Histórias de espionagem jamais são o que parecem. Sei, porque, como diplomata, vivi durante muitos anos as relações Índia-Paquistão. Histórias de espionagem podem ter final feliz ou infeliz, mas a narrativa jamais é clara. De fato, pode-se dizer que a narrativa, nas histórias de espionagem não é pensada para espectadores super exigentes, que gostem de saborear detalhes sedutores.

A primeira história da era da Guerra Fria pós-soviética que irrompeu essa semana em Washington DC não é exceção. Como escreveu o Guardian, “A história sobre a rede de espiões russos que viviam em subúrbios dos EUA sem despertar qualquer suspeita acabará virando filme.” Tem de virar filme. Lá estão todos os ingredientes – as sombras alongadas e a paranóia desconfortável de filme clássico da Guerra Fria, identidades secretas, segredos obscuros dignos de peça de teatro de Stephen Poliakoff e o clima grotesco, apalhaçado de, digamos, Meu Tio Solteiro [Uncle Buck, 1989], com John Candy.

Ah, sim, o enredo é lamentavelmente ralo. Como se tivesse sido costurado às pressas. O Departamento de Justiça dos EUA informou, na 2ª-feira, que onze pessoas haviam sido acusadas de operarem como “agentes ilegais da Federação Russa dentro dos EUA”. Mas… estariam espionando o governo dos EUA? Não, nada disso. Tanto quanto se sabe, não tinham qualquer interesse em invadir o governo dos EUA e aparentemente, em matéria de espionagem, pouco espionaram. No pé em que estão as coisas, a principal acusação contra eles é, sim, lavagem de dinheiro. Toda a história é, de fato, bizarra.

A missão dos espiões russos “infiltrados” [ing. embedded] parece ter sido a de abrir caminho até os mais altos escalões da cadeia de tomadores de decisões nos EUA. Para tanto, ganharam identidades norte-americanas e adotaram estilo de vida de norte-americanos normais – aparentemente sem saber, apesar do super treinamento que receberam na escola da KGB na pátria-mãe, sempre estiveram sob vigilância da CIA – seus movimentos, seus contatos, seus trejeitos – até a vida amorosa. Pelas vias regulares das bênçãos conjugais, até tiveram filhos, crianças hoje apanhadas numa trágica terra de ninguém, sem sabem quem foram, são ou poderão vir a ser. São crianças russas? Sim, são. São crianças norte-americanas? Sim, também.

O que se sabe até agora é que esses agentes russos foram infiltrados nos EUA durante a era Boris Yeltsin (1991-1999), quando EUA e Rússia supuseram que haveria alguma coisa muito importante entre eles. Sabe-se também que o primeiro norte-americano com o qual os líderes russos discutiram o assunto foi, bem… o ex-presidente Bill Clinton. Na discussão, em Moscou, segundo a imprensa russa, o primeiro-ministro Vladimir Putin usou o tratamento informal “ty” [russo], em vez do formal “vy” [russo].

Qualquer pessoa que fale russo sabe dizer que a simples troca de pronome de tratamento faz enorme diferença, e é questão importante. Há boato corrente hoje em Moscou, de que Putin usa o pronome “ty” informal ao falar ao presidente Medvedev; e o presidente, ao falar a Putin, usa o tratamento formal “vy”.

Seja como for, Putin disse a Clinton, “A polícia de vocês está totalmente fora de controle, e estão metendo gente nossa na cadeia. Espero que os desenvolvimentos positivos que se acumularam nos anos recentes não sejam apagados. Esperamos que todos que prezem as boas relações entre EUA e Rússia entendam esse ponto.” E Putin, em seguida, disse algo intrigante: “Gostaria de vê-lo com mais frequência. Você chegou na hora certa.” É. Putin sabe dizer as coisas.

Não se conhece a resposta de Clinton. A propaganda russa diz que os norte-americanos encenaram todo o escândalo dos espiões, porque há interesses ocultos que desejam neutralizar a política de “desligar e reiniciar” [ing. reset] as relações EUA-Rússia, do presidente Obama; aqueles interesses visariam a paralisar tudo, para obrigar Obama a andar com menos desenvoltura e mais cautela. É explicação à qual falta credibilidade. Washington rapidamente declarou que Obama não tinha qualquer ideia do que faziam as agências de espionagem dos EUA – implicando que não houve nem se deve supor que houvesse qualquer participação do Salão Oval.

Seja como for, a pergunta óbvia é “por que o governo Obama recorreria a esse meio para comprometer tão completamente os russos, nas atuais circunstâncias?” Medvedev tem empreendido grande esforço para mostrar que “a Rússia está mudando” dentro de um “mundo em mudança”, para usar suas próprias palavras em reunião anual de economistas russos em São Petersburgo, reunião conhecida como a ‘Davos russa’.

