A Marcha pela Ciência foi convocada nos Estados Unidos pouco depois da histórica Marcha das Mulheres, que em janeiro deste ano foi considerada a maior manifestação coletiva da história dos EUA. A ideia agora era semelhante: mobilizar o máximo de pessoas nos país para protestar contra as políticas regressivas do Presidente Donald Trump. Tal qual a Marcha das Mulheres, a da Ciência, em 22 de abril passado – Dia da Terra – , também teve impacto global, tornando-se um acontecimento celebrado pelo mundo.

O lema principal da Marcha foi “Science, not silence” (Ciência, não silêncio), o que diz muito sobre a insatisfação da comunidade científica dos EUA. Foto: Wikimedia Commons.
Por que a ciência, um tema bem menos empolgante do que a luta pela igualdade de gênero, ganhou o território dos protestos maciços? A principal explicação, ou ao menos a mais visível, está no avanço do movimento anti-Trump nos EUA.

Três fatores contribuem para essa força anti-presidente: suas opiniões polêmicas durante a campanha e a polarização gerada a partir de declarações e condutas violadoras de direitos humanos; as condições em que o presidente venceu as eleições – com três milhões de votos a menos do que sua adversária Hillary Clinton e suspeitas de envolvimento de intervenção estrangeira na campanha; e sua gestão presidencial caótica, confusa e catastrófica para diversos setores – incluindo direitos humanos, meio ambiente e pesquisas científicas.

Isso explica o surgimento de um ativismo de resistência que promete não ceder um milímetro contra ações que restrinjam e ou diminuam direitos fundamentais. Um ativismo incentivado pela intelectualidade estadunidense – da qual Noam Chomski é o mais conhecido representante – que resgata profundas raízes da ação cívica e comunitária estadunidense, aliado ao novíssimo cyberativismo impulsionado pelas redes digitais.

Mas o sucesso das marchas não se explica apenas pela aversão coletiva a Trump. A marcha pela ciência mostrou a força e difusão da ideia de que nossa qualidade de vida e nossa sobrevivência como espécie estão ameaçadas.

Uma ideia que é capaz de mobilizar milhões de pessoas para resistir a políticas negadoras da ciência, seja pela negação de evidências científicas (por exemplo, negar o aquecimento global causado por ações humanas), seja por cortes drásticos no orçamento da ciência feito por governos conservadores e políticas neoliberais que põem em risco toda uma gama de projetos científicos relacionados a meio ambiente, energias limpas, saúde etc.

Em seus 100 dias, Trump tentou cumprir à risca suas promessas de campanha, incluindo as anticientíficas. Por exemplo, nomeou para a Agência Federal de Proteção Ambiental (EPA) um conhecido negador do aquecimento global, cuja indicação foi aprovada pelo Senado, onde Trump tem maioria e que até agora não se furtou a recusar nenhum nome enviado pela Casa Branca.

Cabe sublinhar que, segundo lideranças científicas estadunidenses, o governo de Barack Obama foi um dos que mais investiu em ciência nas últimas décadas. O investimento em ciência é um legado de Obama que Trump também quer demolir e desqualificar.

Por isso, a ascendência da ciência como tema da marcha, essa ideia de que a ciência é a única salvação para o planeta, pode ser comparada a uma nova estrela que nasce no firmamento. Como se sabe – e como a ciência comprova – as estrelas nascem milhões de anos antes que possamos vê-las a olho nu. Algo semelhante acontece com a Marcha pela Ciência: o tema existe há tempo, mas agora tornou-se visível, a partir de uma pauta cívica (e midiática) anti-Trump e anti-regressão de direitos pelo mundo.

No Brasil, a Marcha pela Ciência focou sobretudo nos absurdos cortes do orçamento da ciência e tecnologia feitos pelo governo de Temer, posição que vem sendo denunciada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pelas universidades e institutos de pesquisa.

Para corroborar essa posição crítica, a Diretora Executiva da CEPAL, Alicia Bárcena, declarou num evento realizado em Santiago, no Chile, que a América Latina tem até 90% menos pesquisadores do que países desenvolvidos. Por si só, esse dado indica claramente a necessidade urgente de se ter mais verba para a ciência no Brasil e na América Latina – e não menos.

A Marcha

Significativamente mobilizador, o lema principal da Marcha foi “Science, not silence” (Ciência, não silêncio) e que diz muito sobre a insatisfação da comunidade científica estadunidense com o atual estado das coisas no governo Trump. Em Washington, DC, a experiência da Marcha começava no site https://satellites.marchforscience.com que registrava a participação prévia de quem quisesse e oferecia diversas sugestões sobre o que levar e o que não levar, como chegar, por onde se deslocar etc. E, além disso, incitava os participantes a levarem cartazes com palavras de ordem, com slogans, e com trajes que evocassem a ciência e o espírito científico.

O trajeto da Marcha em Washington, DC, se desenvolveu pela Constitution Avenue, saindo do Washington Monument (onde está o famoso obelisco) e se dirigindo até a frente do Capitólio. A Marcha é, nesse sentido, uma vitrine da expressão democrática, alimentada pela sociedade civil organizada. “Let’s make America think again” (Vamos fazer a América pensar novamente) foi um dos divertidos e criativos slogans que fazia um trocadilho com o mote de campanha de Trump, “Let’s make America great again” (Vamos fazer a América grande novamente). Outros cartazes que desfilaram na Marcha, incluíam “Mulheres na Ciência”, fazendo uma ponte entre duas Marchas…

A influente Associação Americana para o Avanço da Ciência/AAAS, equivalente à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência/SBPC, apoiou a Marcha, e esteve presente com seus membros. Após a experiência da Marcha, os participantes continuam recebendo e-mails com palavras de ordem e incentivo à mobilização permanente, com títulos como “Continue marchando”; “Nós marchamos. Agora nós agimos”; “Diga aos negadores da mudança climática que você vai defender a ciência”; “A ciência está em todos os lugares. Vamos recordar nossos líderes!”.

Nos 100 primeiros dias de governo de Donald Trump, o Washington Post divulgou os numeros do “mentirometro” criado para medir as falsidades ditas por Trump, desde sua posse. Foram 488 registros!

Por isso, as palavras de ordem não acabam aqui…e as marchas continuam.

Gilberto M. A. Rodrigues é Research Fellow no Center for Latin American and Latino Studies (CLALS) da American University, em Washington; professor de Relações Internacionais da UFABC; e pesquisador do CNPq. Participou da Marcha pela Ciência, em Washington. Integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.

Publicado no blog Brasil no Mundo.