Um dos entulhos da ditadura militar brasileira está prestes a ir para a lata do lixo. No dia 18 de abril de 2017 o plenário do Senado aprovou o projeto que revoga o Estatuto do Estrangeiro e instaura a nova Lei de Migração.

A aprovação da lei foi o único avanço que tivemos na pauta dos Direitos Humanos desde que o presidente ilegítimo Michel Temer assumiu o Planalto. A mudança legislativa vem sendo pautada por setores da sociedade civil brasileira e por movimentos de imigrantes há pelo menos sete anos e foi fruto de uma ampla mobilização, que pressionou o poder Legislativo e contou com a importante atuação de organizações como a Conectas Direitos Humanos, CELS, ITTC, Missão Paz, SEFRAS e Cáritas Arquidiocesana de São Paulo.

O próximo passo do texto da nova lei é a sanção presidencial e Michel Temer pode vetar artigos. Ainda assim, a revogação do Estatuto do Estrangeiro já pode ser considerada um avanço em direção à proteção dos Direitos Humanos de imigrantes no Brasil.

Apesar de o texto não ser considerado ideal, a mudança já começa no título da lei. A palavra estrangeiro, em sua origem, significa estranho, que inspira repulsa e hostilidade. Assim era o tratamento dado aos imigrantes pelo Estatuto do Estrangeiro, de 1980, baseado no paradigma da segurança nacional, que considerava uma ameaça pessoas vindas de fora do país.

A nova Lei de Migração, por outro lado, trata o imigrante como um sujeito de direitos, e não como estrangeiro. Além disso, a legislação migratória finalmente adequa-se à Constituição Federal, que determina tratamento igualitário a brasileiros e às pessoas vindas de fora. Nesse sentido, a lei institui o repúdio à xenofobia, ao racismo e a outras formas de discriminação, além de garantir o acesso a políticas públicas.

Outro ponto que deve ser destacado é que a nova lei pauta-se pelo princípio da não criminalização da migração o que, na prática, significa garantir de acesso à assistência jurídica e ao devido processo legal.

Além disso, o imigrante terá direito irrestrito à reunião, desde que para fins pacíficos, e de associação, inclusive sindical. O Estatuto do Estrangeiro veta qualquer tipo de exercício de atividade política e garante o direito de associação somente para fins culturais, religiosos e desportivos.

O direito ao voto, porém, ainda não está garantido aos imigrantes, pois para isso é necessário modificar não apenas a legislação migratória atual, mas a Constituição Federal, que restringe o sufrágio a brasileiros natos e naturalizados e aos portugueses com, no mínimo, três anos de residência ininterrupta no Brasil. O direito ao voto é uma demanda histórica do movimento de imigrantes e existem campanhas permanentes com essa reivindicação, como a Campanha Aqui Vivo, Aqui Voto.

A nova lei institui a promoção da entrada regular e da regularização documental. Essas medidas constituem avanços, uma vez que é necessário oferecer condições concretas para que os imigrantes obtenham documentos, e não apenas exigir papéis de difícil obtenção. Ademais, será concedida residência a imigrantes que tenham entrado no território brasileiro antes de 6 de julho de 2016, independentemente de sua situação migratória.

Mesmo sob a vigência do Estatuto do Estrangeiro, o Estado brasileiro já promoveu, de forma pontual, anistias a imigrantes em situação irregular, mas o alcance dessas medidas foi baixo devido a dificuldades com processos burocráticos e ao fato de que muitas pessoas sequer sabiam da possibilidade de anistia. Então, quando a Lei de migração for aprovada, será necessário realizar um amplo trabalho para difundir essa informação.

Com a aprovação da nova lei, garante-se também a acolhida humanitária, que passa a ser um princípio da política migratória brasileira. Antes, esse tipo de acolhida se dava através da concessão do visto humanitário, criado pelo Ministério da Justiça e pelo Ministério de Relações Exteriores, em 2012, para receber haitianos que vinham para o Brasil fugindo das consequências do terremoto de 2010 e que, portanto, não se encaixavam no rol de situações que garantem o direito de refúgio. Em 2013, o visto humanitário foi estendido aos sírios, que, ao chegar no Brasil, podem entrar com pedido de refúgio.

É evidente que a sociedade civil obteve uma grande vitória com a aprovação da nova Lei de Migração, entretanto, precisaremos estar muito atentos, pois as reações contrárias já são evidentes.

No dia 26 de março, setores conservadores da sociedade realizaram uma manifestação a favor de pautas como a reforma da previdência e a reforma trabalhista; nessa manifestação também apareceram posicionamentos contra a Lei de Migração.

Além disso, nos dias que antecederam a votação do projeto no plenário, houve uma grande quantidade de votos contrários à aprovação da lei em uma consulta virtual realizada pelo Senado. Apesar de os números não serem vinculantes, senadores contrários citaram a enquete como parte de seus argumentos.

Ao longo dessas lutas, esbarramos em diversos obstáculos e fomos vendo, na prática, que a imagem do brasileiro como um sujeito acolhedor não passa de um mito. Destaca-se também que a aprovação da nova Lei de Migração não é uma benesse do governo de Michel Temer, nem do Poder Legislativo.

Há muitos anos os movimentos de imigrantes e de brasileiros que atuam nessa pauta vêm colocando a urgência da revogação do Estatuto do Estrangeiro e a necessidade de criação de uma nova lei, que trate os imigrantes pela viés dos Direitos Humanos e não pela chave da ameaça à soberania e à segurança nacionais.

Os desafios que temos pela frente são imensos. O próprio fato de estarmos na contramão das tendências internacionais é um desses desafios. Enquanto diversos países estão aprovando medidas restritivas e securitizando suas fronteiras, no Brasil acabamos de aprovar uma lei que avança na garantia de Direitos Humanos aos imigrantes.

É importante ressaltar que uma legislação migratória restritiva não impede as pessoas de cruzarem as fronteiras e não determina quantas pessoas deixarão de entrar no território, mas quantas permanecerão em situação irregular.

Outro desafio que teremos que enfrentar é o fato de que vários artigos da nova lei devem ser regulamentados para se tornarem eficazes. Isso significa que, uma vez que a nova Lei de Migração entre em vigência, ainda teremos uma longa batalha para que as regulamentações sejam aprovadas.

Para que haja força social para fazer frente a todas essas questões, é essencial que a sociedade civil tenha conhecimento sobre a nova Lei de Migrações, o que exige de cada um de nós, defensores dos direitos dos imigrantes, um trabalho constante de conscientização e de combate à xenofobia.

Natália Araújo é mestranda do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI-USP) e pesquisa movimentos sociais inter e transnacionais. Desde 2011, faz parte do coletivo de extensão universitária Educar para o Mundo, que trabalha com educação popular em Direitos Humanos com imigrantes e refugiados na cidade de São Paulo. Convidada do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.

Publicado no blog Brasil no Mundo