Pois nas últimas 72 horas, Medvedev foi mandado de volta ao marco zero, no que tenha a ver com a imagem na Rússia no Ocidente. A imprensa britânica não perdeu tempo e aproveitou a oportunidade para, risonhamente, se por a zombar da Rússia, nação de hábitos “esquisitos”, sempre agarrada às práticas da Guerra Fria e que se recusa a evoluir.

Em segundo lugar, por que Obama criou tal risco para seu “desligar e reiniciar” com Moscou? Afinal, Obama parece ter tido grande encontro, sob todos os pontos de vista, com Medvedev em Washington semana passada, o ambos estabeleceram relação próxima. Imediatamente, poucos dias depois, eclode o escândalo dos espiões. Além do mais, Obama sabe o quanto brilhantemente está funcionando sua política de “desligar e reiniciar” para os EUA; e que deve continuar exatamente como está, no mínimo enquanto persistir aquele problema incômodo, terrível, lá no Golfo Persa, chamado Irã. E é o mesmo problema que, por ter sido tão mal gerenciado, cortou pela raiz uma outra promissora carreira na Casa Branca, reduzida a um único mandato, no caso, de Jimmy Carter.

Até aqui, em todo o escândalo dos espiões russos, Medvedev ainda não se manifestou. A grande questão é: “Será esse o momento Matthias Rust de Medvedev?”

Quem acompanhe há tempo suficiente as relações entre Rússia e EUA lembrará o dramático episódio de maio de 1987, quando um piloto amador alemão, de 19 anos, Matthias Rust, voou num Cessna alugado, de Helsinki a Moscou, furando toda a formidável defesa antiaérea soviética e, contra todas as possibilidades, pousou nos paralelepípedos da Praça Vermelha em Moscou, exatamente à frente do mausoléu de Lênin, com terrível susto dos guardas cerimoniais que vigiam as escadarias do Kremlin.

Hoje, já ninguém lembra de Rust, quem foi e se agiu sozinho. Para todos os diplomatas que trabalhavam em Moscou naquele momento, bastou um segundo para concluírem que todo o establishment militar soviético sofrera golpe terrível, devastador, naquela data, local e hora. A ação de Rust aconteceu em momento crítico da consolidação política do então secretário-geral do Partido Comunista da URSS, Mikhail Gorbachev.

Nós, diplomatas estrangeiros, incansáveis conversadores e analistas, fomos, contudo, muito rapidamente ultrapassados. Gorbachev aproveitou o incidente para demitir centenas de funcionários do Ministério da Defesa que faziam oposição obcecada à perestroika (abertura), entre os quais o ministro da Defesa Sergei Sokolov e o ministro da Defesa Aérea Aleksandr Koldunov.

Gorbachev literalmente invadiu o ministério da Defesa, invadiu e ocupou. E, em 1988, a perestroika alcançou seu ponto máximo. O resto, como se diz, é história.

Obama estará enviando algum sinal a Medvedev? Fato é que Obama tem deliberadamente inflado Medvedev, como o homem com o qual o Ocidente pode negociar. Na última visita a Moscou, Obama muito atentamente reduziu a importância hierárquica de sua interação com Putin. A mídia nos EUA seguiu o mote, sem jamais perder qualquer oportunidade para atacar Putin e tratar Medvedev com luvas de veludo.

No final das contas, permanece a preocupação, no governo Obama, porque Putin ainda imenso apoio dos russos e formidável base de poder. Do ponto de vista dos EUA, o tempo voa – as próximas eleições presidenciais na Rússia acontecerão em 2012. Não passa um dia sem que a imprensa russa mostre pelo menos um ponto que sugira algum ponto frágil no cabo-de-guerra que Medvedev e Putin disputam, com vistas àquelas eleições.

Obama tem boas razões para estar preocupado. Medvedev, afinal, tem mostrado pouca disposição para desafiar diretamente os políticos dos serviços militares e de segurança, chamados siloviki na Rússia. Como as relações já “desligadas e reiniciadas” com a Rússia poderão avançar, como o interesse de Medvedev por “inovações” e “reformas” será levado a sério, como a Rússia poderá ser tratada como país europeu “normal” e como garantir que Putin não volte, reeleito, à presidência em 2012 – enquanto os siloviki continuarem a mandar e desmandar nos corredores do poder no Kremlin? Essa é a questão que atormenta o governo Obama.

O escândalo dos espiões atinge em cheio a imagem da máquina de espionagem dos russos, que foi posta nas manchetes como tola, arcaica e absolutamente não merecedora de qualquer confiança. O incidente também aponta para a existência de um agente norte-americano infiltrado nos mais altos escalões da agência de espionagem russa, dentro do quartel-general do Serviço Federal de Segurança, em Moscou.

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Fonte:  Asia Times Online

http://www.atimes.com/atimes/Central_Asia/LG02Ag01.html

Tradução: Caia Fittipaldi