Recentemente temos observado uma elevação preocupante dos índices inflacionários no Brasil. Com efeito, o IPCA acumulado nos últimos 12 meses passou de 4,59% em janeiro de 2010 para 5,99% em janeiro de 2011. A taxa de inflação não só se encontra acima da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) – igual a 4,5% a.a. – como também perigosamente próxima do teto da banda de variação (6,5% a.a). As expectativas de mercado para o IPCA em 2011 também são bastante pessimistas. Segundo a média do mercado captada pelo último boletim Focus, a inflação deverá fechar o ano de 2011 em 5,79% a.a, bem acima da meta de 4,5% a.a; embora ainda dentro do intervalo de tolerância admitido pelo sistema de metas de inflação.

Uma questão pertinente no debate brasileiro atual refere-se a se a elevação observada nos índices de inflação reflete unicamente os aumentos sincronizados dos preços das commodities nos mercados mundiais (resultado do excesso de liquidez criado pelo FED por intermédio do QE2) ou se, no caso brasileiro, o excesso de demanda doméstico é mais relevante para explicar o repique inflacionário recente.

Até recentemente, o governo brasileiro, por intermédio do Ministro da Fazenda, afirmava que as pressões inflacionárias recentes eram resultado de “choques de oferta” originados da elevação dos preços das commodities nos mercados internacionais, elevação essa resultante, em larga medida, de movimentos especulativos viabilizados pela política monetária expansionista adotada pelo Federal Reserve. No entanto, uma análise mais cuidadosa dos dados de inflação nos mostra a existência de indiscutíveis pressões do lado da demanda agregada. De fato, os preços dos serviços acumulam alta de cerca de 7% nos últimos 12 meses, e o núcleo do IPCA por médias aparadas e suavização (que desconta os itens que apresentaram elevações mais significativas dentro do índice) apresentou alta de 0,54% em janeiro de 2011, o que significa uma inflação anualizada de 6,14%. Esses números mostram a existência de pressões inflacionárias vindas também, embora não unicamente, do lado da demanda. Nesse contexto, a elevação da taxa básica de juros, a Selic, é a medida mais indicada – embora não necessariamente a única – para o enfrentamento do problema.

Nas reuniões do COPOM em janeiro e março do corrente ano, a selic que se encontrava estabilizada em 10,75% a.a desde o segundo semestre de 2010, sofreu dois aumentos consecutivos de 0,5 p.p passando para 11,75% a.a no início de março. Considerando uma expectativa de inflação de 6% para os próximos 12 meses, isso significa que a taxa real de juros de curto-prazo no Brasil se encontra em 5,42% a.a. Trata-se de um número absolutamente destoante do prevalecente nos demais países do mundo. Com efeito, conforme estudo recente da corretora Cruzeiro do Sul, em janeiro de 2009 o Brasil liderava o ranking de taxas reais de juros de curto-prazo no mundo, com uma taxa real de juros de curto-prazo quase 2,5 vezes mais elevada que o segundo colocado no ranking (Austrália), conforme se visualiza na Tabela abaixo:

Tabela I: Juro Real de Curto-Prazo (países selecionados em Janeiro de 2011)

País…………………Juro Real (critério ex-ante)

Brasil………………. 5,50%
Austrália………….. 1,90%
África do Sul……… 1,80%
Hungria……………. 1,00%
Filipinas……………. 1,00%
Polônia…………….. 0,80%
China……………….. 0,70%
Chile………………… 0,30%
México……………… 0,10%
Turquia…………….. 0,10%
Japão……………….. 0,00%
Colômbia………….. – 0,20%
Alemanha…………. – 0,70%
França……………… – 0,80%
Argentina…………. – 0,90%
Holanda…………… – 0,90%
Itália……………….. – 0,90%
Rússia……………… – 1,00%

Fonte: Cruzeiro do Sul (2011).

Esses fatos nos impõem o seguinte questionamento: qual a razão pela qual a taxa real de juros de curto prazo é tão elevada no Brasil, quando se verifica que, na maioria dos países do mundo, em condições normais de temperatura e pressão, a mesma se situa abaixo de 2% ao ano?

