A Google e a Verizon estão a negociar para que a operadora Verizon dê prioridade de passagem aos serviços da Google, por meio de um acordo financeiro entre os dois gigantes. Qual o impacto dessas negociações para a evolução da internet? Como fica a chamada neutralidade da rede quando grupos passam a ter preferência?

A neutralidade da Internet acaba de levar uma rasteira. O The New York Times, de 4 de agosto, informou que a Google e a Verizon estão negociando para que a operadora Verizon dê prioridade de passagem aos serviços da Google, por meio de um acordo financeiro entre os dois gigantes (Edward Wyatt, “Google and Verizon Near on Web Pay Tiers”, The New York Times, 4 de agosto de 2010). Tentemos aqui medir o impacto dessas negociações, os prós e contras, e como elas esclarecem uma evolução em andamento na Internet, o advento dos vídeos da web na programação da televisão.

Em primeiro lugar, precisamos especificar o que é a “neutralidade da rede”. Não se trata de permitir todas as formas de expressão (liberdade de expressão), nem de privilegiar uma perspectiva distanciada, tendo no equilíbrio das ideias sua característica principal (o “princípio da neutralidade”, aplicado na Wikipédia). A neutralidade da rede decorre do princípio fundador da Internet, pelo qual cada pacote de informação, independentemente da sua origem e destinatário, é tratado de maneira igual pelos nós de rede, os roteadores. Desse princípio decorrem, por sua vez, riscos ao equilíbrio global da rede (os engarrafamentos das nossas estradas se transformam em “congestionamento” da Internet) e as garantias para os participantes da rede (leitores, usuários e empresas engajados na esfera económica do universo digital). Até agora, apesar dos anúncios constantes de um grande congestionamento, a rede tem sabido resistir, com altos e baixos, a esses congestionamentos, o seu próprio sucesso incentiva os operadores a multiplicar os roteadores, reforçar as redes e sempre inventar novas regras de transmissão, que aceleram o processo. O protocolo da Internet não é certamente o mais rápido de todos os protocolos da telecomunicação, mas é o mais cooperativo, o mais aberto, o mais robusto e o mais extensível. Isto permitiu o seu sucesso, e ainda é a melhor garantia de sua evolução.

O protocolo da Internet limita a “inteligência” do sistema (o processamento da informação) a ambas as extremidades da comunicação, a do servidor e a do cliente. Assim, se um servidor decide inventar uma nova forma de codificação de informações (por exemplo, quando a empresa Real Networks criou o primeiro protocolo de streaming de áudio, em 1995), basta que ele dissemine as ferramentas de leitura (os tocadores de RealAudio) e ele pode experimentar, desenvolver o seu produto e torcer para adquirir um lugar ao sol na nova economia digital. Ele não precisa pedir permissão a ninguém, as redes devem passar seus dados criptografados e só o sucesso de público é o arbitro entre os vários serviços equivalentes.

Esta lógica de apoio permanente e aberta à inovação técnica e social é que fez da Internet esse novo sistema nervoso global que conhecemos. Ela também permitiu o estabelecimento de protocolos chamados P2P (peer to peer) para promover a divulgação de informações volumosas. Este protocolo é, actualmente, utilizado principalmente para troca de arquivos de música ou vídeo, mas, também é uma parte fundamental da aceleração do crescimento global da Internet. Com as restrições relacionadas às diversas leis de protecção à propriedade intelectual, pede-se aos operadores de rede para monitorar e, eventualmente, bloquear o uso de certos protocolos. Isto permite que se crie o primeiro nicho na arquitectura global da Internet, permitindo uma posição central aos operadores de rede.

Outra mudança radical na neutralidade do transporte de informações foi introduzida pelo “Patriot Act” dos Estados Unidos, o governo federal poderia, através dele, impor “escutas digitais” nos intercâmbios da Internet, para “lutar contra o terrorismo”. Os fabricantes de roteadores, principalmente a Cisco, líder do sector, se apressaram a acrescentar esta funcionalidade a seus produtos. Uma vez aberta, esta possibilidade pode ser explorada por muitas agências, de forma legal ou ilegal… É característico das tecnologias de segurança introduzir a incerteza nos usuários, em benefício daqueles que estão no poder.

Mas a questão em jogo, agora, refere-se à neutralidade dos serviços aos usuários. De que forma os sites e ferramentas utilizados pelos usuários da Internet são tratados pelas redes? Será que alguns estão sendo “travados” para beneficiar os maiores fornecedores? Será que todos os sites estão sendo tratados de forma equitativa?

