação de que este filho, mesmo não sendo seu do ponto de vista biológico é assumido plenamente pelo velho patriarca como seu por “laços afetivos e emocionais”. E o assunto somente terá seu capítulo final após sua morte que é quando seus três filhos legítimos com D. Ruth Cardoso irão tratar do sensível tema chamado direito à herança. Até lá, este mais novo desdobramento de uma notícia há tanto tempo vetada de vir à luz pública, não por força de monstruosos sensores, e sim, de decisão editorial envolvendo os principais jornais do eixo Rio-São Paulo, as revistas de maior circulação nacional e as redes de televisão de maior audiência.

Causa espanto a desfaçatez com que a grande imprensa aceitou ser “furada” por uma revista de modesta circulação nacional e, para completar o contraste do furo, de regularidade mensal – a Caros Amigos. E foi em sua edição nº 37, de abril do ano 2000, que o editor de Caros Amigos Palmério Dória publicou a matéria “Por que a Imprensa esconde o filho de oito anos de FHC com a repórter da Globo?”. A revista questionava o silêncio concedido pela grande imprensa ao assunto, e apontava o grave contraste com o estardalhaço com que esta mesma grande imprensa tratara de filhos ilegítimos de outras personalidades do mundo político como Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva, não por acaso, também ex-presidentes da República.

Causa espanto que uma imprensa sempre tão ciosa de ter seu direito à liberdade de expressão cassado, censurado, suprimido, tenha de livre e espontânea vontade (editorial) desistido de divulgar assunto tão mobilizador de corações e mentes. Vale registrar que, à época, não foram poucos os jornalistas que se apressaram a não acusar o golpe – no caso o furo protagonizado por Caros Amigos – e deixando claro que o “filho ilegítimo de FHC” se tratava tão-somente de um “assunto pessoal”, desprovido de qualquer “teor jornalístico” e não oferecendo aqueles características basilares que têm o poder de converter a mera informação de bastidor em “notícia capaz de interessar à opinião pública”.

Causa espanto que o assunto, desde seu nascedouro, no caso, desde o nascimento do pequeno Tomás Dutra Schmidt, o tema já se impunha com todos os ingredientes com que uma informação assume ares e jeito de notícia e mesmo assim foi escanteado para o misterioso arquivos dos “assuntos que são, mas não deviam ser notícia”. Tinha a marca da novidade, relevância, importância (por se tratar de filho do Presidente da República); configurava aspectos de raridade (porque não é comum deixar de noticiar a existência de filho ilegítimo de um Presidente da República), trazia a força capaz de atiçar a curiosidade (porque era filho de famosa jornalista da principal rede de televisão do Brasil, a Globo); era, sobretudo, oportuna (porque na campanha eleitoral de 1989, um dos maiores escândalos era nada menos que a existência da jovem Lurian Cordeiro, igualmente filha ilegítima do segundo candidato mais votado à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

Em resumo, noticiar a existência de Tomás não poderia ser chancelado, sob qualquer hipótese como “evento pouco significativo, banal ou corriqueiro”. Muito menos ainda vir a ser tratada como notícia destinada a passar ao largo do chamado interesse do público. E, no entanto, assim foi tratada. E não apenas pela Rede Globo de Televisão, como também pelo SBT, pela Record e pela Band. Deixou de ser impressa tanto nas páginas de Estado de São Paulo quanto nas de O Globo e da Folha de S.Paulo. Nenhuma emissora de rádio registrou algum locutor dando conta do assunto. E quando se levanta a tese da existência de personalidades premiadas com a blindagem da imprensa é óbvio que esta não surge do nada, do encontro do vento sudeste com o noroeste, do acaso com a mera coincidência. É que existe blindagem mesmo.

Causa espanto que somente no domingo, 15 de novembro de 2009, reportagem da jornalista Mônica Bergamo na Folha de S.Paulo, dava conta que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceria oficialmente Tomas Dutra Schmidt como filho. E agregava que “Tomas, que hoje tem 18 anos, nasceu da relação amorosa que FHC teve com a jornalista Mirian Dutra, da TV Globo.”. A jornalista informava ainda que “FHC consultou advogados e viajou na semana passada para Madri — onde vive a jornalista — para cuidar do reconhecimento do filho.” Cuidadosa na apuração de suas notícias exclusivas, Mônica Bergamo informava também que “FHC negou a informação e disse que estava na cidade para a reunião do Clube de Madri. Procurada pela Folha, Mirian disse que quem deveria falar do assunto seria ele e a família dele.” Com este punhado de informações parecia que, finalmente, nove anos após a alentada reportagem do jornalista Palmério Dória em Caros Amigos, um dos nossos grandes diários trazia à luz o mais comentado e também o quase-nunca-noticiado segredo da República. Outros veículos de comunicação fizeram o de sempre: repercutiram a notícia sem agregar qualquer nova informação.