A grande maioria dos críticos do atual modelo macroeconômico brasileiro atribui a persistência dos juros elevados no Brasil a uma política monetária excessivamente conservadora, a qual, em nome da defesa da estabilidade de preços, mantém a taxa de juros num patamar mais elevado do que o requerido, não só para manter a inflação dentro das metas definidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), como também para permitir um crescimento mais forte da economia brasileira. Segundo essa visão, a persistência da inflação, mesmo num cenário de juros elevados, é a evidência clara de que a inflação brasileira não é causada por fatores de demanda, mas pelas condições de oferta, particularmente pela ocorrência de choques adversos sobre a produção agrícola, ou ainda um choque causado por uma desvalorização excessiva do câmbio, num contexto no qual ainda subsiste uma elevada inércia inflacionária devido à desindexação parcial da economia feita após o Plano Real.

Não há dúvida de que existem “sementes de verdade” nessa explicação, mas acreditamos que o problema dos juros no Brasil não se deve apenas à teimosia da autoridade monetária em reduzir os mesmos para obter ganhos de credibilidade. Uma razão fundamental para a persistência de um juro real de curto prazo tão elevado deve-se ao fato de que nosso país é, provavelmente, o único lugar do mundo onde o mercado monetário e o mercado de dívida pública estão umbilicalmente conectados por intermédio de um título conhecido como Letras Financeiras do Tesouro, a “jabuticaba” brasileira, as quais respondem por aproximadamente 40% da dívida mobiliária federal.

A existência desses títulos faz com que a mesma taxa de juros que a autoridade monetária utiliza para colocar a inflação dentro da meta definida pelo Conselho Monetário Nacional seja a mesma taxa de juros que o Tesouro Nacional paga por uma fração considerável da dívida pública.

Dessa forma, a taxa Selic é obrigada a cumprir duas funções dentro do sistema financeiro brasileiro: ela é a taxa de juros que regula os empréstimos no mercado interbancário, ao mesmo tempo em que ela é a taxa pela qual o Tesouro Nacional consegue rolar uma parte significativa da dívida pública. Como a mesma taxa de juros precisa desempenhar duas funções, segue-se que a função de instrumento de política monetária acaba sendo contaminada pela função de rolagem da dívida pública federal, uma vez que o Banco Central não tem como fixar um valor da Selic para as operações no mercado interbancário e outro valor da Selic para as operações de rolagem da dívida pública.

Nesse contexto, a fragilidade das contas públicas brasileiras acaba por fazer com que a taxa de juros requerida pelo mercado para a rolagem da dívida pública seja “excessivamente alta”, o que acaba se transmitindo, por arbitragem, para as operações normais de política monetária. Deve-se ressaltar que a tão propalada melhoria da situação fiscal do estado brasileiro, após a adoção de expressivos superávits primários, é mais mito que fato.

Com efeito, não só o setor público consolidado continua gerando expressivos déficits nominais (na casa de 3% ao ano em 2008 e 2009), como ainda os encargos financeiros da dívida pública (juros e amortizações) superam em cerca de 5 vezes o montante de superávit primário gerado a cada ano. Dessa forma, o estado brasileiro ainda possui uma postura financeira Ponzi, o que eleva o risco de financiamento do Tesouro, aumentando enormemente o poder de mercado dos compradores de títulos, os quais podem exigir taxas de juros mais altas para a colocação dos papéis do governo. Conclui-se, assim, que a redução da taxa real de juros de curto-prazo no Brasil passa, portanto, pela extinção das LFTs e pela realização de um ajuste fiscal que viabilize a zeragem do déficit nominal do setor público.

Devemos observar, por fim, que a operação da política monetária pelo BCB na gestão Tombini apresenta nítidos sinais de melhoria com respeito a gestão Meirelles. Nos últimos meses tem ocorrido uma “revolução silenciosa” na condução da política monetária pelo Banco Central do Brasil. Após vários anos de pura ortodoxia sob a gestão Henrique Meirelles, observam-se alguns sinais de mudança na gestão do sistema de metas de inflação no Brasil.

A primeira mudança, realizada ainda no final de 2010, foi o uso de instrumentos não convencionais, como o aumento do depósito compulsório e do requerimento de capital dos bancos para empréstimos de longo-prazo como forma de se produzir uma redução do ritmo de expansão do crédito – e assim reduzir o crescimento da demanda agregada – ao invés de um aumento da taxa básica de juros, a Selic. Essa mudança representa um afastamento importante com respeito ao “consenso macroeconômico” que estabelece que a política monetária deve ser gerida unicamente com base no ajuste da taxa de juros de curto-prazo com vistas a obtenção de uma meta inflacionária de médio prazo.