Esta questão da neutralidade da rede não pode ser resolvida por meio de negociações privadas entre os interessados, como aquelas desenvolvidas pela Google e Verizon, elas pertencem ao âmbito da política pública. Entram em jogo as questões de transparência e da informação dos usuários, modelos de negócio, as regras democráticas e a rejeição da concentração dos fornecedores de informação e comunicação em imensos monopólios.

É por isso que Barack Obama, recém eleito, pediu ao FCC (Federal Communications Commission) que definisse a neutralidade da rede e preparasse uma lei sobre isso, com o intuito de escapar dos lóbistas. Na França, uma “Consulta pública sobre a neutralidade da rede” foi lançada por Nathalie Kosciusko-Morizet, na primavera de 2010. A Comissão Europeia também lançou uma “Consulta Pública sobre a Internet aberta e a neutralidade da rede”, na qual as empresas, as associações e os cidadãos europeus são convidados a participar, antes de 30 de setembro.

Pois, se a questão é apropriadamente política (igualdade de tratamento de informações e fontes de informação), também é económica: em que medida a arquitectura da Internet e a posição de força dos operadores de rede, podem deixar aberta a porta para inovadores e recém chegados?

Os operadores clamam por uma melhor capacidade de negociação comercial. Eles não querem apenas ter clientes individuais que poderiam deixá-los se a concorrência fizer seu trabalho, mas, também querem cobrar uma renda dos fornecedores de conteúdos próprios. A web mudou muito comparada com a internet dos pioneiros, começando como uma rede “horizontal”, em que cada um podia ser, alternativamente, receptor e transmissor (por exemplo, e-mails, newsgroups, também sites FTP ou softwares peer-to-peer), ela passou a ser uma rede assimétrica, em que poucos transmissores se dirigem a grandes massas de usuários. As redes sociais podem ser contadas nos dedos da mão, assim como os sites de difusão de vídeos ou os grandes sites de notícias. Mas seus usuários são numerosos e espalhados por todo o planeta, o que dificulta a comunicação entre as diversas redes de telecomunicações que fornecem acesso à Internet (o “peering”).

Portanto, fora da lógica do “melhor esforço”, que é a da Internet, em que o operador deve fazer o melhor possível para fornecer o serviço, apesar dos pontos de conexão, o tamanho dos arquivos ou a concentração dos acessos,deixando todos lentos durante períodos de superaquecimento, surgem estratégias de “qualidade de serviço” (QoS), segundo a qual o operador privilegia o transporte de informações de um cliente pagante. Essa lógica se compreende para as acções relacionadas à saúde on-line, nuvens de servidores, ou redes privadas. Da mesma forma, as redes de telecomunicações que prestam o serviço para a passagem da televisão (IPTV), poderiam ser diferenciadas. A questão da neutralidade da rede é a de saber se podemos estender esse tratamento diferenciado para alguns provedores de Internet que estão dispostos a pagar o preço.

Interesses cruzados e negociações secretas

A questão para o operador é ainda mais complicada quando se trata de redes móveis, onde a banda de frequências atribuídas é fraca, enquanto a utilização do acesso móvel à Internet está em crescimento, representando cerca 80% da utilização da web em determinados anos. O modelo de pagamento em vigor para a transferência de dados vai continuar e em que patamar? A Comcast, operadora dos Estados Unidos, de telefone e Internet a cabo, quis ajustar as suas taxas de acordo com a utilização e limitar os intercâmbios P2P, em 2008. O FCC interveio para impedir essa violação da neutralidade da rede. A Comcast respondeu no tribunal e, em abril passado, uma decisão lhe deu a razão, na lógica liberal dos Estados Unidos uma agência federal não pode intervir nas decisões técnicas de um agente privado (ver Edward Wyatt, “U.S. Court Curbs FCC Authority on Web Traffic”, The New York Times, 06 de abril de 2010).

Essa decisão do tribunal reduziu significativamente o papel de uma agência reguladora como a FCC. Mas, desde a desregulamentação das telecomunicações, monitoramos constantemente a participação de agências como a ARCEP, na França: é necessário definir regras transparentes que permitam que os clientes possam se orientar entre as diversas ofertas e evitar acordos de interesse entre as redes. Quando percebemos que, apesar de tudo, temos que ter um curso superior em administração de empresas para entender alguma coisa das “ofertas comerciais” na área da Internet móvel, conseguimos imaginar como a situação do internauta se tornará difícil na ausência de um órgão regulador.

