O Iraque, que há 20 anos atingia índices de desenvolvimento social e econômico compatíveis com os da OECD (Organization for Economic Cooperation and Development), hoje mal sobrevive. Já nem importa quem ganhou ou perdeu a guerra.

Podem-se extrair várias lições do fim do jogo no Iraque que, em alguns sentidos, aplicam-se à guerra no Afeganistão.

O principal objetivo da missão de Biden, de um dia, na data em que os EUA celebravam a própria independência, foi garantir aos nacionalistas iraquianos que o governo de Barack Obama está disposto a respeitar o cronograma de término da ocupação militar. Biden disse «Espero que saibam que até aqui cumprimos nosso compromisso e que dia 31 de agosto alteraremos nossa missão militar, não para nos separarmos mas para nos aproximarmos ainda mais».

Atualmente, a força militar norte-americana no Iraque é de 77.500 soldados, número mais baixo desde a invasão em 2003 e metade dos 165 mil soldados que havia lá no momento do pico da mobilização. Esse número terá caído para 50 mil soldados, dia 1º de setembro – o que sugere que, em média, sairão do Iraque 2.500 soldados por semana, durante julho e agosto. E assim se dará por encerrada a «missão de combate» dos EUA no Iraque.

Ainda não se sabe como, depois desse momento de definição, os EUA planejam conservar o poder de modelar os eventos no Iraque e na região ampliada. Também não se conhece com clareza o destino dos soldados norte-americanos que permanecerão no Iraque depois de 1º de setembro. Tanto quanto se sabe, todos deverão estar longe do Iraque até o final de 2011. Mesmo assim, persistem as especulações de que Washington e Bagdad ainda podem renegociar os termos da retirada dos soldados, de modo a permitir algum acordo militar EUA-Iraque de longo prazo. Diferente do que se vê no Afeganistão, os EUA têm bases militares e «lily pads» [1] bem estabelecidos no Iraque e arredores.

Biden insistiu que os EUA não têm «agenda oculta» no Iraque, mas fato é que há grupos de pressão em Washington trabalhando para que a retirada seja a mais lenta possível. É onde se tornam importantes os alinhamentos políticos no Iraque e a distribuição de poderes dentro do próximo governo que assume o poder em Bagdad depois das eleições parlamentares de 27 de março.

O gigantesco prédio da embaixada dos EUA em Bagdad, construído ao custo de 750 milhões de dólares, em 42 hectares ao longo das venerandas margens do rio Tigre e que abriga 1.200 diplomatas, soldados e pessoal deslocado de inúmeros campos do governo dos EUA, é, muito visivelmente, fortaleza construída para lá permanecer por muito tempo. O mesmo se deve dizer dos artísticos “mini-EUA” tão dolorosamente replicados dentro dos muros de dezenas de bases militares distribuídas pelo território do Iraque.

Claro que, se tirarem seus soldados do Iraque até o final de 2011, diminuirá dramaticamente a capacidade dos EUA para influenciar o país; e os EUA terão de redefinir seu papel, não apenas no próprio Iraque, mas em toda a Região, inclusive em relação a aliados chaves como a Arábia Saudita, o Kuwait, a Jordânia ou a Turquia – todos localizados em torno do Iraque.

Políticos incontroláveis

Iraque e Afeganistão são países amaldiçoados pela geografia, que os converte inevitavelmente em coração da política regional. Por isso não se pode prever o que Obama fará e até que ponto irá para cumprir seu compromisso de livrar os EUA de uma guerra à qual o presidente sempre se opôs; nesse sentido, pouco importa o que Biden tenha prometido em sua visita a Bagdad.

No caso do Afeganistão, o dilema de Obama é maior, posto que tem de incluir outras questões da estratégia global dos EUA – o futuro papel da OTAN como organização de segurança global; o modo como os EUA abordarão o crescimento da China; e simplesmente se é desejável ou não, para os EUA, manter presença militar em área tão vital como o sudeste da Ásia.

Mas há outros fatores determinantes que regem o fim da guerra do Iraque. Primeiro, não se sabe se os EUA são capazes de controlar os políticos iraquianos, divididos em uma miríade de partidos, e de pastoreá-los para um mesmo aprisco, com todos desejando e aprovando a ocupação militar perpétua de seu país. O máximo que Biden pôde dizer, e em tom de lamento tímido, foi: «Na minha modesta opinião, para que vocês [iraquianos] alcancem seus objetivos, é preciso que as vozes de todas as comunidades estejam – proporcionalmente – representadas nesse novo governo (…), e todos terão de ter papel significativo nesse governo, para que o governo funcione, na minha modesta opinião».

