Talvez a mesma informação suscite algum tipo de atitude dita de outra forma: ao se aposentar, um cidadão que enfrenta tal situação no cotidiano terá passado o equivalente a dois anos da vida produtiva – justamente o período em que tem mais planos e desfruta de maior disposição física – preso dentro de um carro. E não se trata, certamente, do lugar mais agradável para estar. Eventuais lampejos de prazer proporcionados por uma boa trilha sonora não resistem ao desgaste emocional causado pelas buzinas, o medo de assaltos nos semáforos e a ausência de cordialidade entre os motoristas. Sem falar no risco de ficar ilhado por inundações como as ocorridas em São Paulo e no Rio neste início de ano.

Levando-se em conta as estatísticas, reverter o quadro parece mesmo quase impossível. Com as facilidades para adquirir um carro zero-quilômetro – financiamentos a perder de vista -, houve 5,4 milhões de novos emplacamentos no país em 2010, ante 4,8 milhões no ano anterior. A cidade de São Paulo teve que acomodar quase três veículos para cada bebê que nasceu ao longo do ano. Enquanto 160 mil crianças chegaram ao mundo, entraram em circulação 440 mil veículos. Ou seja: a cidade ganhou 18 bebês e 50 veículos a cada hora. Há no momento 6,9 milhões de veículos circulando pela capital paulista, entre os quais 5,1 milhões de automóveis, 876 mil motos, 705 mil micro-ônibus, caminhonetes ou utilitários, 159 mil caminhões e 42 mil ônibus. Nada menos que nove veículos para cada dez habitantes acima de 18 anos.

Somando todos os prejuízos individuais e corporativos causados pelos congestionamentos, chega-se a um custo gigantesco. Estima-se que só as cidades de São Paulo e Rio percam por ano o equivalente a R$ 45,5 bilhões, considerando-se todos os aspectos envolvidos, do gasto adicional de combustível ao chamado "custo de oportunidade" – tudo aquilo que as pessoas deixam de produzir enquanto o trânsito não anda. O prejuízo anual em São Paulo foi estimado em R$ 33,5 bilhões pelo professor Marcos Cintra, da Fundação Getúlio Vargas, e o do Rio em R$ 12 milhões pelo professor Ronaldo Balassiano, do Programa de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Quem enfrenta os congestionamentos de São Paulo dia após dia talvez até se console um pouco ao saber que há situações ainda mais desoladoras mundo afora. Num estudo divulgado recentemente pela IBM, a capital paulista foi considerada o sexto pior trânsito entre as 20 grandes cidades pesquisadas, distribuídas por todos os continentes. A avaliação levou em conta uma série de fatores, dos emocionais aos econômicos, e chegou à conclusão de que Pequim e Cidade do México merecem compartilhar o título de pior trânsito do mundo. As outras cidades que "perdem" para São Paulo são Johannesburgo, Moscou e Nova Déli.

Os resultados evidenciam que a situação mais delicada está nos países em desenvolvimento, que enfrentam limitações orçamentárias para investimentos em infraestrutura e experimentaram nos últimos anos um rápido incremento no número de veículos em circulação. São Paulo é um exemplo típico: começou a década passada com uma frota de 5,1 milhões de veículos e a encerrou, no mês passado, com 6,9 milhões.

Os motoristas de Pequim são os que se dizem mais prejudicados profissionalmente pelo trânsito – 84% alegam que os atrasos e o estresse que enfrentam no caminho atrapalham o desempenho no trabalho. A capital chinesa dá amostras, no entanto, de que está virando o jogo. Dos motoristas ouvidos na cidade, 48% afirmaram que o trânsito melhorou nos últimos três anos – o índice mais alto nesse quesito entre todas as pesquisadas. A sensação certamente tem relação direta com os altos investimentos em infraestrutura de transportes – só no ano passado foram aplicados o equivalente a R$ 20 bilhões, verba suficiente para duas obras do porte do Rodoanel de São Paulo.

Já São Paulo se destacou na pesquisa pelo alto índice de motoristas que relataram perceber danos à saúde em decorrência dos congestionamentos – 55%, ante a média geral de 30%. Não é por acaso. Das 4 mil mortes registradas anualmente na cidade por problemas cardiovasculares e respiratórios, estima-se que 70% estejam diretamente associadas aos gases emanados pelos veículos.

E o que poderia ser feito a curto prazo? "Não existe uma bala de prata, aquela solução que vai resolver o problema de uma hora para a outra. Mas há uma série de ações que, articuladas, podem amenizar bastante o incômodo com o trânsito", diz o professor Orlando Strambi, do Departamento de Engenharia de Transportes da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Strambi afirma que, numa metrópole em situação-limite como São Paulo, a redução de 20% no número de veículos em circulação já proporciona um alívio surpreendente – é o que se vê na cidade durante este mês, quando não há escolas funcionando e muita gente está de férias no trabalho, e se não há chuvas torrenciais. "Se ao longo de todo o ano a cidade conseguisse tirar de circulação dois em cada dez veículos, o cenário já seria consideravelmente transformado."

