Desde que a degradação da economia grega chamou atenção para os déficits explosivos europeus, os governos do continente se sucedem em anúncios de medidas de austeridade. Na Grécia, cortam-se salários e aposentadorias, aumentam-se impostos, e o resultado é uma economia de € 30 bilhões. A Espanha adiantou-se ao perigo e decidiu fazer cortes de € 65 bilhões. Principal economia do continente, a Alemanha de Angela Merkel promete cortar € 80 bilhões até 2014. Mas o caso grego revela também a dimensão extraeconômica da questão.

Os três mortos legados pela onda de protestos que sacudiu Atenas em maio são o último capítulo de uma crescente instabilidade social que remonta à greve dos mineiros britânicos em 1984, em oposição à política liberal de Margaret Thatcher. Protestos e confrontos com as forças policiais se espalharam pelo continente nesse meio-tempo. Em 24 de junho, os serviços públicos foram interrompidos na França pela terceira vez em um ano, em antecipação ao aperto fiscal que o governo de Nicolas Sarkozy prepara. Na Itália, as manifestações do último fim de semana levaram às ruas mais de um milhão de pessoas.

Os aspectos extraeconômicos da crise costumam ser ignorados nos debates sobre as respostas a dar. Analistas liberais denunciam as despesas sociais como intervenção do Estado no mercado. O cientista político escocês Paul Spicker explica que a direita europeia, fundada em raízes aristocráticas, é mais simpática aos benefícios sociais concedidos ou intermediados pelo Estado. As esquerdas se dividem: para alguns, a supressão da assistência social afasta os eleitores da direita tradicional; para outros, representa a passagem de poder do capital industrial para o financeiro. Assim, a argumentação principal a favor das políticas sociais vem dos sindicatos, que denunciam um ataque do poder financeiro a direitos de cidadania, como segurança econômica, saúde, educação. Em vários países da Europa continental, cabe aos sindicatos organizar as transferências de recursos.

Até o século XIX, as políticas que caracterizariam o Estado do bem-estar cabiam majoritariamente a sociedades caritativas. Ao final do século XVIII, enquanto Adam Smith desenvolvia sua teoria dos sentimentos morais, o parlamentar conservador britânico Edmund Burke afirmava que “o Estado é um mecanismo humano para atender necessidades humanas”. As primeiras leis sociais foram implantadas pelo barão Otto von Bismarck na Prússia imperial. Era uma legislação que reduzia o tempo de trabalho e estabelecia fundos de previdência. Bismarck tinha por objetivo manter os operários alemães sob controle e afastados de agitações revolucionárias. Foi uma estratégia eficaz, que Lênin classificaria, décadas mais tarde, como “suborno” e embrião da “aristocracia operária”, camada de trabalhadores aliados ao capital. Na mesma época, o governo de Napoleão III na França, temendo perdas demográficas, instituiu incentivos a famílias numerosas, com o aval da Igreja Católica: geraria ovelhas para o rebanho de Cristo e soldados para o exército francês.

Os governos europeus concentraram-se nas políticas sociais ao fim da Segunda Guerra Mundial, preocupados em evitar a catástrofe social da década de 1930, que se seguiu à quebra de Wall Street. O desamparo das populações resultou em massacres, radicalismo e guerra. A política da reconstrução foi pautada pela busca da estabilidade e do pleno emprego, como na fórmula de seu maior formulador, o economista britânico William Beveridge: “segurança, do berço à sepultura”. As décadas seguintes foram de intenso crescimento, redução de desigualdade e baixa inflação. Governos aplicavam receitas keynesianas para manter a atividade econômica, serviços públicos de saúde atendiam a toda a população dos países europeus, bolsas mantinham jovens no ensino superior e afastados do mercado, programas de seguro-desemprego e requalificação amainavam o impacto de choques econômicos. O sistema público de educação francês foi apelidado de “ascensor social”, por seu poder de promover a igualdade. A paz europeia, frustrada há séculos, foi assegurada.

O sociólogo dinamarquês Gösta Esping-Andersen estabeleceu uma tipologia que distingue três modelos principais de Estado do bem-estar. O dominante na Europa é o chamado “corporativo” ou “mutualista”, em que o governo constitui fundos com a participação de empresas, sindicatos e grupos civis para a redistribuição de recursos. Assim, a redistribuição de renda não se dá por despesas do governo, mas por transferências entre setores, e não precisam ser feitos cortes no orçamento público. Programas sociais “liberais”, como o britânico, herdeiro de projetos assistenciais, usam testes para avaliar as necessidades de parcelas da população, e intervêm nesses pontos. O modelo escandinavo é o mais rígido e estatal: com recursos de uma carga tributária altíssima, os governos garantem a baixa desigualdade de renda e o amplo acesso da população a serviços públicos.