Nuri al-Maliki, atual primeiro-ministro iraquiano e apoiado pelos EUA, deseja desesperadamente permanecer no emprego e chefiar o novo governo, mas lidera uma aliança xiita – «Estado de Direito» – que tem sérios problemas de relacionamento com o preferido dos EUA, Iyad Allawi, para formarem uma coligação de governo. A confusão é de tal ordem que, embora Allawi seja xiita, ele lidera o grupo «Iraqueia», coaligação «secular» – na medida em que alguma coisa seja secular, no Iraque pós-Saddam –, mas da qual participam alguns grupos sunitas que, aos olhos da coligação “Estado de Direito”, não são os mais desejáveis dos aliados.

O melhor que poderia acontecer, com vista à estabilidade política, seria que Maliki formasse uma coligação com o grupo «Acordo Nacional Iraquiano» (aliança de xiitas leais a Muqtada al-Sadr, o clérigo radical que se opõe visceralmente à ocupação norte-americana) e com o «Conselho Islâmico Superior do Iraque» (ISCI). Nesse caso, há dois problemas: os Sadristas e o ISCI rejeitam a liderança de Maliki; e os EUA desconfiam de ambos, por seus laços muito próximos com o Irã.

Curiosamente, os EUA vivem dilema semelhante no Afeganistão, vendo a realidade política afegã escapar de seu controle direto. Já foi muito mais fácil para os vice-reis norte-americanos microcontrolarem o presidente Hamid Karzai e seu irmão em Candahar. Hoje, é muito difícil. E, isso, sem falar dos inúmeros grupos de interesse que se formaram, experimentaram o gosto do poder e gostaram.

Paradoxalmente, a lógica política parece sugerir que o melhor seja entregar o poder aos xiitas no Iraque – como aos pashtun –, o que, algum dia, talvez tenha sido fatalidade histórica; mas, hoje, os sunitas iraquianos não aceitarão que se constitua um quadro político governante que os exclua. A verdade é que, às vésperas da retirada dos soldados norte-americanos, o Iraque continua dividido por várias linhas pontilhadas, como se viu no início de julho, quando houve combates entre soldados do exército iraquiano e a milícia Peshmerga curda, no norte do país.

Os soldados dos EUA têm-se inserido entre os grupos antagonistas, patrulhando alternadamente, ou ao lado de unidades do exército iraquiano ou ao lado dos curdos da milícia Peshmerga. Muito significativamente, o comandante dos EUA no Iraque, general Ray Odierno, alertara contra o real perigo de outra guerra civil no Iraque entre curdos e árabes; e sugeriu que talvez fosse necessário mandar para lá as forças de pacificação da ONU, depois da retirada dos soldados dos EUA. Sombras do Afeganistão!

Avanço do regionalismo

Em segundo lugar, o declínio da influência dos EUA no Iraque também coincide com o acentuado aumento da influência dos poderes regionais que aspiram a ocupar o vácuo político resultante do declínio da influência dos EUA – de modo especial, o Irã. Washington terá de ponderar também esse tipo de eventualidade, em relação ao Afeganistão.

Teerã já está tratando o Iraque como país «normal», com o qual vive sob relações manifestamente «fraternas». As exportações Irã-Iraque, que estancaram em 1 bilhão de dólares em 2007, já caminham firmemente para ultrapassar a marca dos 10 bilhões. Por ironia, os contrabandistas iraquianos estão em condições hoje, mais que muitos outros agentes, de sabotar letalmente as sanções patrocinadas pelos EUA contra o Irã.

O Paquistão pode desempenhar papel semelhante em relação ao Afeganistão. A questão é saber se tem sabedoria política suficiente.

Uma parceria político-econômica entre os dois maiores poderes com maioria de xiitas na região tem implicações profundas para a geopolítica de todo o Oriente Médio. Uma confederação Afganistão-Paquistão – possivelmente com inclusão do Uzbequistão – também tem potencial para redesenhar a geopolítica do sul da Ásia e da Ásia Central em termos de rotas de comunicação, segurança energética, comércio e investimento. Nas palavras de Patrick Seale, conhecido especialista em Oriente Médio: «O Iraque, o Irã, a Turquia, a Síria, o Qatar e outros, já estão negociando entre eles e formando alianças por fora da órbita de poder dos EUA».

