Os milhares de jornalistas norte-americanos que normalmente apuram as atividades do Departamento de Estado teriam necessitado de cerca de dois anos para destrinchar esse volume de informações pelos métodos tradicionais; aparentemente, o vínculo entre redes digitais governamentais distintas (uma resposta bem-intencionada à compartimentalização de informações vigente antes do 11 de setembro) permitiu que um soldado insatisfeito o fizesse em poucos instantes. Como o próprio WikiLeaks se vangloria, esta "é a maior quantidade de documentos confidenciais até hoje divulgada para domínio público".

Trata-se de uma escala padronizada sem precedentes. Assim como também o é o objetivo – ou, mais precisamente, a sua ausência. No website da revista New Yorker, Raffi Khatchadourian especula que o objetivo do fundador do WikiLeaks, Julian Assange, "não é revelar um único caso de abuso… mas abrir as estruturas internas de um sistema fechado e complexo e chamar o mundo a ajudar a julgar sua moralidade" ["WikiLeaks Evolves," www.newyorker.com, 1º de dezembro, 2010]. Essa pode até ser a visão de Assange, mas ele próprio não é capaz de a articular. O website do WikiLeaks argumenta que pretende expor as "contradições entre a persona pública dos Estados Unidos e aquilo que é dito a portas fechadas" (como se a acusação de hipocrisia fosse um motivo adequado para expor segredos oficiais) e informa que "todas as crianças norte-americanas aprendem na escola que George Washington – o primeiro presidente do país – não mentia".

Uma organização convencional

Entre os telegramas divulgados até agora, há revelações que suscitaram manchetes em todo o mundo, mas também há despachos sobre os resultados eleitorais na Baviera e sobre a lei marítima argentina. Se o objetivo é desfechar um golpe contra as pretensões imperiais americanas – como sugeriu Assange em alguns de seus depoimentos – não compreendo o que estes telegramas, especificamente, têm a ver com isso. Em declaração ao semanário Time, Assange defende que quer "tornar o mundo mais civil, fazendo com que organizações sigilosas, como o Departamento de Estado ou o Departamento da Defesa, sejam responsáveis por seus atos; também disse à revista Time que, como alternativa, quer forçá-los a "se trancarem internamente e se balcanizarem", protegendo-se, tornando-se mais opacos e, portanto, mais "fechados, conspiratórios e ineficientes". Para dizer o mínimo, esta é uma programação contraditória; não tenho certeza de saber como deve ser compreendida. Em termos práticos, parece resumir-se a uma política de revelar em nome da revelação. Isso é o que a tecnologia permite e Assange limitou-se a acompanhar sua vanguarda. Não vejo qualquer moralidade, ou imoralidade, aqui articulada coerentemente; o que vejo é um vazio amoral e tecnocrático.

Como escreveu Alan Cowell no New York Times, as carreiras de algumas autoridades estrangeiras – e não, necessariamente, de primeiro escalão – já foram destruídas ou ameaçadas por estas revelações ["Leaked Cables Stir Resentment and Shrugs", The New York Times, 3 de dezembro, 2010]. Em pelo menos um caso, o nome da pessoa foi abreviado, mas sua identidade era facilmente reconhecida no contexto. É justo perguntar: ocorrerão mortes quando da publicação destes e de outros depoimentos? Não sabemos e talvez nem tenhamos conhecimento, caso aconteçam. Mas o estrago, em várias proporções, certamente ocorrerá. (Por seu lado, Assange parece incrivelmente incapaz de discutir esses perigos bastante concretos; em sua entrevista à revista Time ele alega que "esse tipo de bobagem de vidas postas em perigo" é simplesmente uma desculpa.) Poderia o WikiLeaks, pelo menos, dizer-nos por que isso era necessário?