Antes que as crises dos anos 1970 abalassem a relação íntima entre Estado e iniciativa privada, os primeiros sinais de esgotamento apareceram nos anos 1960. No plano econômico, tudo ia bem, com pleno emprego, crescimento e superávits. Mas, como afirma o geógrafo marxista David Harvey, os sindicatos começavam a acumular força política. Ao mesmo tempo, jovens que cresceram no período de abundância não aceitavam viver segundo regras morais herdadas de épocas difíceis. Os eventos de 1968 sintetizam essas tendências: estudantes lutando por liberdade, operários por poder.

A prosperidade trouxe grandes desafios para os formuladores de políticas sociais: queda na fertilidade, aumento da expectativa de vida, escassez de mão de obra. O financiamento da previdência passou a pesar nos orçamentos públicos com o envelhecimento da população. O formato corporativo sofreu consequências de mudanças na estrutura de emprego: sua formulação baseada em redistribuição de recursos, o fim da economia de pleno emprego e as terceirizações, tudo contribuía para que seu mecanismo de funcionamento se visse ameaçado.

Com a crise do petróleo nos anos 1970, seguida de inflação, desemprego e queda no crescimento, surgiram os primeiros déficits públicos, endêmicos na Comunidade Europeia desde 1980. Na França, a taxa de inflação passou de 2,7% em 1966 para 13,7% em 1974. O desemprego atingiu 3% em 1975 e 7% em 1982. A era do pleno emprego era página virada. Desde 2008, a taxa de desemprego supera os 10% na zona do euro. O crescimento acelerado também é coisa do passado. A taxa de expansão do PIB europeu não passou de 3% em nenhum ano do século XXI.

Desde então, somando os maus números econômicos à reconfiguração da geopolítica, os partidos conservadores europeus afastaram-se dos sindicatos e das políticas sociais e passaram a defender ideias desreguladoras. O campo tornava-se fértil para o florescimento da era Thatcher. Governos de esquerda, como o de François Mitterrand na França, a partir de 1981, tentavam conciliar as exigências de benefícios sociais com a introdução de um regime controlado por grupos privados. Sistemas de previdência, saúde e educação passam a ser mistos, com um papel crescente para o mercado.

Como a cultura da segurança social está arraigada na consciência europeia, políticos raramente falam em supressão de políticas sociais. O termo mais empregado é “reforma”. O governo trabalhista britânico, que chegou ao fim em maio, subiu ao poder em 1997 com Tony Blair anunciando o advento de uma “terceira via” entre a economia planejada e o capitalismo desabrido. Assim como os socialistas do governo Mitterrand, os trabalhistas britânicos argumentavam que o mundo mudou desde a implementação do bem-estar social, e o próprio sistema deveria se adaptar, sob risco de colapso. Com isso, as esquerdas europeias impuseram mudanças que, mesmo à direita, haviam sido bloqueadas: privatizações, alterações do regime de aposentadorias, liberalização das transações financeiras. Tais reformas foram a tônica dos últimos 30 anos, com frequentes passos atrás, porém, a cada vez que uma crise reduz a confiança popular na iniciativa privada.

Nos últimos dez anos, a ideia, tradicionalmente americana, de oposição entre Estado e iniciativa privada ganhou terreno na Europa. Na França, Nicolas Sarkozy foi eleito presidente em 2007 com um discurso de reaproximação com os EUA, não só diplomática, como econômica. O “american way of life” era citado como exemplo de ética econômica, refletida na fórmula “trabalhar mais para ganhar mais”, que deu a Sarkozy a vitória. Desde então, a crise dos subprimes apagou o encanto dos EUA e, com ele, o de Sarkozy, na opinião pública francesa, à direita e à esquerda.

A implosão grega parece ser a gota d ‘ água para o processo de reforma na Europa. O jornalista econômico americano Robert Samuelson chegou a chamar a crise atual de “espiral da morte do Estado-providência europeu”. O ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, defende seu programa de austeridade negando que um orçamento no vermelho incentive o crescimento e opondo-se ao apelo dos vizinhos por mais consumo. Após a derrocada da economia dos EUA entre 2007 e 2009, a crise europeia, com as imagens assustadoras que chegam da Grécia, tornou-se um prato cheio para economistas ortodoxos: a instabilidade decorre dos déficits, e os déficits são consequência da política social, eis o diagnóstico. O Estado do bem-estar, nascido para amainar as tensões sociais decorrentes da crise de 1929, resultaria inevitavelmente na bancarrota, afirmam.