A estratégia adotada por grandes cidades ao redor do mundo indica que nada é mesmo tão eficaz para reduzir rapidamente os transtornos do trânsito quanto induzir um número expressivo de pessoas a deixar o carro em casa para usar transporte coletivo. Solução óbvia, mas complexa, pois implica mudança de hábitos – e poucos concordam em abrir mão de rotinas se não tiver boas razões para isso.

Um dos caminhos já testados e aprovados para desestimular o uso de automóveis é o pedágio urbano, a exemplo do existente em Londres. A discussão na capital inglesa sobre a adoção do sistema, com seu previsível impacto negativo na popularidade dos governantes, se estendeu por nada menos que três décadas, até a ideia ser finalmente adotada em 2003. Para circular entre as 7 e as 18 horas na área central da cidade e nos bairros próximos, paga-se uma taxa equivalente a R$ 21. Toda a fiscalização é feita por câmeras, que decodificam automaticamente as placas dos veículos e possibilitam a notificação de quem não cumprir a norma. Com o sistema funcionando, os congestionamentos foram imediatamente reduzidos em 30%.

De forma geral, os efeitos do pedágio urbano são semelhantes ao do rodízio adotado há 12 anos em São Paulo, com pelo menos duas vantagens: o sistema capta recursos para aplicação em obras viárias e preserva-se o direito de escolha do cidadão sobre usar ou não o carro. Mas será que os políticos brasileiros teriam coragem para instituir uma medida tão polêmica? "Acho difícil. Percebo no dia a dia do meu trabalho como os nossos governantes frequentemente deixam de seguir orientações técnicas para priorizar critérios políticos", diz a arquiteta Marcela da Silva Costa, especialista em políticas de mobilidade sustentável da Vetec Engenharia, sediada em São Paulo, que atua em diversas etapas de obras de infraestrutura de transportes, incluindo consultoria.
Melhorar o transporte coletivo – a outra providência fundamental para que as pessoas optem por deixar o carro na garagem – exige alternativas que sejam bem mais baratas e ao mesmo tempo quase tão rápidas, confortáveis e seguras quanto ir com veículo próprio. Uma das opções que vêm sendo consideradas mais pertinentes para grandes cidades, pela boa combinação custo-benefício, é o chamado BRT, sigla de Bus Rapid Transit, sistema em que ônibus transportam um grande volume de passageiros, graças à utilização de vias exclusivas e de paradas preparadas para o embarque e desembarque rápidos.

Curitiba é reconhecida como pioneira mundial na aplicação desse conceito, mas o BRT tido como mais exemplar em termos de resultados é o de Bogotá, a capital da Colômbia, que surgiu em 2000 como a verdadeira salvação diante de um sistema caótico de transporte público, composto basicamente por micro-ônibus velhos. O sistema já está transportando 1,4 milhão de passageiros por dia e ainda assim é avaliado por 75% da população como "bom" ou "muito bom". "O grande atrativo do BRT é que atua na metade da faixa de capacidade do metrô com custo de construção de um décimo ou nem isso. Além do mais, tem um prazo de implantação muito mais rápido", compara Strambi.

A ampliação do metrô é, de fato, um processo complexo, caro e sujeito a obstáculos dos mais diferentes tipos. Tanto é verdade que o governo do Estado de São Paulo acaba de refazer os cálculos e anunciar que apenas uma das quatro novas linhas de metrô previstas para 2014, quando a Copa do Mundo será realizada no Brasil, estará efetivamente pronta dentro do prazo. Há o receio entre os especialistas em mobilidade urbana que as obras relacionadas à Copa e à Olimpíada de 2016 tenham caráter imediatista, sem estar integradas a um planejamento de longo prazo. "O projeto da Olimpíada inclui a construção de quatro corredores de BRT no Rio, mas estou muito preocupado em relação a isso", revela o professor Balassiano, da UFRJ.

Tão importante quanto as obras principais é criar alternativas eficazes de transporte entre os bairros e as estações de BRT. "A África do Sul ignorou essa necessidade e as linhas de BRT construídas para a Copa do ano passado se transformaram em verdadeiros trens fantasmas, pois as pessoas continuaram optando por vans que as levavam direto de casa para o mais próximo possível do destino", comenta.

Outra alternativa sempre lembrada para melhorar o trânsito – mas ainda pouco praticada no Brasil – é incentivar o uso de bicicletas. "Estamos nos esforçando para transformá-la numa opção viável de deslocamento", diz Irineu Gnecco Filho, diretor de planejamento da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) de São Paulo. Por enquanto, há apenas 38 km de ciclovias na cidade – quase nada se comparados aos 17 mil km de avenidas -, mas o plano é chegar a 100 km em 2012. Um dos passos mais importantes é assegurar a integração da bicicleta com outras modalidades de transporte. São Paulo evoluiu nos últimos anos nesse item, com a criação de 6.500 vagas em 40 bicicletários nas estações de metrô, CPTM e EMTU.

