Um Japão capitalista e imperialista

A deposição do Xogunato em 1868 e o estabelecimento da dinastia Meiji cumpriram no Japão um dos papéis da revolução burguesa no Ocidente: impulsionar o processo de industrialização. A “revolução de 1868” colocou o poder nas mãos dos nobres da parte sul-ocidental que, sob o manto imperial, aliaram-se a setores da nascente burguesia nipônica. O imperador adotou então uma ativa política de incentivo à indústria, com subvenções públicas e construção de obras de infraestrutura.

A revolução industrial à japonesa conheceu as mesmas mazelas da sua congênere ocidental: a superexploração da força de trabalho operária. Esta agravada pela manutenção de relações sociais pré-capitalistas, como a servidão. A falta de trabalhadores nas cidades que se industrializavam levou ao recrutamento dos camponeses. Centenas de “agentes de emprego” vasculhavam as aldeias à procura de mão-de-obra, especialmente feminina. As jovens eram praticamente compradas de seus pais por capitalistas gananciosos.

As indústrias de tecidos e de seda se transformaram em verdadeiros cárceres femininos. As jovens eram impedidas de abandonar a fábrica pelo tempo de duração dos contratos assinados pelos seus pais. Viviam em alojamentos insalubres, proibidas de sair sem prévia autorização. À noite elas ficavam trancafiadas. Os operários, em geral, eram vítimas de castigos corporais e as jornadas de trabalho se estendiam por 16 e 17 horas diárias, sem folgas semanais ou férias. O trabalho de crianças entre seis e sete anos era regra nas fábricas, como afinal em todo o mundo capitalista de então.

Já naquela época, o Japão era um país com pretensões imperialistas sobre a Ásia. Os capitalistas japoneses precisavam de novos mercados para seus produtos e novas fontes de matérias-primas. Por isso, em 1894, entraram em guerra contra a China, que foi derrotada. Os tratados que se seguiram arrancaram da nação derrotada fatias do seu território, direitos comerciais escorchantes e uma vultuosa indenização.

Esta vitória militar deu um impulso sem precedentes à industrialização japonesa. No espaço de cinco anos (1895-1900), “o capital líquido das companhias industriais mais do que dobrou. Em 10 anos a extração de carvão aumentou em três vezes. A expansão da indústria naval testemunha esse desenvolvimento: em 1893 somente 7% das exportações e 9% das importações eram transportados em navios japoneses, enquanto em 1903 os dados correspondiam, respectivamente, a 40% e 35%.” (1).

Naquela mesma época o governo investiu na construção das indústrias de ferro e de aço. A monopolização da economia já era uma tendência no final do século 19. Neste período dois grandes conglomerados industriais se destacavam: a Mitsubishi e a Mitsui. Esta última, “foi se transformando num grande consórcio que incluía bancos, minas de carvão, empresas de navegação, indústria açucareira, fábrica de tecidos e muitas outras empresas.” (2). 

 

Operário japonês no refeitório da empresa

As primeiras organizações operárias e a violenta intervenção da burguesia e do Estado

A industrialização acelerada e a brutal exploração capitalista levaram ao crescimento do operariado e ao acirramento da luta de classes. Nas décadas de 1880 e 1890 eclodiram as primeiras greves e nasceram os sindicatos no Japão. À frente deste processo estavam os trabalhadores em gesso, os carpinteiros de barcos e os impressores de Tóquio. Em 1886 estalou a greve dos ferroviários que culminou na fundação do Sindicato dos Trabalhadores das Ferrovias.

 

Sen Katayama, histórico líder socialista e fundador do Partido Comunista do Japão

A principal liderança desse período foi Sen Katayama. Operário impressor em Tóquio, imigrou para os Estados Unidos em 1884, entrando em contato com sindicalistas e socialistas americanos. De volta ao seu país, em 1895, se tornaria o secretário do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Ferro de Tóquio e criaria a “Sociedade para a Fundação de Sindicatos”. Seu objetivo era fundir o socialismo com o movimento operário, como a socialdemocracia estava fazendo na Europa.

