Diante da mais grave recessão desde os anos 1930, o debate econômico transcorre sob a longa sombra da Carta ao Povo Brasileiro. Silenciosamente, esse fato subjaz à formulação de alternativas, tolhendo ou mutilando as propostas que pretendem tirar a economia brasileira do atoleiro.

Parte de sua plataforma em 2002, a Carta comprometeu o governo Lula quanto ao uso do arsenal jurídico, e do peso político da Presidência. Ela significou a renúncia antecipada de qualquer tentativa de redefinição de contratos e de reformulação do marco institucional herdado de Fernando Henrique Cardoso.

Vitoriosos, os compromissos constantes na Carta conformam um pacto interclassista que, por quase uma década e meia, delimitou as prerrogativas de políticas e de gestão econômicas no Brasil. Mesmo assim, por dentro de seus limites e aproveitando o cenário externo favorável, foi possível a Lula promover um inédito processo de distribuição de renda e inclusão social.

Dois processos correlatos e mais recentes destruíram os fundamentos daquele pacto. Primeiro, a reversão externa, o declínio do crescimento em anos recentes e a profundidade da crise econômica, agravada por políticas equivocadas. Segundo, a firmeza das classes empresariais, unificadas no propósito de abreviar o segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff.

As propostas para o enfrentamento da crise devem ser analisada à luz desta evolução, nascimento, vida e morte da Carta ao Povo Brasileiro. As três contribuições a seguir são atuais. Longe de exaustiva, a amostra cobre, todavia, um espectro suficiente para esta resenha, cujo foco reside em salientar a carência de medidas de caráter efetivamente emergencial.

A presença perturbadora da Carta ao Povo Brasileiro transparece, obliquamente, no Por um Brasil Justo e Democrático, alentado documento (2 volumes, 141 pp., setembro de 2015) com vários signatários (Fundação Perseu Abramo, do PT, mais seis think thanks de caráter para-acadêmico, jornalístico e político). O tema emerge na refutação cerrada que faz da posição neoliberal, a qual identifica a gestão Dilma Rousseff como a determinante principal do sofrível desempenho recente.

Não é necessário ir a detalhes da controvérsia (reconstruída dentro do próprio documento). Ao exorcizar a eleição neoliberal da “nova matriz macroeconômica” do governo Dilma como sua nêmeses, o Por um Brasil… parte do contexto global, tomando em devida conta a dinâmica adversa da economia internacional. Dessa forma, no quadro de uma análise mais ampla, o diagnóstico neoliberal cede lugar a um enfoque integrado, no qual as dificuldades recentes radicam na crise de 2007-2008 e seus desdobramentos, externos e domésticos.

A desaceleração externa ganha importância ao estreitar a margem de manobra das políticas nacionais, mas o Por um Brasil… não se exime de apontar erros de concepção e execução da política econômica até 2014, flagrando seu caráter errático. Além disso, critica frontalmente o ajuste recessivo “ortodoxo” em 2015, tanto por testemunhar o custo de sua implantação como por antever seu insucesso.

Debruçando-se sobre o que intitula de agenda de curto – e prescrições de longo – prazo, o documento da Perseu Abramo delineia, a rigor, uma espécie de ”agenda máxima” de reformas1. Recomenda baixar os juros, recompor a capacidade de financiamento do Estado (revisão das renúncias fiscais, combate à sonegação e reforma tributária), destravar os investimentos, fortalecer o mercado interno e preservar os gastos sociais. No curto prazo inclui a defesa da preservação do emprego e da renda, além de extrair das lições internacionais uma pauta de medidas pontuais para uma reforma dos instrumentos de política econômica.

O que se chama de “medidas emergenciais de curto prazo”, entretanto, resume-se a rápida menção ao Programa de Preservação do Emprego e ao “crédito direcionado dos bancos públicos, utilizado como condicionalidade para a manutenção dos empregos” (p. 50). Coerentemente, o subitem “Desarmar a armadilha recessiva” encerra-se conclamando: “É fundamental uma alteração de rumos da política macroeconômica, visando a redução dos gastos com juros da dívida pública, a ampliação da oferta de crédito para investimento e a reativação do investimento público como indutor do investimento privado” (p. 51). Sem dúvida, medidas na direção correta mas sem o caráter de solução emergencial exigido pela crise.

Uma Ponte para o Futuro, divulgado em outubro de 2015 pela Fundação Ulysses Guimarães, do PMDB, constitui a antítese do documento anterior não apenas por ser conciso (19 pp.). A pedra angular de sua análise reside na crise fiscal do Estado brasileiro, da qual decorrem todos os demais desafios macroeconômicos do país. A centralidade da crise fiscal impõe, dessa perspectiva, que qualquer solução transite pela via obrigatória (não apenas preferencial) de um corte profundo (não apenas controle) das despesas. Identifica-se facilmente sua afinidade eletiva com conceitos que pautaram o governo FHC, bem como com a ênfase que marcou algumas iniciativas reformistas no primeiro governo Lula.

O marco zero das reformas evidencia-se ao afirmar que “sem um ajuste de caráter permanente que sinalize um equilíbrio duradouro das contas públicas, a economia não vai retomar seu crescimento e a crise deve se agravar ainda mais. Esta é uma questão prévia, sem cuja solução ou encaminhamento, qualquer esforço para relançar a economia será inútil”. E conclui, proclamando o monopólio da verdade: “Nenhuma visão ideológica pode mudar isto” (Uma Ponte…, p. 5). E anuncia em tom agourento que “sua solução será muito dura para o conjunto da população, terá que conter medidas de emergência, mas principalmente reformas estruturais” (idem, id.). Por reformas estruturais, ressaltam-se em vários trechos os direitos inscritos na Constituição – em particular os de natureza previdenciária.

