Na sexta-feira de carnaval, dia 4 de março de 2011, a taxa de câmbio R$/US$ rompeu a barreira dos 1,65, fechando o dia no patamar de 1,645, a menor cotação desde agosto de 2008, quando o processo de apreciação da moeda brasileira no período pré-crise financeira global atingiu seu ápice (a taxa de câmbio R$/US$ chegou a ser cotada a 1,559 no dia 1/08/2008). Coincidentemente, um evento realizado durante o carnaval também colocou em evidência a questão cambial. Num seminário organizado pelo FMI na segunda e terça-feira (dias 7 e 8 de março), o economista-chefe desta instituição, Olivier Blanchard, defendeu que a política monetária deve ter outros objetivos além do controle da inflação – como a estabilidade financeira e metas relacionadas a taxas de câmbio, especialmente no caso dos países emergentes –, bem como outros instrumentos, ao lado da taxa de juros básica (como a regulação financeira prudencial [1]). Nesse mesmo seminário, Stiglitz defendeu, mais uma vez, a utilização de controles de capitais por esses países, os quais, na sua visão, podem contribuir para o crescimento e a estabilidade econômica. Utilização que o próprio FMI passou a admitir no contexto pós-crise desde que em circunstâncias específicas e como um dos instrumentos de política econômica (em inglês, do “policy toolkit”) [2].

Uma dessas circunstâncias é um ambiente de abundância de fluxos de capitais temporários, que resultam pressões em prol da sobreapreciação cambial (com efeitos potencialmente perversos sobre a competitividade externa), que, por sua vez, não poderiam ser combatidas no curto prazo pelo manejo dos instrumentos convencionais de política monetária, cambial e fiscal. Isto porque, a economia em questão se depararia com todas ou uma das seguintes situações: já teria acumulado um estoque razoável de reservas internacionais e/ou levado ao limite a política de esterilização (em termos seja do tamanho do estoque da dívida pública, seja do custo fiscal associado ao diferencial de juros); se encontraria numa situação de sobreaquecimento e/ou aceleração da inflação que impediria a redução da taxa de juros básica e não poderia ser combatida no curto prazo exclusivamente pela adoção de uma política fiscal contracionista (por questões de lag temporal, por exemplo).

O estudo do FMI não “diz” nenhuma novidade; ele somente reconhece uma das funções dos controles de capitais destacadas há muitos anos pelos economistas heterodoxos, qual seja: contribuir para atenuar os dilemas de política econômica num contexto de ampla abertura financeira. O mesmo se pode dizer sobre a defesa da regulação financeira prudencial como um instrumento coadjuvante de política econômica. Epstein, Grabel e Jomo (2004) [3], na sua minuciosa pesquisa sobre os controles de capitais em alguns países emergentes nos anos 1990, concluíram que as experiências bem-sucedidas combinaram, de forma geral, controles de capitais estrito senso (como imposição de taxas, requerimentos mínimos de reserva e quarentena sobre o ingresso de recursos) com instrumentos de regulação financeira prudencial que funcionam, na prática, como controles (sobretudo, regras sobre as operações com moeda estrangeira dos bancos).

Os dois mecanismos integrariam, segundo esses autores, as “Técnicas de gestão dos fluxos de capitais” que, ao afetarem o grau de abertura financeira da economia, ampliariam o raio de manobra e a eficácia das políticas cambial e monetária, em momentos tanto de excesso, como de escassez de divisas. No âmbito dos regimes de flutuação suja (que passaram a predominar nos países emergentes após as crises dos anos 1990), essas técnicas constituem um instrumento coadjuvante da política cambial, funcionando como “filtros” que atenuam os efeitos instabilizadores dos fluxos de capitais de curto prazo, além de reduzir o patamar mínimo de reservas necessárias para conter movimentos especulativos e de aliviar as pressões sobre a taxa de juros nos momentos de saída de capitais.

Os países emergentes que se recuperaram rapidamente após o efeito-contágio da crise financeira e econômica global passaram a enfrentar ao longo de 2010 alguns dos dilemas de política mencionados pelo estudo do FMI em decorrência da combinação do ambiente internacional de excesso de liquidez (associado às taxas de juros historicamente baixas nos países avançados e à política de afrouxamento quantitativo do Federal Reserve) com uma situação doméstica de elevadas taxas de crescimento, aceleração da inflação (associada, em parte, à alta dos preços das commodities, fomentada por aquele ambiente) e, em alguns casos, excessiva apreciação cambial e/ou emergência de bolhas especulativas nos mercados financeiros. Nesse cenário, a adoção de uma política monetária restritiva contribuiria para conter o crescimento e as pressões inflacionárias, mas estimularia ainda mais o ingresso de capitais, o qual, por sua vez, fomentaria o desalinhamento cambial e o boom de preço dos ativos.

