A maioria dos seminários foi transmitida em tempo real pela internet, e isso permitiu o envolvimento direto de mais de 10 mil pessoas no debate. Imaginava que a gestão Ana de Holanda simplesmente desse sequência a toda essa contribuição da sociedade, e não que reabrisse a consulta pública, embora, como já disse, a democracia pode reclamar mais debate, e vamos entender as coisas dessa maneira.

Estou entre os que defendem que o governo Lula, ao colocar em andamento uma revolução democrática profunda no País, situou a cultura como parte desse processo, e pela primeira vez começou a construir uma política cultural dirigida pelo Estado brasileiro. Uma política destinada a enfrentar, como diria o professor e hoje secretário de Cultura do governo da Bahia, Antonio Albino Canelas Rubim, as três tristes tradições das políticas culturais em nossa terra: ausências, autoritarismos e instabilidades, substituindo-as por uma participação ampla da sociedade, pelo diálogo e pelo respeito às diferenças. Em oito anos, houve mudanças profundas, sob a orientação do presidente Lula e condução dos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira.

Entre as tantas mudanças promovidas pelo Ministério da Cultura, sob Gil e Juca, destaco, para não me alongar, o que considero essencial: procurar aproximar o Ministério daquilo que poderíamos denominar as forças vivas da cultura, descobrir, e é isso mesmo que quero dizer, as populações, os grupos até então invisíveis, e que tinham e têm extraordinárias contribuições a dar à nossa vida cultural. Dito de outra maneira, que davam essas contribuições havia muito tempo, mas que eram condenados, pela política, à invisibilidade.

O Ministério compreendeu as possibilidades da cultura digital, e de todo modo que pôde, procurou fazer chegar a essas populações e grupos as potencialidades dessa nova cultura, indo além do que eles próprios já haviam conquistado. O Programa Cultura Viva, com os Pontos de Cultura, simbolizam muito desse movimento. E naturalmente, esperamos todos nós, os Pontos de Cultura devem continuar a ser estimulados por tudo que significam para a cultura brasileira.

Compreendemos, por natural, que o governo da presidenta Dilma é continuidade e aprofundamento da revolução democrática em curso no Brasil. Tem sido, inegavelmente. Especialmente quando a presidenta situa como absolutamente prioritário o combate à desigualdade e à miséria, seguindo as conquistas já realizadas nos oito anos anteriores.

E é também quase óbvio que o acesso à cultura é parte do combate às desigualdades, é parte da construção continuada da democracia, da revolução democrática. Sem isso, sem a ampliação do acesso à cultura, a democracia fica aleijada, a cidadania é expropriada, ao menos num aspecto que é essencial. Não dá para pensar a cidadania sem a fruição e a realização da cultura, e sem que o Estado desenvolva políticas destinadas a possibilitar uma e outra.

É nesse contexto que queremos pensar a questão dos direitos autorais. Quero falar como cidadão e como autor, escritor que sou de muitos livros. Aqui, também, para não parecer original, recorro ao que já foi construído pelo próprio Ministério da Cultura nas duas gestões anteriores. Vamos, antes, lembrar que o Fórum Nacional de Direito Autoral, lançado em 2007, e que contou com a participação de todos os interessados, fez uma intensa e profunda discussão sobre o assunto, envolvendo os próprios direitos autorais e o papel do Estado. O que se quer insistir é que esse processo está permeado por intensos e amplos debates.

Creio, antes de tudo, que vivemos numa sociedade marcada pelas redes, pela presença da internet, por uma intensa participação da sociedade ou ao menos por um esforço sistemático das pessoas e dos povos de todo o mundo em participar, participação facilitada, insistamos, pela rede mundial de computadores. Querer bloquear esse processo, querer barrar a fruição da internet, do seu conteúdo, é um equívoco grave, que os defensores da democracia não podem admitir, sob nenhuma hipótese ou argumento. Embora não seja este o nosso tema, passo por ele, como uma digressão, mas sabendo que há, inegavelmente, alguma ligação, especialmente porque pela internet o nosso povo tem acessos que antes lhe eram negados, especialmente acessos a obras culturais.

No processo de aperfeiçoamento da lei vigente, de 1998, relativa aos direitos autorais, o Ministério da Cultura levou em conta pelo menos três princípios essenciais. O primeiro deles é que havia, há, um óbvio desequilíbrio na relação entre criadores e investidores. Os criadores fazem a cessão total de direitos para os investidores, e qualquer hipótese de revisão contratual fica praticamente impossibilitada. Destaque-se, nesse caso, a cessão de direitos de criadores nacionais para investidores internacionais.