O ponto a salientar refere-se à secundarização das medidas de emergência. Como possivelmente integrariam a carnificina do ajuste, são dispensadas de um desfile antecipado: “ajustes de emergência implicam sempre em perdas e sofrimentos, repartindo injustamente seus custos e benefícios, sem resolver o problema” (Uma Ponte…, p. 16). Note-se que as emergências do PMDB, que insinua querer evitá-las, carregam um sentido oposto às da Fundação Perseu Abramo, que incluiu na categoria um programa de preservação do emprego.

Ambas as emergências, entretanto, concebem-se como medidas tópicas ou compensatórias. O PMDB, em particular, adota a acepção negativa de solução inferior e provisória, distinta da que teria caráter duradouro. Redução até aceitável quando se resume a alternativas estruturais, o conceito requer, porém, maior latitude semântica frente a um quadro de crise. Nesse caso, o conceito deve envolver e privilegiar o espaço conjuntural.

Assim, deve caracterizar-se como ação emergencial aquela que, se não tomada no presente – qualquer que seja a duração das medidas utilizadas para sua implementação –, acarreta custos permanentes e/ou irreversíveis. O maior dos custos, no caso, é o sacrifício de produto e emprego em que se incorre ao procrastinar a solução para o quadro recessivo, restringindo as vias de sua superação a medidas que atuam no longo prazo.

Cumpre passar à terceira contribuição. Em seu 5º Congresso, em junho de 2015, o Partido dos Trabalhadores evitou adotar uma posição clara sobre política econômica. Oito meses depois – e milhares de postos de trabalho queimados –, seu Diretório Nacional aprovou o documento O Futuro Está na Retomada das Mudanças (15 pp.), no qual revalidou a saudação à mudança de comando na política econômica porque “o debate sobre os rumos da economia foi desinterditado” (O Futuro…, p. 9).

O documento do partido faz a luta de ideias com uma análise vibrante e propostas fortemente distributivas. Persegue o que seria o “segundo ciclo do desenvolvimento com inclusão social”, orientado por três pilares, o primeiro sendo a “drástica redução das transferências financeiras do Estado para grupos privados”. Advoga “forte redução de juros” centrada no corte das taxas básicas; quanto às taxas para o tomador, recorda o caráter oligopólico do mercado bancário, mas o texto passa ao largo de sugestões específicas. O fim das desonerações fiscais e medidas correlatas reforçariam a redução das transferências. O segundo pilar alude a uma reforma tributária progressiva. A propósito, a simples não correção da tabela do imposto de renda já é em si regressiva; o texto pede a correção e outros procedimentos que adequariam essa estrutura ao critério de justiça social. O terceiro segmento de iniciativas concentra-se, por fim, na ampliação dos investimentos públicos.

Apresentado como “ideias preliminares /…/ que fundamentam o Programa Nacional de Emergência”, o documento, apesar disso, alerta realisticamente que “…a viabilidade do programa apresentado pressupõe a reunificação do campo progressista ao seu redor, intensa batalha político-ideológica /…/, incluindo o comprometimento do governo da presidenta Dilma Rousseff” (O Futuro…, p. 13). Por aí se percebe a distância entre a implementação da proposta e o sentido literal do termo emergência. Mesmo assim, o texto aponta medidas pontuais bastante precisas, incluindo até aprovação de medida provisória (em tramitação) para viabilizar acordos de leniência.

Além disso, traz uma inovação até então relegada à periferia do debate: o uso das reservas internacionais para a constituição de um “fundo de desenvolvimento e emprego”, destinado ao financiamento do capital social básico. E com destaque – trata-se da segunda proposta, numa agenda de 22 pontos bem sumários. Tal como discutida até aqui pelo PT e pelo jornalismo econômico, essa proposta enfrenta dificuldades associadas aos possíveis impactos fiscais e cambiais. 

Em resumo, os três documentos distinguem-se pelo conteúdo das ações propostas, pela amplitude temática e pelo grau de detalhamento expositivo. De outro lado, carecem de um diagnóstico que explicite o desafio de curtíssimo prazo frente à recessão e, coerentemente, compartilham a ausência de uma intervenção desenhada com o propósito de obter efeitos imediatos, de caráter emergencial.

Voltando ao tema do pacto interclassista consagrado na Carta ao Povo Brasileiro, salta aos olhos que os documentos mencionados, Por um Brasil…, da Fundação Perseu Abramo, e O Futuro…, do PT, posicionam-se inequivocamente em desacordo com aqueles compromissos. A firmeza e efetividade dessa dissensão constituem outro assunto.

A rigor, pode-se dizer que o documento do PMDB também rompe com a Carta, mas às avessas, levando ao paroxismo seu caráter conservador. Chega a propor a revisão da própria Carta Magna, a Constituição Federal de 1988, incursionando pela hipótese de reescrever as cláusulas pétreas sobre direitos trabalhistas. Tal ânimo antecipa o tratamento que um eventual governo do PMDB dispensará aos “contratos sociais”.

Pelos termos desses três documentos, portanto, a Carta ao Povo Brasileiro como um pacto político já é história. Embora sua herança institucional permaneça como um desafio. As propostas para o enfrentamento da crise econômica ganhariam amplitude se partissem desse reconhecimento. Como ressaltou Keynes, o mais difícil sempre é livrar-se das velhas ideias.

Os documentos estão disponíveis:

Carta ao Povo Brasileiro

Por Um Brasil Justo e Democrático volume 1  e  volume 2

O Fututo está na Retomada das Mudanças

Carlos Augusto Vidotto é economista, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF)

Publicado em Teoria e Debate, revista eletrônica da Fundação Perseu Abramo