 

Shosui Kotoku entre militantes anarcossindicalistas. Ele seria executado em 1911

Em 1901, sob sua inspiração, foi fundado o Partido Socialista do Japão (PSJ). Preocupado com o avanço das lutas operárias, o governo aprovou uma legislação que cerceava a liberdade política e colocou na ilegalidade o PSJ. A guerra russo-japonesa (1904-1905), entretanto, fez renascer o movimento operário e socialista, e em 1906 o partido foi reconstruído. A exemplo do que ocorria na Europa, logo se dividiu em duas alas: a reformista e a revolucionária. Esta última era liderada por Shusui Kotoku, muito influenciado pelo anarcossindicalismo.

Ainda em 1906 os trabalhadores de transporte de Tóquio entraram em greve e obtiveram uma importante vitória. Em fevereiro eclodiu outra poderosa paralisação nas minas de cobre de Asio. Para esmagar o movimento foram convocadas tropas do exército e o conflito se radicalizou. Os mineiros enfrentaram a repressão e depredaram as instalações da empresa. Como saldo, centenas de feridos, mais de 200 prisões e o fechamento do combativo sindicato.

 

Shosui Kotoku

A situação se agravou ainda mais a partir de 1910. O governo determinou a prisão de todos os líderes socialistas, acusando-os de tramarem contra a vida do Imperador. No início do ano seguinte, em julgamento secreto, a Suprema Corte condenou à morte os principais membros da ala esquerda do Partido Socialista, incluindo Kotoku e sua companheira. Eles foram estrangulados em suas celas poucas horas depois de promulgada a sentença. Na ocasião, as organizações socialistas e sindicais de esquerda foram fechadas.

Após o esmagamento do movimento sindical de inspiração socialista, o governo e os capitalistas japoneses passaram a apoiar a ala direita do sindicalismo. Compreenderam que apenas a repressão não bastaria para conter as lutas operárias e investiram os seus esforços na construção de um sindicalismo de colaboração (ou conciliação) de classe. Assim, em 1912, nasceu a “Sociedade dos Trabalhadores”, a Yuaikai, dirigida por Bunyi Suzuki, que seria a única entidade sindical permitida no Japão imperial.

Mas os objetivos da burguesia e do governo não puderam ser plenamente atingidos. Durante o período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a pressão operária levou a Yuaikai a ter que encampar algumas de suas velhas reivindicações econômicas e sociais. Ressurgiram as greves. A Yuaikai se transformou na Federação dos Trabalhadores do Japão, Nihon Rodo Sodomzi, e aumentou rapidamente o número de filiados. Novamente, as classes dominantes investiram na criação e no fortalecimento de uma organização ainda mais domesticada: a Associação para Harmonização do Trabalho e do Capital, sem caráter sindical. 

Os avanços democráticos foram logo anulados pelo forte Estado militarizado japonês

Em 1918, o governo, pressionado pelo movimento democrático, ampliou o direito ao voto, e em 1925 estabeleceu o sufrágio masculino. Nas primeiras eleições após a reforma, foram eleitos oito representantes dos trabalhadores (3). Neste ano também entraria em vigor a lei que limitava a jornada de trabalho em 11 horas diárias para menores de idade e mulheres e proibia que estes exercessem trabalhos noturnos. Contudo, nada dizia sobre a limitação da jornada para os adultos, que continuava a ser superior a 12 horas diárias. No ano seguinte, uma nova lei anulou os dispositivos mais draconianos sobre as greves.

Apesar desses relativos avanços, o Partido Comunista do Japão (PCJ) continuou sendo duramente reprimido e mantinha-se na clandestinidade. E mesmo esse débil liberalismo sofreria um forte retrocesso com a crise que abalou o capitalismo mundial após 1929. O Japão foi afetado duramente por ela. Houve uma drástica queda no volume das exportações, especialmente a da seda para os EUA. As falências e o desemprego cresceram geometricamente. A fragilidade da esquerda, reflexo da repressão, não lhe permitiu capitalizar o momento de grave crise econômica e apontar uma perspectiva para além do capitalismo.