Vamos lembrar que a importância econômica das indústrias direta ou indiretamente relacionadas ao direito autoral atinge, segundo estimativas da Organização Mundial da Propriedade intelectual, mais de 7% do PIB mundial. E, de fato, apesar de grande produtor de conteúdos protegidos, os autores brasileiros, titulares originários de direitos, por exemplo, no campo da música e do audiovisual, ainda não possuem uma inserção significativa no mercado mundial.

Creio que a legislação autoral pode estimular novos modelos de negócio e de contratos que possibilitem uma expressão muito maior da riqueza da produção cultural brasileira em escala internacional, em benefício de autores nacionais, de forma autônoma e não subordinada à lógica dos grandes grupos hegemônicos em escala mundial. Trata-se de produzir uma legislação que dê, nesse caso, mais poderes ao autor, de modo que ele tenha maior controle sobre a exploração econômica de suas obras e possa obter, assim, uma remuneração justa pelo seu trabalho.

O segundo princípio considerado pelo Ministério da Cultura foi o de que há um desequilíbrio entre os direitos conferidos pela lei aos titulares de direitos autorais e os direitos dos membros da sociedade de terem acesso ao conhecimento e à cultura. Se é verdade que a Constituição brasileira situa a proteção dos direitos autorais entre os direitos fundamentais, não se pode esquecer que a nossa Carta estabelece, também, o direito de acesso à informação, o direito à educação, o direito de acesso dos cidadãos à cultura, o direito à livre manifestação artística e cultural. Como se vê, um elenco de direitos da cidadania, que precisam ser contemplados pela mudança da lei, e que o Ministério da Cultura, na consulta anterior, levou em conta.

Afinal, a lei de 1998 de direitos autorais, representa um obstáculo a muitos daqueles direitos. Ela impossibilita a realização de cópia integral de obra sem autorização prévia para uso privado, a reprodução de obras para restauração e preservação, a reprodução de obras destinadas a pessoas com deficiência física, ou mesmo, em alguns casos, a reprodução destinada a atividades de ensino. Tudo na contramão dos tempos que vivemos, em que essas proibições, por mais esforços que se façam, se tornam inócuas, ou vão se tornando crescentemente inócuas, sobretudo pela emergência da internet.

Não dá para criminalizar a vida. As regras atuais têm colocado na ilegalidade atos como gravar um filme exibido em TV aberta ou copiar música de um CD para o computador, impondo sempre a necessidade de autorização prévia dos titulares de direitos sobre as obras. A lei navega contra a dinâmica da contemporaneidade de uma sociedade cada vez mais midiatizada e em rede. Consideremos os muitos absurdos cometidos pelo ECAD, estranha figura privada que se arvora direitos que não tem, e isso por conta da falta de clareza do papel do Estado. Recente decisão do Superior Tribunal de Justiça recoloca em patamar justo os direitos da sociedade em oposição aos direitos privados, ao contrariar pretensão do ECAD. Tratava-se de tentativa do ECAD de cobrar direitos autorais num ato religioso sem fins lucrativos, negado pelo STJ. A sociedade tem precedência em relação ao ECAD.

O terceiro princípio observado na consulta anterior realizada pelo Ministério foi o da ausência de um papel claro do Estado na proteção e promoção dos direitos autorais no País. A ausência do Estado tem impedido a formulação e concretização de políticas públicas que respondam às necessidades e problemas da sociedade no que se refere aos direitos autorais, deixando tais direitos ao arbítrio de entidades privadas, que não consideram nem os direitos legítimos dos autores e, muito menos, os direitos da sociedade consagrados na Constituição. É um vácuo absolutamente inaceitável, que dá espaço a entidades como o ECAD e congêneres a fazerem o que bem lhes aprouver, afrontando direitos legítimos, voltamos a insistir, tanto de autores como da cidadania, que para elas parece não existir.

Não dá mais para o Estado deixar de regular, de formular e acompanhar políticas públicas relativas aos direitos autorais. E sempre com o duplo olhar. Proteger os direitos dos autores, de modo justo. E proteger, também de modo justo, e até com mais ênfase, os direitos do cidadão comum, que não pode deixar de fruir e de produzir cultura. É essencial que tenhamos critérios mais justos de arrecadação e distribuição quando se trata de direitos autorais. Não podemos continuar submetidos aos critérios absolutamente aleatórios, sem transparência, do ECAD.

O admirável mundo novo das novas mídias, da internet, o papel cada vez maior dos povos na configuração da sociedade mundial e da sociedade brasileira em particular não admite mais restrições tão obsoletas, tantas tentativas de bloquear o acesso da população, particularmente dos mais pobres, à cultura. Os autores serão tanto mais reconhecidos e com mais possibilidades de remuneração quanto mais forem conhecidos, assimilados pelos comuns, pelas multidões.

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Fonte: CartaCapital