É curioso observar como o mexerico, desde o início, recebeu as tintas da autenticidade. Bergamo não deixa margem à dúvidas quanto à paternidade de Tomás: “Tomás, que hoje tem 18 anos, nasceu da relação amorosa que FHC teve com a jornalista Mirian Dutra, da TV Globo.” E escancara nas entrelinhas a quantidade de energia despendida pelo ex-presidente para despistar nossos argutos jornalistas sobre o assunto, quando mesmo há poucos dias de reconhecer oficialmente o filho, na verdade encontrava-se na capital espanhola apenas para atender “a reunião do Clube de Madri”.
Causa espanto, e põe espanto nisso!, as três notas publicadas pela revista Veja (Edição 2223, de 29/6/2011), na coluna Radar, do jornalista Lauro Jardim. São elas:

DNA revelador 1
Dois exames de DNA, o último deles feito no início do ano, deram um desfecho surpreendente a uma história envolta em muita discrição há duas décadas: Tomás, de 19 anos, o rapaz que FHC reconheceu oficialmente como filho em 2009 em um cartório espanhol, não é filho do ex-presidente.

DNA revelador 2
Embora só tenha perfilhado Tomás há dois anos, FHC sempre ajudou a jornalista Miriam Dutra, sua mãe, a sustentá-lo. Como morava entre Portugal e Espanha, para onde Míriam foi enviada pela Globo pouco antes do seu nascimento, Tomás tinha contato com FHC quando o ex-presidente viajava para a Europa – tendo eles se encontrado também várias vezes no Brasil durante a passagem de FHC pela Presidência. A situação, porém, sempre foi envolta em total reserva, quebrada somente com a publicação pela Folha de S.Paulo, em 2009, de uma reportagem sobre o reconhecimento de Tomás.

DNA revelador 3
No ano passado, mesmo sem nenhuma contestação da paternidade, FHC e Tomás, hoje estudando relações internacionais nos EUA, decidiram fazer exames de DNA. Eles foram juntos ao laboratório. Antes, no entanto, FHC disse a Tomás que, qualquer que fosse o resultado, nada mudaria na relação entre os dois. Com o inesperado resultado dos exames em mãos, FHC reafirmou o que dissera. Portanto, nada muda na vida do rapaz no que diz respeito a seu ex-pai biológico.

Nenhuma das notas, com o que agora soa como irônico título “DNA revelador”, revelou algo que capaz de jogar luzes sobre o DNA da nossa grande imprensa: quais os reais motivos para sonegar do público a existência do filho ilegítimo de Fernando Henrique Cardoso? E, se optasse por condensar as três notas em apenas uma, o jornalista poderia ter brindado seus sonolentos leitores com informações como:

(1) Por quê o tratamento desigual concedido aos filhos ilegítimos de outros ex-presidentes da República?

(2) Por quê não buscar alguma declaração de Miriam Dutra sobre a real identidade do pai biológico de Tomás Dutra Schmidt?

(3) Quanto custou a Fernando Henrique Cardoso o peso de tão longevo silêncio por parte de nossa grande imprensa acerca de suas estripulias extramatrimoniais?;

(4) Por quê a revista Veja desconheceu o furo de Caros Amigos – ocorrido com antecipação de no mínimo 9 anos? – e oferece atestado de paternidade do referido furo ao jornal Folha de S.Paulo, que, a bem da verdade, publicou informações da jornalista Mônica Bergamo, apenas em sua edição de 15/11/2009?

Aberta a temporada de celebrações por ocasião dos 80 anos do pai-afetivo, mas não biológico do jovem Tomás, há que se inferir que seria tremendo mau gosto incluir o exame de DNA tão diligentemente divulgado por Lauro Jardim como… parte das comemorações.

Sem dúvida, o assunto que ainda parece longe de ter seu desfecho, oferece ensejo para alentada reflexão do papel de nossa grande imprensa e sua perigosa opção por continuar se equilibrando entre o bom e o mau jornalismo.

Até o momento, o mau jornalismo parece estar ganhando. E de goleada.

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Washington Araújo é jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil, Argentina, Espanha, México. Tem o blog
http://www.cidadaodomundo.org

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Fonte: Carta Maior