Ao contrário, assistiu-se ao crescimento do chauvinismo, do racismo e do militarismo. A saída encontrada pela burguesia e pelo imperialismo japonês foi recorrer à guerra de rapina contra a China. Em pouco tempo, suas tropas invadiram a Manchúria e impuseram um governo títere, encabeçado pelo imperador chinês deposto. Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, em 1938, o Japão já ocupava a maior parte do norte e centro da China.

Os militares, sempre fortes no Japão moderno, assumiram a direção da política externa e interna. Ainda em1938 instituiu-se a Lei de Mobilização, que concedia ao governo poderes ditatoriais em nome da segurança nacional. Dois anos depois, eram dissolvidos todos os partidos políticos japoneses e em seu lugar criado um partido único: a Associação de Assistência do Governo Imperial.

Para o Estado militarista japonês: “capital e trabalho, unindo-se sinceramente, deveriam contribuir para o melhoramento industrial; o maior (os capitalistas) amando o menor, e o menor (os trabalhadores) respeitando o maior.” (4). Em 1941, deu-se o golpe final contra os sindicatos: as lideranças foram presas, as sedes fechadas e os seus fundos confiscados pelo Estado. Em lugar das entidades sindicais foi estabelecida a “Associação Industrial Patriótica do Japão”, que congregava capitalistas e operários nos moldes das corporações fascistas italianas. Neste “Japão Unitário” não havia lugar para conflitos e, portanto, nem razão para a existência de partidos ou sindicatos.

Derrota do nazifascismo reacendeu a luta operária que, no entanto, rapidamente foi contida

A derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial e a ocupação militar estadunidense abririam uma nova fase de ascenso do movimento operário e socialista naquele país. As forças intervencionistas, lideradas pelo general Douglas MacArthur, buscaram destruir as bases econômicas e sociais que deram sustentação ao militarismo japonês: o latifúndio e os monopólios. A primeira grande medida tomada foi a realização de uma ampla reforma agrária. Também se aprovou uma legislação de caráter antimonopolista.

 

Escola na Central Sindical Japonese no pós-guerra

No terreno político foram legalizados todos os partidos, inclusive o Partido Comunista, e restabelecidas as liberdades de imprensa e organização. O movimento sindical, favorecido pelos ventos liberalizantes, conheceu um crescimento inédito. Em poucos meses surgiram mais de 12 mil entidades, congregando 3 milhões de trabalhadores. Anos mais tarde o número de sindicalizados chegaria a 8 milhões. Em 1950 cerca de 50% da força de trabalho industrial japonesa estavam sindicalizados (5).

No pós-guerra, os sindicatos se constituíram por indústria e não por ramo de produção ou categoria profissional. Estes sindicatos se uniam em grandes confederações de caráter nacional. Os comunistas logo se tornaram a principal força. Sob a sua influência foi fundado em 1946 o Conselho Nacional dos Sindicatos Industriais, o Sanbetsu, que reuniria rapidamente mais de 1.500 milhão de aderentes. A direita sindical, em contrapartida, fundou a sua própria central, a Confederação Geral dos Sindicatos Operários, o Sadomei, que reuniria cerca de 850 mil sócios. (6)

 

Sede do jornal do Partido Comunista fechado durante a ocupação do Gen. MacArthur

A eclosão de inúmeros e poderosos movimentos grevistas no pós-guerra aterrorizou as classes dominantes. As próprias forças de ocupação estadunidense, que até então davam apoio discreto à reestruturação do movimento sindical, contra os setores mais reacionários da sociedade japonesa, mudam de posição. Em 1947, o general MacArthur interveio pela primeira vez contra o movimento operário e impediu a realização de uma greve geral convocada pelo Sanbetsu. No ano seguinte, com o apoio estadunidense, o governo japonês proibiu as greves no setor público, onde os comunistas tinham maior influência. Apesar da repressão, o Partido Comunista conseguiu mais de 3 milhões de votos nas eleições realizadas no início de 1949 (7). A situação se tornaria mais sombria para a esquerda japonesa com o avanço da guerra fria. Após a vitória da Revolução Chinesa e o início da Guerra na Coreia, os EUA buscaram transformar o Japão numa trincheira avançada do imperialismo no continente asiático.