Defensores dos programas sociais dizem que os déficits não são necessariamente resultado de liberalidades de governos generosos – ao menos, não com a população. Como assinala Paul Spicker, “a maior parte do déficit europeu não resulta de ‘gastos sociais’, mas de empréstimos maciços para o setor financeiro e perdas de receita com a recessão”. Para Spicker, a reação dos governos europeus à crise é perturbadora, porque representa uma volta aos anos 1930. “A recessão atual é absurdamente retratada como resultado de extravagâncias do governo, embora seja claramente o produto da atividade irresponsável de mercados desregulados”. Robert Samuelson, em seu artigo sobre a Grécia, aponta o ciclo vicioso econômico: sem crescimento, a dívida não vai cair e o problema persistirá. Com corte de gastos e aumento de impostos, a tendência é para haver menos consumo e menos crescimento, e isso resultará em novos déficits.

A própria Grécia pode servir de exemplo para ambos os argumentos. Sua entrada na zona do euro foi fruto de maquiagens contábeis, que esconderam déficits anteriores à expansão das políticas sociais, incentivada pela União Europeia (UE). Nascidas com a ascensão ao poder do partido socialista pan-helênico (Pasok), em 1981, essas políticas eram uma forma de romper a tradição herdada da junta militar que governou o país até 1974. E os artifícios orçamentários compunham uma estratégia para obter financiamentos da UE.

À parte as questões financeiras, as circunstâncias da “espiral da morte” do bem-estar social lembram as agitações que desencadearam sua implantação. O cientista político italiano Giuseppe Vacca associa a crise do Estado do bem-estar à superação do Estado-nação, provedor dos benefícios sociais. Fenômenos que desequilibram a balança de poder, como a globalização, introduzem novos concorrentes, sob a forma de mão de obra barata de países pobres. Outra manifestação da fluidificação das relações econômicas é a imigração, tomada por partidos de linha liberal como claro indício da necessidade de flexibilizar benefícios sociais, enquanto políticos nacionalistas a tomam como símbolo dos ataques ao bem-estar adquirido, e exigem o fechamento das fronteiras.

Em menor escala, o século XXI assiste a um crescimento de movimentos políticos radicais como o dos anos 1930, após a quebra de Wall Street em 1929. O Front National de Le Pen, na França, e o Partido da Liberdade de Geert Wilders, na Holanda, são os exemplos mais caricatos. A instabilidade econômica afasta as populações da política tradicional, baixando os índices de comparecimento às urnas a níveis alarmantes. Greves, como a que paralisou transportes, correios e demais serviços públicos na França em março e junho, se sucedem a intervalos cada vez menores.

Em artigo de 2005, o sociólogo brasileiro Erni Seibel associa os cortes de benefícios sociais ao aumento de gastos militares, penitenciários e policiais. Em vez de universidades, investe-se nas guerras ao terror, às drogas, à pedofilia, à pirataria virtual. Analistas enxergam nesse movimento a substituição do Estado do bem-estar por um Estado-vigilância, concretizando a “sociedade de controle” prevista pelo filósofo Gilles Deleuze. O recurso crescente a forças policiais e medidas judiciais repressivas é expressão de uma armadilha política que a perspectiva econômica não capta.

Sem as proteções do Estado, a população não tem motivo para se manter sob controle, como queriam Bismarck e Beveridge. Agitações sociais tendem a se tornar mais frequentes, forças policiais e tribunais se mostram menos tolerantes. A história revela que são duas as respostas conhecidas para a agitação popular: as políticas sociais e a repressão policial. A segunda alternativa era majoritária até o entre-guerras, mas levou a um sistema de instabilidade política constante e a eventos sangrentos como os de 1830, 1848 e 1871. Após a Segunda Guerra, o poder das armas foi contrabalançado pela estratégia fordista de incorporar o trabalho aos ganhos do capital, diretamente ou com intervenção do Estado. Este segundo modelo também parece ter se esgotado, deixando em suspenso o que poderá ser o seu sucedâneo.

______________________________________________________________

Fonte: jornal Valor Econômico