Para atingir os múltiplos objetivos de política, as autoridades econômicas recorreram aos “novos” instrumentos recomendados pelo FMI: políticas monetárias restritivas (e, em alguns casos, fiscais) foram adotadas para desaquecer a economia e conter as pressões inflacionárias, enquanto técnicas de gestão dos fluxos de capitais (sejam controles de capitais, sejam mecanismos de regulação prudencial) foram acionadas para deter a trajetória de apreciação cambial e/ou desinflar as bolhas especulativas.

No caso do Brasil, duas especificidades reforçam os dilemas de política econômica associados aos efeitos indesejáveis da política monetária restritiva sobre a trajetória da taxa de câmbio. Por um lado, os patamares dos preços-chave (taxa de câmbio excessivamente baixa e taxa básica de juros excessivamente alta – o maior patamar nominal e real do mundo mesmo antes do início da nova fase de elevação da meta da Selic, em janeiro) estimulam ainda mais o ingresso de capitais e as apostas de apreciação cambial e reduzem o raio de manobra da política cambial ao ampliarem o custo da acumulação de reservas cambiais (além do diferencial entre os juros internos e externos, a apreciação do real traz prejuízo às contas públicas, pois o governo é credor em dólares). Por outro lado, o elevado grau de abertura financeira que, ao permitir o livre acesso dos investidores estrangeiros ao mercado doméstico de derivativos cambiais e criar vasos comunicantes entre esse mercado e aquele off-shore (onde são negociados os Non-Deliverable Forwards – NDFs), reforçou sua liquidez e profundidade, contribuindo de maneira fundamental para sua transformação no lócus por excelência da formação da taxa de câmbio R$/US$.

Para enfrentar esses dilemas, as autoridades econômicas brasileiras também adotaram (ou reforçaram) a partir de outubro algumas técnicas de gestão dos fluxos de capitais (como a elevação do IOF incidente sobre os investimentos de portfólio em renda fixa e a imposição de um depósito compulsório sobre o valor da posição vendida dos bancos em dólar), acionaram instrumentos de regulação financeira prudencial para conter a expansão do crédito (as chamadas “medidas macroprudenciais”) e criaram um novo instrumento de política cambial (os leilões de moeda estrangeira com liquidação a termo no mercado interbancário), ao lado da retomada das operações de swap reverso (suspensas desde junho de 2009).

Adicionalmente, duas medidas com o objetivo de desestimular as operações no mercado de derivativos e, assim, reduzir as apostas de apreciação do real, foram implementadas: o IOF incidente sobre os depósitos de garantia dos investidores na BM&F foi elevado de 0,38% para 6% e foram vetadas as operações de aluguel, troca ou empréstimo de títulos, valores mobiliários e ouro (ativo financeiro) aos investidores não-residentes destinadas à constituição desses depósitos.

Assim, pode-se afirmar que o governo brasileiro foi além da nova cartilha do FMI, ao adotar não somente técnicas de gestão dos fluxos de capitais, mas também instrumentos de regulação das operações com derivativos cambiais, reconhecendo a segunda especificidade mencionada acima. Na realidade, essas operações, que tem um papel central na trajetória da taxa de câmbio do R$/US$, constituem transações virtuais, desvinculadas dos fluxos de capitais e, por isso, fora do alcance dessas técnicas. Contudo, as iniciativas nesse front – que ampliaram o escopo da regulação cambial – foram, até o momento, muito tímidas e, por isso, a taxa de câmbio do R$/US$ rompeu novamente a barreira dos 1,65. Se o contexto internacional não sofrer mudanças nos próximos meses, somente medidas mais ousadas de regulação das transações cambiais virtuais podem deter o processo de apreciação do real e seus efeitos adversos sobre a competitividade da indústria brasileira.

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Professora-Doutora do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

NOTAS

(1) Blanchard já tinha reconhecido o papel desse tipo de regulação em: Blanchard, O.; Dell’ Ariccia, G; Mauro, P. Rethinking macroeconomic policy. IMF Staff Position Note SPN/10/03; 12 feb. 2010.

(2) A esse respeito, ver: OSTRY, J. D. et al. Capital Inflows: the role of controls. IMF Staff Position Note. Washington, DC, IMF, 19 February 2010.

(3) EPSTEIN, G.; GRABEL, I.; JOMO, K. S. Capital management techniques in developing countries: an assessment of experiences from the 1990’s and lessons for the future. Geneva: United Nations Conference on Trade and Development, 2004 (G-24 Discussion Paper, n.27).

Fonte: Carta Maior