 

Kyuichi Tokuda, secretário-geral do PC do Japão em 1949

 

Burguesia japonesa sempre investiu pesado na divisão do movimento sindical

 

Estudantes protestam contra expurgos de comunistas em 1950

Para cumprir esse objetivo, em primeiro lugar, tiveram de investir fortemente contra a influência dos comunistas na sociedade japonesa. Entre 1950 e 1951, o governo realizou os “expurgos vermelhos”. Milhares de comunistas foram expulsos das funções públicas, presos e processados. O PCJ teve que entrar numa situação de semiclandestinidade. A repressão atingiu em cheio o movimento sindical mais combativo. Mais de 200 mil dirigentes acabaram sendo destituídos dos seus cargos e centenas de entidades sindicais foram interditadas (8). Era uma versão nipônica – mais radicalizada – do macarthismo estadunidense.

Novamente os patrões e o governo incentivaram a formação de uma central sindical dócil aos seus interesses. Em 1950, à sombra dos “expurgos vermelhos”, nasceu a Nippon Rodo Kumiai Sohyogikai, conhecida como Sohyo. Mas o destino reservaria amarga surpresa às elites. A Sohyo, embora não fosse pró-comunista, tinha suas contradições com a política que os EUA vinham impondo ao Japão. Sua direção caiu rapidamente nas mãos da esquerda do Partido Socialista, que dirigiu uma ativa campanha pela imediata retirada das bases norte-americanas daquele país. Também se opôs à participação japonesa no conflito da Coreia.

 

(Foto: Repressão ao Primeiro de Maio em 1952)

Não podendo contar plenamente com a Sohyo, governo e patrões patrocinam uma nova cisão no movimento sindical. Em 1953, surgiu o Zenro (Congresso dos sindicatos japoneses), que em 1964 se transformaria em Zen Nippon Rodo Sodomei (Federação Sindical Japonesa) ou Sodomei. Sob hegemonia da direita socialdemocrata, a nova entidade defendeu a política belicista dos Estados Unidos na Ásia. Uma de suas resoluções afirmava: “Os sindicatos não devem estar necessária e categoricamente contra o sistema. Somos opostos a introduzir a luta de classes nas relações entre patrões e empregados. Por isso, nos negamos a lutar ao lado do Partido Comunista e do Partido Socialista.” (9).

Entre o final da década de 1950 e os anos 1970, alguns setores do sindicalismo japonês deram mostras de combatividade. A partir de 1955, por iniciativa da Sohyo, iniciaram-se as chamadas Ofensivas da Primavera, buscando congregar os sindicatos em campanhas salariais unificadas. Em 1956, o movimento unificador envolveu 800 mil trabalhadores, que em 1964 chegaram a 6,5 milhões e em 1973 a 8,5 milhões (10). A conquista de melhores acordos por alguns sindicatos impulsionava as lutas dos demais.

Em 1974, no início de outra grande crise mundial do capitalismo, o Japão conheceu o auge do movimento de contestação operária e sindical. Ocorreram naquele ano mais de 6.100 greves, envolvendo cerca de 4.323 milhões de trabalhadores. A maioria delas era de curta duração, muitas duravam apenas algumas horas, mas demonstravam o espírito de luta da classe operária, apesar da direção muitas vezes economicista dada por suas lideranças (11).

