Então imagine uma cerimônia de vodú gigante, onde milhões de negros, todo um país, lamentam a perda de seus entes queridos. Se for difícil imaginar tal cerimônia, pense no que lhe venha à cabeça ao ouvir falar em vodú. Agora, num último delirio imagine oito milhoes de haitianos com agulhas nas mãos espetando bonecos. Pense em quem representariam os bonecos que eles amaldiçoam. Sentiu alguma espetada?

Eu senti. Eu sinto muito. Sinto culpa e quase um arrependimento por ter votado em Lula, por ter apoiado Dilma. Eu que sempre acreditei e ainda acredito na sensibilidade do nosso ex -presidente metalúrgico. Aí me lembro, meio desconfiado, do brilhante chanceler que foi Celso Amorim e fico buscando respostas, me indagando em silêncio. Até que me dá vontade de gritar.

Acho que hoje deve ser um dia de profundo silêncio no Haiti, um silêncio de dor, de desconsolo e, espero, de uma ponta de esperança. A solidariedade é mãe da esperança. Poderia, com certeza, dizer que o mundo deu uma lição de solidariedade no Haiti, mas eu ousaria dizer que foi o Haiti quem nos deu uma lição, pois com sua tragédia nos fez abrir os olhos e o coração. Olhar para eles foi olhar para dentro de nós mesmos e descobrir que a pior das tragédias é nossa própria miséria espiritual. Os haitianos ensinaram sobretudo a si mesmos o que é solidariedade. Não foi preciso aulas ou campanhas diante do desespero, a solidariedade se deu espontaneamente. Depois que a terra tremeu, quem salvava os haitianos dos escombros eram seus próprios compatriotas. A ajuda internacional não era suficiente e muitos órgãos internacionais se preocuparam inicialmente com as vítimas estrangeiras.

Ver seu país sacudido, revirado, seus entes queridos mortos ou feridos, gente vagando pelas ruas sem saber onde ir, o que fazer, o que comer. Essa gente ainda precisa aprender o que é solidariedade? O Haiti precisa de esperança e para isso a solidariedade tem que ser mãe e não madrasta. Enquanto as tropas militares e as multinacionais estiverem atuando com toda força e explorando o país com tantos interesses alheios, vai ser difícil construir uma nação. Uma boa mãe tem que ensinar o filho a andar. O Haiti precisa caminhar sozinho e não com muletas eternas. Só quando a esperança conhecer a soberania poderiam nascer netos da solidariedade, que chamaríamos liberdade e auto-determinaçao.

Mas a solidariedade parece que está envelhecendo no Haiti e tenho medo que fique para titia. O que estão fazendo com nossa solidariedade? Será que não está sendo “lucrativo” para algumas Ongs a tragédia haitiana? Juro que não sei, estou apenas perguntando. E a missão da ONU (Minustah) como pode ajudar esse país? A Minustah é uma “missão de paz” que vai completar sete anos em 2011. Até entendo a necessidade de intervenção internacional em momentos de crise, mas passaram-se cinco anos, de 2004 a 2009, e as tropas não conseguiram resultados realmente significativos para os problemas do país. E segue até hoje sem previsão para acabar. Para piorar, em 2010 veio o terremoto, agora veio a cólera.

Em meio a uma epidemia da doença houveram eleições no país e logo virá a decisão final no segundo turno. As acusações de fraude são muitas, a dificuldade em cadastrar os votantes é um entre tantos outros problemas. E o pior é que parece o povo haitiano não se sente representado e não acredita realmente nos candidatos que se apresentaram. E que difícil reconstruir um país envolto numa situação tão crítica na ausência de grandes líderes! Tampouco haviam líderes quando veio o terremoto, a atuação do presidente René Preval foi pífia. Mas o povo fez o possível e fez a diferença. Não seria hora de pensar numa reconstrução do Haiti vinda de baixo, de sua gente, suas crenças, tradições e saberes?

Fiquei tao orgulhoso de ser brasileiro ao saber que a o MST e a Via Campesina trouxeram ao Brasil em setembro do ano passado mais de 70 jovens haitianos que fazem um intercâmbio com a duração de ano, sendo capacitados sobre produção agrícola para poderem contribuir com esses conhecimentos quando voltarem a seus países. Não se constrói futuro só com esmolas, nem com doações, temos que pensar além. Claro que há urgências, estamos falando de vidas perdidas diariamente por faltas de condições básicas de saúde e higiene. E nisso se destacam a atuação solidária de organizações como Médicos Sem Fronteiras e dos mais de 800 médicos cubanos enviados pelo governo ao país. Li um artigo dizendo que Cuba humilhava o mundo ao enviar esses médicos, por pura solidariedade. Sinto-me humilhado. Podem dizer que o regime cubano envelheceu mas a solidariedade que ele exporta é jovem e fértil.

Queria ver médicos, engenheiros, bombeiros e outros profissionais levando a bandeira e a solidariedade de meu país aos irmãos haitianos. Mas nas fotos só vejo brasileiros fardados, de capacetes azuis e metralhadoras nas mãos. Espero não ser o único cujo conceito de solidariedade, não combina com essa imagem.

Hoje é um dia especial e hoje eu preferia ser cubano. Queria refletir com serenidade e pensar em meus irmãos haitianos, acreditar que com nossa solidariedade se pode fazer nascer esperança. Mas eu sou brasileiro. E hoje me dói muito. Hoje me dói mais que ontem porque é um dia especial. Talvez amanhã doa um pouco menos. Mas não vai passar. Queria fazer um minuto de silêncio, mas novamente tenho vontade de gritar. Pense no Haiti. Grite pelo Haiti.

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Fonte: CartaCapital