De modo geral, contudo, continuam faltando ciclovias, estacionamentos seguros e condições adequadas de segurança para circulação dos ciclistas nas grandes cidades brasileiras. Mas não é só isso: há ainda a questão do prestígio social. "Quem opta pela bicicleta no Brasil ainda é visto como 'alternativo' demais ou como alguém que não é bem-sucedido o suficiente para ter um carro. A propaganda da indústria automobilística é pesada e vende a ideia de prestígio, poder e velocidade", diz André Caon Lima, coordenador do Fórum pela Mobilidade Urbana Sustentável (FoMUS), ONG de Curitiba fundada em 2008 para combater o que Lima chama de "carrismo".

Quando se fala em transporte não motorizado, quase ninguém se lembra de citar a mais elementar, barata e saudável das opções – caminhar – e de defender a necessidade de boas calçadas e trajetos arborizados. Mas um terço dos cerca de 50 milhões de deslocamentos que ocorrem em São Paulo a cada dia já são feitos exclusivamente a pé, da origem ao destino, sem falar naqueles que associam o transporte coletivo a uma caminhada em algum trecho.

A prática tende a ganhar espaço à medida que se consolide o conceito de que as pessoas devem concentrar o epicentro de sua vida – residência, trabalho e estudo – em uma mesma região. Trata-se de uma mudança radical em relação aos preceitos da "Carta de Atenas", escrita por Le Corbusier em 1933, que durante décadas influenciou o desenvolvimento das cidades. O célebre arquiteto francês imaginou que uma grande cidade deveria ser compartimentada em áreas de especialização – moradia, trabalho e lazer – e o automóvel seria a grande solução para interligá-las. Quando Le Corbusier morreu, em 1965, aos 77 anos, já estava começando a desconfiar que se equivocara. (Se estivesse em São Paulo às 19 h de 10 de junho de 2009, teria certeza. Foi quando ocorreu o congestionamento recorde de 293 km. Era quarta-feira, véspera de um feriadão prolongado de Corpus Christi. Choveu forte, caminhões quebraram, houve colisões e acidentes com motoqueiros. No ápice de toda a confusão, 35% das vias de São Paulo apresentavam trânsito lento.)

Muitas empresas já sentem dificuldades para lidar com o fato de que quase todos os funcionários vão de carro para o trabalho. Na tentativa de amenizar a falta de estacionamento para os colaboradoras, a Promon, empresa de tecnologia instalada no bairro paulistano do Itaim – região em que há falta crônica de vagas -, desenvolveu um sistema para incentivar caronas entre colegas. Tanto para oferecer quanto para pedir carona, basta informar o itinerário e o horário pela intranet. Outra contribuição das empresas seria incentivar escritórios domésticos, prática que chegou a causar uma onda de entusiasmo no início da década passada, mas está custando a deslanchar no Brasil. Um dos motivos é o rigor da lei trabalhista – com a dificuldade para controlar o número de horas trabalhadas a distância pelos funcionários, os empregadores estariam sujeitos ao pagamento de muitas horas extras em eventuais processos.

Outro ponto vulnerável é a logística – um serviço que está ainda a anos-luz do que é praticado em muitas cidades da Europa, onde há uma grande preocupação em evitar deslocamentos desnecessários e interferências no trânsito. "Lá, tudo é acompanhado por computadores de bordo e os sistemas entre as empresas estão interligados. Aqui, é tudo no improviso e o que mais se vê é caminhão perdido, atravancando o trânsito", observa o professor Antônio Novaes, especialista em logística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Há quem aposte que a tecnologia virá a ser a tão sonhada "bala de prata" na guerra contra os congestionamentos. Em Cingapura, um sofisticado sistema de computadores acompanha em tempo real a evolução do tráfego e antevê prováveis gargalos com algumas horas de antecedência, indicando ajustes que contribuirão para evitá-los – dois segundos a mais de sinal verde em um semáforo, por exemplo. O Brasil ainda está longe desse estágio, mas o crescimento de atividades como comércio eletrônico, internet banking e ensino a distância já traz resultados expressivos no sentido de evitar deslocamentos. A área médica também tem evoluído rapidamente. Na rede pública do Distrito Federal, o número de acessos diários ao sistema de entrega de exames pela internet já chega a 12 mil.

Toda a discussão atual sobre mobilidade é, contudo, apenas o plano mais visível de uma questão bem mais profunda e perturbadora: qual é, afinal de contas, o limite para o crescimento das cidades? No Brasil, projeta-se a gradual conurbação em torno de São Paulo e do Rio, até que tudo se transforme em uma megalópole com mais de 60 milhões de habitantes. Buscar alternativas para evitar congestionamentos não será como enxugar gelo diante de tais perspectivas?

A resposta para essas perguntas pode estar do outro lado do mundo: espera-se da China – que em 2025 terá nada menos que 220 cidades com mais de 1 milhão de habitantes – a criação de soluções inovadoras. Uma delas estará em funcionamento em Pequim ainda neste ano. Trata-se do 3D Express Coach, ônibus aéreo vazado, com capacidade para 1.400 passageiros, que trafega de forma independente sobre o trânsito convencional e cria a revolucionária condição de usar duplamente uma mesma rodovia.

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Fonte: Valor Econômico