Os líderes sindicais esbarravam na legislação sindical restritiva, que somente autorizava greves por reivindicações econômicas e por empresa. Eram proibidas greves gerais e de solidariedade. Continuavam ilegais as paralisações no setor público. Contra esta última restrição, a Sohyo organizou inúmeras campanhas nacionais. Nos anos de 1975, 1976 e 1977, a Central dirigiu várias greves ilegais que resultaram em confrontos e detenções de grevistas. Em 1992, os trabalhadores dos transportes coletivos paralisaram Tóquio por meio período.

No final da década de 1970, a Sohyo possuía 4.573 milhões de aderentes e a Domei, 2.266 milhões. Duas outras federações, a Churistsuroren e o Shinsabetsu, respectivamente, 1.369 milhões e 70 mil aderentes. Cerca de 4.705 milhões de trabalhadores pertenciam a sindicatos não filiados às centrais sindicais (12). No período cresceu o chamado “sindicalismo de empresa” ou “sindicato casa” – espaço privilegiado para a colaboração de classe.

Atrelamento dos sindicatos avança com novas formas de gerenciamento do trabalho 

Não é possível entender a formação desse sindicalismo de direita, em especial do “sindicato casa”, sem estudar a forma de incorporação da força de trabalho na moderna indústria do país. Esta se baseia no salário por antiguidade e no “emprego vitalício”. O sistema nenko (nen=anos e ko=mérito) nasceu da necessidade de manter a escassa mão-de-obra qualificada dentro de uma mesma empresa, evitando assim a alta rotatividade do pós-guerra.

Por esse sistema, que se sustentou graças ao rápido desenvolvimento industrial do país, os trabalhadores especializados tinham emprego “por toda a vida”. Na verdade, essa estabilidade era relativa. Primeiro porque atingia apenas uma pequena parcela da classe operária. Segundo, porque nos momentos de crise os capitalistas flexibilizavam ao máximo esse “direito”. Reduziam os prazos das aposentadorias compulsórias, alteravam jornadas de trabalho e salários, transferindo funcionários para as “terceiras”, cortando bonificações etc.

O salário por antiguidade também foi adotado como mecanismo para manter o operário qualificado. E existem ainda outros recursos visando ao atrelamento dos trabalhadores ao “espírito da empresa”. As bonificações, por exemplo, representavam parte importante das remunerações. O bônus bianual equivalia a um terço do salário anual. Cada empresa estipulava os seus critérios, que beneficiavam os mais antigos, os mais produtivos e os mais dóceis. Esta política também servia para flexibilizar ao máximo as formas de pagamento dos salários. Qualquer indício de crise era motivo para suspender as bonificações.

As elites do Japão sempre procuraram dividir ao máximo os trabalhadores. O sistema nenko, como já foi dito, atingia apenas uma minoria dos assalariados. Na década de 1970, funcionava em 3 mil empresas, num universo de mais de 4 milhões de estabelecimentos. Beneficiava somente 30% da força de trabalho, segundo Watanabe (13). Esta divisão levou alguns estudiosos, como Gilles Martinet, a falarem na existência de duas classes operárias no país: “aquela que se beneficiava do sistema nenko e aquela que formava a massa de trabalhadores não regulares das pequenas empresas, os assalariados com mais de 55 anos e a grande parte da mão de obra feminina (…)”. Neste sistema: “os trabalhadores temporários que ganhavam em média 70% do salário do trabalhador ‘por toda a vida’ estavam longe de ter as vantagens sociais que beneficiavam este último.” (14).

Entre esses trabalhadores considerados de segunda categoria estavam os contratados sem estabilidade. Um contingente que aumentava nos momentos de crescimentos econômico e diminuía nas primeiras intempéries vividas pela economia capitalista. Milhares de imigrantes (inclusive brasileiros) ainda formam uma terceira categoria. Eles executavam serviços que os japoneses, numa fase de abundância, recusavam-se a fazer. Esses trabalhos eram – e ainda são –denominados de KKK: iniciais de Kitsui (duro), Kikem (perigoso) e Kitani (sujo).