Obviamente, não demorou muito. A Google e a Verizon discutem o preço que o gigante da Internet deveria pagar para que os vídeos da sua filial YouTube recebam tratamento preferencial por parte dos assinantes por meio desse operador… especialmente nos celulares, porque a Verizon é uma das principais responsáveis pelo sucesso dos smartphones Android da Google. Interesses cruzados, a capacidade de pagamento da Google, mas também as negociações secretas, tudo isso acontece enquanto os grandes operadores e participantes se reúnem regularmente nas dependências da FCC, para esclarecer as novas regras do jogo depois da decisão da Comcast em abril passado.

Por que o Google, antigamente o porta-voz da neutralidade da rede e da independência dos fornecedores de Internet dos provedores de telecomunicações, mudou tanto de tom? As razões são muitas, mas podemos distinguir pelo menos duas:

– A questão da internet móvel, incluindo a batalha surda entre o Google Android e o iPhone da Apple. A Apple, bloqueando alguns aplicativos do Google, principalmente um sistema para fazer chamadas telefônicas usando a Internet ao invés das redes móveis, e aplicativos de publicidade geolocalizada, mostrou a força do sistema instalado atrás de um poderoso muro de exclusividade. A questão agora mudou para o formato dos vídeos do YouTube. Para serem transmitidos no iPhone, os vídeos do YouTube são codificados em H.264, formato dos quais a Apple detém patentes. Mas o Google agora promove o formato WebM que ele comprou da On2 Technologies e tornou em formato livre. A rapidez da difusão do YouTube na Internet irá reforçar esta tecnologia, que agora é padrão nos navegadores Chrome e Firefox… e em breve na “televisão Google”.

– A nova TV em gestação também é uma aposta central para as enormes empresas publicitárias, que são os gigantes da web. A Google anunciou neste verão a “Google TV” (dois vídeos no YouTube iluminam o escopo deste projecto e sua importância comercial, a apresentação de Rishi Chandra à frente de seus desenvolvedores da web e uma animação detalhando as ideias de utilização). Especificamente, seria ou uma televisão que incorpora ferramentas para aceder a vídeos da web (leia-se YouTube), ou uma “caixa” exterior conectada à televisão. Em ambos os casos, uma maneira de reviver um mercado electrónico já saturado pela passagem para as telas planas.

Hoje, os provedores de Internet, como a Orange, Free ou SFR propõem o acesso à TV na plataforma da web… mas não o acesso pela televisão aos vídeos na web, nem a pesquisas por assunto, ou compartilhamento de vídeos por comunidades de amigos, etc. E, embora a televisão na plataforma da internet utilize um protocolo diferente, respondendo a uma melhor qualidade de serviço, a TV web permanecerá na web, entrando assim no âmbito da neutralidade da rede. Ao mesmo tempo, o fluxo será ainda mais importante. Especialmente a partir do fato que o YouTube está melhorando constantemente a qualidade dos seus vídeos, já propondo os vídeos ditos “4K” (de 4096 a 2304 pixels) para as telas de projeção de vídeo ou de tele presença. Deduz-se, portanto, que o uso difundido exigirá a passagem para a próxima fase das redes “ultra-banda larga” (a fibra). No entanto, mesmo utilizando um formato degradado (o HD atual e de 1080 pixels de largura), o vídeo de qualidade é voraz consumidor da largura de banda. Especialmente se levarmos em conta que a Google não está sozinha neste novo mercado de televisão. A Boxee propõe, também, uma caixa para essa utilização, e como disse a empresa no Twitter, achou “incrível que a Google pudesse criar um mercado desses com a Verizon”. E outros se seguirão.

Vemos aqui que a “neutralidade da rede” é um interesse comercial e político fundamental. Se os governos e os órgãos reguladores não se recompõem e continuam a ceder às mega-empresas de novas tecnologias, a Google, apoiada no recurso da decisão da Comcast, poderia conseguir uma posição largamente dominante no futuro espaço mediático. Portanto, qualquer novo operador de vídeo sob demanda, ou de serviços destinados aos nichos de público e, possivelmente, até mesmo os canais de televisão quando quiserem migrar também para a ubiquidade oferecida pela Internet… todos eles deverão negociar e oferecer suas “comissões de distribuição” para as operadoras. Que estarão, então, numa posição de força para negociar fusões em toda a cadeia de valor, se tornando, ao mesmo tempo, operadoras de telecomunicação, prestadores de mídia e fornecedores de serviços web. Ou seja, um reforço ao que chamo de “vectorialismo”, a fusão das indústrias de aquisição de dados (que sabem o que você consome) e os medias (que sabem influenciá-lo).

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Hervé Le Crosnier é investigador da Universidade de Caen, França.

Artigo publicado no Envolverde/Le Monde Diplomatique Brasil)

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Fonte: Esquerda.net