Devido a institucionalidade peculiar prevalecente na gestão da dívida pública brasileira, com a prevalência de uma parcela significativa de títulos públicos indexados pela taxa básica de juros (as LFT´s), elevações da selic têm impacto imediato e significativo sobre o custo de rolagem da dívida pública. Supondo um estoque de R$ 1800 bilhões para a DMF e uma participação de 35% de títulos indexados a Selic, temos um total de R$ 630 bilhões em dívida pública atrelada a evolução da Selic. Nesse contexto, cada 100 pontos de elevação da selic significa um acréscimo de R$ 6,3 bilhões na conta de encargos financeiros sobre a dívida pública, valor esse que será apropriado pelos bancos e pelos rentistas no Brasil e no exterior, sem falar dos economistas que trabalham no setor financeiro, cujas remunerações estão atreladas, direta ou indiretamente, ao resultado da Tesouraria dos bancos !!! Um aumento de 300 pontos base, como parece ser consensual no atual ciclo de aperto monetário, representa um acréscimo de R$ 19 bilhões na conta de juros. Face a esses números não é de estranhar que no Brasil exista uma forte coalizão de interesses favorável ao aumento de juros.

A utilização de instrumentos não convencionais de política monetária representa não só uma quebra do consenso macroeconômico como também, e principalmente, uma sinalização de que o BCB pode estar se tornando autônomo com respeito aos interesses do sistema financeiro.

Supondo que os instrumentos não convencionais sejam igualmente eficazes para o controle da inflação do que o ajuste da taxa básica de juros, o seu uso não tem como contra-partida um aumento direto dos encargos financeiros da dívida pública e, portanto, não geram redistribuição de renda da sociedade como um todo para o sistema financeiro e os rentistas.

A segunda mudança refere-se a importância dada as expectativas de inflação na gestão da política monetária. Segundo o “consenso macroeconômico” a ancoragem das expectativas de inflação é peça fundamental na gestão do regime de metas de inflação. Em tese, se os agentes tiverem plena confiança no compromisso do BC em manter a inflação na meta – e na ausência de rigidezes de qualquer natureza – o custo da desinflação será zero em termos de perda de produto e emprego. Dessa forma, o BC deve estar atento as expectativas de inflação, procurando tomar medidas de política monetária que preservem a sua credibilidade junto ao público, evitando assim um aumento das expectativas de inflação, o qual tornaria mais custosa a obtenção da meta inflacionária.

O problema com esse raciocínio é que no Brasil o sistema de coleta das expectativas de inflação é bastante peculiar. Com efeito, o Brasil é possivelmente um dos poucos países adotantes do Regime de Metas de inflação que fazem coleta semanal de expectativas de inflação. Esse sistema de coleta semanal de expectativas junto ao “mercado” dá margem para a criação de um clima de “terrorismo inflacionário” no qual a deterioração dos índices de inflação de curto-prazo (causados por fatores como aumento dos preços das commodities internacionais, sazonalidade dos índices e etc) gera uma piora constante das expectativas de inflação por um certo período de tempo (3 a 4 meses), criando uma atmosfera de “descontrole inflacionário” a qual leva a uma pressão política por um imediato (e rápido) ajuste da taxa de juros.

O BCB na gestão Tombini tem se mostrado menos propenso a levar a sério as expectativas inflacionárias, realizando pesquisas adicionais sobre temas variados. Além disso, a forte deterioração das expectativas inflacionárias para 2011 aparentemente não gerou nenhuma preocupação adicional com o curso da política monetária pelo BCB. A elevação da taxa selic em apenas 0,5 p.p na ultima reunião do COPOM quando boa parte do “mercado” gritava por um aumento de 0,75 p.p pode ser o primeiro sinal de que o mercado financeiro perdeu a sua capacidade de influenciar o BCB por intermédio do mecanismo das expectativas de inflação. Terá sido dado um passo importante para a efetiva autonomia do Banco Central … autonomia com relação aos interesses do sistema financeiro.

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Referências
CRUZEIRO DO SUL CORRETORA. (2011). Real Interest Rates: Global Ranking. Janeiro.

(*) Professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Pesquisador Nível I do CNPq e Diretor da Associação Keynesiana Brasileira. E-mail: [email protected]. Página pessoal: www.joseluisoreiro.ecn.br

Fonte: Carta Maior