O “sindicato casa” dá novo e forte impulso à exploração do moderno capitalismo

Os sindicatos japoneses, mesmo os mais combativos, nunca deram a devida atenção a essas camadas desprivilegiadas do proletariado. Daí a baixa sindicalização nesses setores. Se o índice nas grandes indústrias chegava, em média, a 70% (em algumas atinge 100%), nas pequenas empresas ficava abaixo de 10% (15). Todos esses fatores, acompanhados dos melhores salários nas indústrias de ponta (especialmente de automóveis e eletrônicos), explicam o desenvolvimento da ideologia de colaboração de classe.

Outro fator para a expansão do “sindicato casa” foi a repressão. Sem ela não teria sido possível implantar tão rapidamente o modelo de desenvolvimento japonês, baseado no chamado toyotismo. Soma-se a isso a própria legislação que incentiva a pulverização sindical. Ela garante a existência de mais de um sindicato por empresa, mas só reconhece o direito de negociação à entidade com maior número de sócios. Em grande parte das empresas existem hoje dois sindicatos. E foi justamente neste campo que a esquerda sindical se enfraqueceu.

Na Toyota, a formação do “sindicato casa” esteve ligada a uma dura derrota sofrida pela classe operária. Em 1950, a empresa demitiu 1.600 empregados. O sindicato decretou greve, que durou dois meses e não conseguiu reverter o quadro de demissões. Dois anos depois, outra greve, agora de 55 dias, novamente foi derrotada. Fruto desses golpes consecutivos surgiu um “segundo sindicato”, mais dócil à empresa. Na campanha salarial de 1954, este adotou o lema “proteger nossa empresa para defender a vida”. A mesma situação se verificou na fábrica Nissan, em 1953. Não por acaso estas foram as últimas greves que ocorreriam nestas duas grandes empresas pelas próximas décadas.

A reestruturação do capitalismo japonês exigiu a incorporação subordinada dos sindicatos. Era vital para o patronato que eles não se opusessem à intensificação do trabalho e à implantação de novas técnicas de gerenciamento – aparentemente mais participativas, mas no fundo mais alienantes. Era muito comum o “sindicato casa” se engajar nas campanhas patronais de demissões voluntárias e de antecipação das aposentadorias compulsórias, com o objetivo de garantir o processo de reestruturação da empresa e a sua competitividade no mercado nacional e internacional.

A preocupação com a produtividade das empresas atingiu até mesmo os sindicatos aparentemente menos integrados. As próprias formas de luta adotadas por eles provam isso. As greves, quando existiam, duravam apenas algumas horas, e eram sobretudo de demonstração. A principal forma de protesto era o comparecimento ao trabalho com tarjas pretas para “envergonhar os dirigentes das empresas”, pois “não há o desejo de criar dificuldades financeiras a uma empresa à qual ele está ligado por toda a vida.” (16).

Segundo Coriat, “em muitos casos, a passagem pelo sindicato é a condição para ascender às funções de responsabilidade – notadamente em matéria de gestão de pessoal – na própria empresa (…). O sindicato está estreitamente ligado à hierarquia da empresa através do jogo das carreiras e das promoções.” (17). No caso da Toyota, constata o sindicalista Ben Watanabe, “cerca de 60% dos delegados sindicais e diretores do sindicato são supervisores, o que facilita para a empresa o controle sobre os trabalhadores.” (18).

A crise econômica abala o projeto de cooptação das classes dominantes

Evidente que também aqui há contradições. O caso mais emblemático foi o da demissão do arquipelego presidente do “sindicato casa” da Nissan, Shiogi Ichiro. Possivelmente por não ter levado a sério o discurso da “gerência participativa” e não ter percebido que na reestruturação industrial à japonesa não há lugar para ilusões de “cogerenciamento” de tipo social-democrático. Ben Watanabe concluiu corretamente que “para a flexibilização do total da produção é necessário destruir o sindicato, mesmo que seja pelego.” (19).