Antigamente, os jornalistas teriam feito o que agora tentam fazer os parceiros do WikiLeaks na mídia impressa, como The Guardian e Der Spiegel: avaliar cuidadosamente quais os documentos a publicar e se devem ou não ser abreviados os nomes que neles constam, com base num interesse público mais amplo e o risco de causar danos a inocentes mencionados. Não dá para evitar a sensação de que todo esse procedimento, de forma tragicômica, se torna irrelevante diante do surgimento da montanha de matéria-prima que logo se tornará acessível. Khatchadourian argumenta que o WikiLeaks está evoluindo no sentido de se tornar algo como uma organização jornalística convencional, a qual fará juízos de valor sobre o que vem fazendo, e não se limitará a simplesmente despejar documentos na internet. Mas a própria proporção daquilo que o grupo vem fazendo sugere que essa seria uma opção pouco inteligente. Assange diz que a organização vem divulgando os telegramas a uma média de oitenta por dia. (Por meus modestos cálculos, isso significa que teremos 3.000 revelações nos esperando quando este artigo for para a impressão.)

Sugestões de controle

A comparação que algumas pessoas vêm fazendo entre a revelação de documentos pelo WikiLeaks e o caso dos Papéis do Pentágono, na década de 70, é esclarecedora justamente por mostrar como é pouco o que as duas ações têm em comum. Como destacou Max Frankel, o ex-editor do New York Times encarregado de supervisionar a divulgação dos documentos, o responsável pelo vazamento, no caso Daniel Ellsberg, não quebrava sigilos simplesmente por quebrar sigilos, como faz hoje o WikiLeaks; ele procurava derrotar uma política específica do governo. Além do mais, estava plenamente consciente dos riscos envolvidos na divulgação e não distribuiu documentos que traíssem os esforços diplomáticos para negociar um fim da guerra. E levou anos até encontrar um veículo de credibilidade para fazê-lo, o que agora é possível apenas clicando uma tecla ["WikiLeaks: Secrets Shared With Millions Are Not Secret", The Guardian, 1º de dezembro, 2010].

Tenho pleno conhecimento de que Daniel Ellsberg deu seu apoio a Julian Assange. É um direito que ele tem. Mas penso que ele pode estar esquecendo alguns pontos cruciais.

Um dos mais óbvios é que o WikiLeaks está divulgando esses documentos pela internet, o meio de comunicação mais permissivo que já foi inventado. Devido a isso, passamos agora pela experiência de um novo salto, do vagaroso analógico para o explosivo digital. Assim como o conceito de "privacidade" vai desaparecendo na obscuridade quando adolescentes de 16 anos podem expor seus pensamentos mais íntimos a uma audiência de bilhões, também a distribuição de segredos oficiais pela internet muda as regras do jogo. Uma vez que todos os documentos estejam online, eles não serão apenas submetidos às avaliações frequentemente desastradas de jornalistas e historiadores, mas também aos programas de informações e software de análises-padrão de governos estrangeiros e empresas privadas (cuja capacidade, como no caso de como a China trata do Google, os próprios telegramas divulgados deixam bem clara) – muito mais eficientes. As sugestões de controle por uma política governamental (para não falar nas vidas individuais) são monumentais. Gostaria de poder prever quais estas seriam, mas não o posso fazer. Não tenho certeza de que o possa fazer.

EUA permitem revelação de documentos

A internet trouxe incontáveis benefícios para a humanidade, mas, como vemos agora, também cria um potencial incalculável para a dissimulação: amplia as ameaças de trotes maldosos nas escolas, fortalece grupos terroristas e fanáticos e abre novos e enormes espaços para criminosos tecnologicamente habilitados. Agora, que as informações podem ser compartilhadas, vinculadas entre si e exploradas com uma facilidade quase instantânea, os riscos envolvidos pela publicação de informação encobrem a possível identificação; simplesmente não existe uma forma pela qual um editor, por mais bem-intencionado que seja, possa fazer um juízo sobre as potenciais repercussões decorrentes da divulgação de enormes quantidades de informação confidencial deste tipo. Mas é aí que nos encontramos e eu me pergunto se a defesa de restrições terá efeito algum. A tecnologia superou a ética e seria justo perguntar se a ética jamais a acompanhará.

