Descobri mais sobre meu pai em seus últimos três meses do que em toda minha vida. As circunstâncias da morte de meu avô em Penedo, a infância dolorida alimentada por pombos em São Paulo e as memórias, de meu pai e minhas tias, da dolorosa travessia de Alagoas para São Paulo. A coragem de minha avó, recém viúva, ao colocar todos os filhos em uma viagem duríssima em busca de vida melhor em São Paulo.

Em seu velório, ouvi histórias fantásticas sobre o orgulho que mantinha dos filhos. A vontade de conhecer a própria terra, a honra do homem que, duro demais com a família, criara outra vida com a comunidade do Grajaú em São Paulo. Foi pai para tantos outros. Descobri também que, como eu, ele falava pouco sobre as angústias da vida.

Prometi ao meu velho que visitaríamos, todos juntos, sua terra natal, assim que saísse do hospital. Bem perto do fim disse que iria de qualquer forma. Ele tinha uma curiosidade comovente sobre sua terra.

E cá estou eu poucos meses depois desse diálogo. Chegando ao barco que faria a travessia entre Sergipe e Alagoas, pelo “Velho Chico”, pensei ainda mais no meu pai enquanto estava hipnotizado por Lula, que olhava emocionado aquela imensidão de rio. Pensei nas semelhanças entre os dois e no quanto Lula carrega em si um pouco de todos os brasileiros que, como diria meu pai, não têm tempo pra ficar tristes.

Meu pai nunca demonstrou toda tristeza que sentia pela afastamento dos filhos. Tivesse demonstrado, provavelmente esse afastamento seria menor. Criou pra si uma armadura que lhe garantiu sobreviver a infância miserável e à juventude sofrida. Meu pai virou homem com uma mulher forte e irmãos generosos, unidos até hoje. Mas trazia a dureza daqueles que por quase toda vida apenas sobreviveu. Viveu pouco. E nos momentos de felicidade parecia nem saber direito como se comportar. O àlcool (fuga da euforia da dura ou feliz realidade) foi mais parceiro que os filhos.

Minha mãe certamente engoliu o choro outras tantas vezes, enquanto faxinava a casa de alguma madame e rezava em silêncio para que Deus iluminasse a filha que, aos treze anos cuidava sozinha dos seus irmãos mais novos. Duvido que minha avó tenha tido tempo de sofrer a viuvez precoce enquanto atravessava o país de trem, ônibus e caminhão, com filhos e meu pai em seu colo.

Quantos e quantas, principalmente mulheres, abriram mão de sofrer a própria tristeza por falta de tempo. Pela necessidade de lutar pela próxima refeição para os filhos. Essa é uma história comum nesse país tão injusto.

Lula parece ter criado para si um personagem parecido. Assim como meu velho e as mulheres da minha vida, Lula “não tem tempo pra ficar triste”. A impressão que tenho é que vive aos poucos o luto de Dona Marisa. De vez em quando se pega pensando, lembrando e embarga a voz. Para logo em seguida seguir em frente.

É uma pena que uma parte do Brasil, que apenas odeia Lula e tudo que ele representa, não possa enxergar essa viagem de Lula com os olhos de quem vai até o ex presidente tocá-lo, abraçá-lo ou simplesmente agradecê-lo. A maioria nunca foi beneficiada por um programa social do governo, mas dizem que a vida deles nunca foi tão boa. Uma demonstração tão comovente de carinho e afeto é tratada por esses setores da sociedade como alienação ou, pior, clientelismo barato. Quando é na verdade o contrário.

Os milhares de “Silvas”, como meu pai, que dependiam da boa vontade de coronéis pra trabalhar, de forma quase escrava e por quase cinco séculos, ganharam liberdade para mandar ao diabo uma oligarquia rural que determinava quem vivia e morria no Brasil profundo. Quem poderia ficar na terra e quem deveria cruzar os céus do Brasil e se aglomerar nos grandes centros.

Ao final e ao cabo, fiquei miseravelmente feliz com o fato da doença que vitimou meu velho ter me dado tempo de vê-lo chorar, reconciliar-se com minha mãe e com os filhos. Lamento que ele não estivesse naquele barco comigo hoje, no cemitério, na igreja maravilhosa da família Lemos que está ali há quase trezentos anos e foi, provavelmente, frequentada por meus antepassados. E poder tomar aquela gelada às margens do Velho Chico ao lado do Wagnão, presidente do sindicato que ele ajudou a construir no ABC paulista.

Lamento profundamente o que tem passado o maior líder popular do meu tempo. Lamento ele ser tão “povo” brasileiro em seu sofrimento. Lamento ele também não ter tempo pra ficar triste pela perseguição contra si e contra seus filhos, pela triste circunstância da morte de sua esposa, pela perda de amigos tão próximos e queridos e pela doença de outros. Torço para que, nos momentos mais duros, o carinho do povo seja o suficiente para confortá-lo, como espero ter confortado meu pai nos seus piores momentos.

Não deve ser fácil, sobretudo, ver parte da sua obra sendo tão atacada. As tentativas de fechar universidades e tirar dinheiro dos programas sociais devem lhe doer tanto quanto suas outras dores.

Espero que Lula ache um tempinho pra sofrer. E espero que depois siga sendo essa fortaleza desencontrada e imperfeita de sonhos e esperanças, que pode colocar em movimento, novamente, a energia do povo brasileiro para escrever a própria história. Para que tantos outros “Antonios” possam viver com felicidade na própria terra, junto com seu próprio povo. E sobretudo tenham um tempinho pra sofrer e ficar triste.

Em Penedo existe agora um campus da Universidade de Alagoas. Existem famílias que, graças aos programas sociais criados por ele, romperam o miserável e desgraçado ciclo da fome, que perdurou por gerações. O seguro safra e o incentivo a produção dos pequenos produtores tirou a exclusividade do cuidado com a terra do latifundiário. Mas, desgraçadamente, essas são políticas descartáveis para parte da sociedade brasileira.

A linda cidade de Penedo passou por transformações profundas. Assim como o Brasil. Ninguém precisa gostar de Lula ou achá-lo perfeito para perceber isso.

Publicado em Agência FPA