Uma declaração do ex-presidente da Companhia Ferroviária Nacional do Japão refletiria bem a ideologia oficial do empresariado, que penetrava nas lideranças sindicais: “A unidade da família (empresa) deve ser preservada antes de tudo. A autoridade deve permanecer em mãos do pai (o chefe da empresa). Se a mãe (o sindicato) mima demasiadamente os seus filhos (os operários), o pai tem o direito de colocar no caminho reto seus filhos e a mãe.” (20).

O sucesso do “sindicalismo casa” está assentado no processo de expansão do capitalismo japonês. Mas essa situação, tudo indica, está em vias de desaparecer. A recessão econômica que atingiu o Japão no início dos anos 1990 levou-o a alterar a política patronal sobre empregos e salários. Então, a Organização Nacional das Empresas se posicionou pela extinção do “emprego vitalício” para dar maior competitividade à indústria em crise. A Toyota, por sua vez, anunciou que contratará os trabalhadores para as funções centrais sem a garantia de emprego “por toda a vida”. Também determinou a revisão do sistema de salário por antiguidade e o estabelecimento de uma nova forma de pagamento baseada nos méritos individuais do modelo liberal ocidental. Estas mudanças poderão ter consequências no mundo do trabalho japonês, acarretando uma crise no seu modelo sindical.

Contudo, a superação desse modelo implica grandes desafios para o sindicalismo classista. Ela passa pela incorporação dos trabalhadores das pequenas e médias empresas e dos operários avulsos (terceirizados) das grandes empresas monopolistas, que não possuem nenhum direito e ganham bem abaixo dos poucos que se beneficiavam do sistema nenko. Passa pela ação entre as mulheres, os jovens, aposentados e imigrantes – segregados no mercado de trabalho. É preciso, em primeiro lugar, que os trabalhadores conscientes ponham fim ao dualismo transplantado do mercado de trabalho para dentro dos sindicatos. E, depois, derrubem a própria condição que permite (e reproduz) o dualismo no mercado de trabalho e a dominação dos trabalhadores: as relações de produção capitalistas.

* Artigo publicado originalmente na revista Debate Sindical, nº18, abril/jun de 1995, publicada pelo Centro de Estudos Sindicais. 

** Augusto César Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e a Editora Anita Garibaldi.

 

Notas 

(1) STORRY, G. R. Japão: Anos de Triunfo.In:História do Século 20, n.3, p.81.

(2) JUOSTOV, V. M.; ZUBOK, L. I. História Contemporânea, p.134,

(3) COLE, G. D. R. História do Pensamento Socialista, vol.4, p.313.

(4) SIMS, R. Japão: A frente interna. In:História do Século 20, n.69, p.2095.

(5) MARTINET, Gilles. Sept Syndicalismes, p.191.

(6) IDEM, p.195.

(7) BÉRAUD, B. La Izquierda Revolucionaria en el Japón, p.59.

(8) WATANABE, B. Toyotismo: Um novo padrão mundial de produção?In:Revista dos Metalúrgicos, n. 1, dezembro de 1993, p.10.

(9) BÉRAUD, B. La Izquierda Revolucionaria en el Japón, p.160.

(10) MARTINET, G. Sept Syndicalismes, p.198.

(11) IDEM, p.198.

(12) IDEM, p.196.

(13) IDEM, p.193 e WATANABE, B. Toyotismo: Um novo padrão mundial de produção?, p11.

(14) IDEM, p. 193.

(15) IDEM, p.194 e WATANABE, p. 4.

(16) IDEM, p.199.

(17) CORIAT, Benjamin. Pensar pelo Avesso, p.86.

(18) WATANABE, B. Toyotismo: Um novo padrão mundial de produção?, p.5.

(19) IDEM, p.11.

(20) BÉRAUD, B. La izquierda Revolucionariaen el Japón, p.162.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

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