Os EUA trabalharam muito contra o que viam como influência iraniana nos negócios do Iraque, mas fracassaram. Os EUA já reconheceram tacitamente a inevitabilidade de um Irã influente e predominante; até aspiram a servir-se dessa influência, se permanecer benigna e cooperante. Pode-se perfeitamente conceber que o Afeganistão possa ter papel semelhante, e que venha a ser abordado do mesmo modo.

Por outro lado, os iraquianos – como os afegãos – são nacionalistas apaixonados. Talvez estejam preparados para considerar favoravelmente o Irã como aliado regional e agradecerão a ajuda que recebam do Irã para reconstruírem o próprio país, mas, como disse recentemente o prof. Juan Cole, renomado especialista norte-americano estudioso do Oriente Médio, «eles [os iraquianos] dificilmente aceitarão receber ordens militares» de Teerã.

Em resumo, a estratégia «Af-Pak» de Obama muito poderia ganhar se aprendesse a ver o papel que o Irã teve na estabilização do Iraque. Os estrategistas paquistaneses terão de ser extremamente cautelosos quanto à viabilidade de obterem a «profundidade estratégica» no Afeganistão que ambicionam. – Prender Kabul com laços de amizade e cooperação é uma coisa, mas qualquer expectativa de que o Paquistão venha a «controlar» a estrutura de poder afegã no longo prazo, pode vir a provar-se excessiva.

Biden prometeu aos iraquianos, aos quais falta tudo, até os mais rudimentares serviços essenciais de infra-estrutura, que Washington permanecerá comprometida. Disse que «Enquanto vocês continuarem a postos e construindo sua democracia, estaremos com vocês, economicamente, politicamente, socialmente, em ciência, educação». Foi o que disse. «Fui encarregado dos esforços de nosso governo para unir todos os elementos de nosso governo (sic), do Departamento de Educação ao Departamento de Comércio e ao Departamento de Ciência e Tecnologia – para trabalhar com vocês, se quiserem que trabalhemos com vocês».

Nada faz crer que os iraquianos levem essas palavras a sério. Nada faz crer que creiam que os EUA poderão gerar fora de casa os resultados que não consigam gerar em casa.

A era «pós-EUA»

A mesma síndrome pode acontecer também no Afeganistão. Pode acontecer de os EUA e os países europeus devastados pela recessão perderem o entusiasmo pela empreitada de reerguer o Afeganistão, de uma situação de pós-conflito. É onde potências regionais – China, Arábia Saudita ou Índia – podem desempenhar um papel que não precisa ser visto necessariamente em capitais rivais – Moscou, Teerã ou Islamabad –, como jogo de soma zero.

A conferência internacional marcada para Kabul na 3ª-feira próxima será ocasião para que os países reunidos discutam a política de ajuda ao Afeganistão.

De fato, o Iraque está muito mais bem posicionado que o Afeganistão, numa «era pós-EUA». Os soldados iraquianos já patrulham as próprias cidades; e o Iraque pode gerar renda. Dia 29 de junho, Bagdad aprovou negócio com a Shell para desenvolver reservas de gás (25-30 biliões de metros cúbicos) na região de Basra. Seale concluiu: «O dinheiro começa a correr na direção do Iraque. Aos poucos, o Iraque se reconstruirá da devastação da guerra. E acabarão por encontrar uma fórmula política de governo».

Fato é que, na raiz desse otimismo há uma surpreendente realidade, que seria enormemente relevante para a estratégia afegã de Obama, agora que o presidente se prepara para refazê-la até o final do ano: os iraquianos têm governo que funciona razoavelmente bem, o que só se tornou possível depois que os EUA desistiram de mandar e deixaram que o Iraque buscasse o governo possível em seu habitat natural; e, em segundo lugar, porque Washington traçou na areia uma data para por fim à ocupação – e os ventos do deserto, que tudo apagam, têm-se recusado a permitir que aquela data se apague.

M. K. Bhadrakumar é diplomata jubilado e colaborador assíduo do Ásia Times

Fonte: ODiario.info