Aqueles que defendem a liberdade total de informação poderão alegar que estou deixando de lado o fato de que o cabo-de-guerra entre jornalistas e governos continua sendo bastante favorável a um dos lados. Poderiam argumentar que as burocracias governamentais, com seus enormes recursos e culturas fechadas, ainda detêm muito mais poder de controlar informação do que qualquer Julian Assange. Os que fizeram os vazamentos na guerrilha da internet apenas tentam contrabalançar o jogo. Simpatizo com esse argumento. A revelação do WikiLeaks de que o Departamento de Estado incentivou seus funcionários a coletarem informações biométricas sobre diplomatas estrangeiros servindo às Nações Unidas, embora dê calafrios, confirma o que já sabíamos: o atual modelo de Estado de segurança nacional tem à sua disposição tecnologias e recursos de informação que lhe permitem mapear nossas vidas com uma precisão e poder tais que será extremamente difícil restringi-los pelo uso da lei. (Na realidade, posso ser particularmente reticente em relação a esse fato, pois sou um dos poucos cidadãos norte-americanos que teve seus dados biométricos registrados pelo governo do Estados Unidos; esse era um pré-requisito para receber uma credencial de jornalista durante minha última visita ao Iraque. Tenho o direito a ser cético, acredito, a respeito do Departamento de Estado ter apagado essa informação quando expirou minha credencial.)

Portanto, sim, os jornalistas com certeza deveriam lutar para evitar os abusos da cultura do sigilo. É claro que, até certo ponto, os Estados Unidos ainda oferecem bastante espaço justamente para isso, ao permitirem a concorrência política e a prestação de contas pública – inclusive, a revelação de documentos pela Lei da Liberdade de Informação (Freedom of Information Act). Mas os jornalistas (ou o que quer que decidamos chamá-los) que exercem essa justa vigilância somente o podem fazer exercendo clareza em sues próprios direitos – sobre seus motivos, métodos e intenções. (Uma das tristes ironias deste último capítulo da novela do WikiLeaks é a revelação de que Assange optou por punir o New York Times, negando-lhe acesso direito aos telegramas, porque o jornal publicara anteriormente uma matéria examinando seu estilo de administração e controvérsias pessoais que o envolviam; presume-se que Assange denunciaria isso como censura se um de seus alvos incorresse em tal comportamento. The Guardian acabou trocando cópias de seus arquivos com o Times, vazando, dessa forma, o próprio vazamento.)

A questão é a tecnologia

Quais seriam exatamente os critérios pelos quais o WikiLeaks decide divulgar os telegramas que opta por publicar? Como o WikiLeaks seleciona os telegramas que opta por publicar antes e como os edita? Segundo um processo de avaliação prévia descrito pelo Guardian e pelo New York Times, o WikiLeaks apaga os nomes de algumas pessoas mencionadas nos telegramas – e outros, não. Por que, exatamente? Se seu objetivo é simplesmente "abrir as estruturas internas de um sistema fechado e complexo", não deveriam publicar tudo? E sabemos agora que Assange enviou um enorme arquivo de outros documentos confidenciais para vários de seus apoiadores pelo mundo afora, como "segurança", para serem publicados caso governos hostis consigam silenciá-lo. (Ele encontra-se detido, em Londres, respondendo a acusações de estupro e enfrenta uma possível extradição para a Suécia, onde seria julgado.) Consta que os alvos desse mega-vazamento incluem o Bank of America e a Bitish Petroleum (BP). Irão as revelações desses arquivos incluir informações comerciais sobre os clientes dessas empresas? Ou, talvez, os números de suas contas e os cartões de crédito? Isso seria justificável se o objetivo fosse lançar luz sobre as estruturas desses sistemas fechados, mas também poderia causar enormes prejuízos.

A grande questão é se a tecnologia, com todo seu poder intrínseco e instantâneo, permitirá a necessária introspeção para um empreendimento como aquele com que nos defrontamos. No entanto, até agora não vi resposta alguma convincente. E essa é uma questão muito maior do que o destino do WikiLeaks ou de Julian Assange.

_________

Fonte: Observatório da Imprensa

Reproduzido do New York Review of Books, 13 de janeiro de 2011; tradução: Jô Amado