Em abril de 1945, a Itália foi libertada das tropas nazifascistas. Grande parte da responsabilidade por esse feito memorável coube aos partisans, organizados pelos comunistas. Esse fato – ao lado do papel decisivo desempenhado pelo Exército Vermelho na derrota da Alemanha hitlerista – trouxe ao PCI um enorme prestígio e Palmiro Togliatti era o seu líder incontestável.

Antes mesmo da libertação, Togliatti havia sido indicado ministro sem pasta do governo Badoglio. Manteve-se firme nos governos seguintes. Contudo, o clima de união nacional antifascista começou a desvanecer a partir de 1946. Embora o fascismo tenha sido derrotado, a influência da igreja católica continuava sendo muito forte. O papa Pio XII era profundamente anticomunista e em torno dele se aglutinaram todos os setores conservadores, inclusive antigos simpatizantes de Mussolini. 

No plebiscito de dois de junho de 1946 convocado para decidir sobre a manutenção da monarquia ou instauração da República, a última opção ganhou por 54% dos votos contra 45,7%. Surpreendentemente, a diferença fora muito pequena, especialmente tendo em vista que a monarquia havia sido uma das responsáveis pela chegada ao poder, e permanência, do fascismo.

Contudo, na eleição para a Assembleia Nacional Constituinte, ocorrida no mesmo período, a esquerda teve votação expressiva. A Democracia Cristã (DC) ficou com 35% dos votos, o Partido Socialista com 20% e o PCI 19%. Os dois partidos, somados, perfizeram 40% daquela assembleia. O principal dirigente do PSI, Pietro Nenni, era um militante da resistência e aliado dos comunistas. Ainda havia outros grupos antifascistas e de centro-esquerda comprometidos com uma plataforma democrática e social avançada. Essa correlação de forças garantiria, em dezembro de 1947, a aprovação de uma Constituição progressista.

A Guerra Fria, confrontando o campo socialista e imperialista, ameaçava colocar o mundo diante de uma nova guerra. O seu marco inicial foi o discurso do ex-primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, na cidade estadunidense de Fulton, em 5 de março de 1946. A arenga belicista de Churchill correspondia plenamente aos interesses do novo governo dos Estados Unidos, encabeçado por Harry Truman.

Como parte dessa ofensiva, visando a conter o comunismo, Truman lançou o Plano Marshall de “ajuda” econômica aos países europeus destruídos pela guerra. O preço cobrado por essa colaboração seria a subordinação política ao imperialismo estadunidense. O objetivo era construir uma Europa pró-americana e antissoviética.

No começo de 1947, o presidente do Conselho de Ministro, Alcide De Gasperi, viajou aos Estados Unidos para discutir a implantação do Plano Marshall na Itália. Passado pouco tempo do seu retorno da terra do tio Sam, ele demitiu os ministros comunistas. Rompia-se assim a ampla aliança antifascista construída durante o movimento de resistência. Aquela havia sido uma imposição dos Estados Unidos. Mudanças estavam se operando rapidamente na política interna italiana do pós-guerra.

Era nítido o aumento na escalada repressiva contra o movimento operário. O governo mais que duplicou o efetivo policial: de 30 mil, em julho de 1947, passou para 70 mil em janeiro de 1948. Os suspeitos de terem relações com a esquerda socialista ou comunista foram sumariamente afastados da corporação. As classes dominantes, com forte apoio externo, estavam se preparando para uma guerra. Contudo, a existência de uma Assembleia Constituinte com uma expressiva participação da esquerda impunha certos limites à ação discricionária do governo democrata-cristão.

Em 1º de maio de 1947, uma manifestação pacífica de camponeses na Sicília foi desbaratada a tiros de metralhadora. Onze trabalhadores morreram e 27 ficaram feridos à bala, no que ficou conhecido como Massacre de Portella della Ginestra. A autoria do crime coube ao bando de Giuliano, a mando dos grandes proprietários rurais. Com aquele atentado visavam a intimidar a atuação do Partido Comunista na região.

Finalmente, no mês de janeiro de 1948, começou a vigorar a nova Constituição. O próximo passo seria realizar eleições para a Câmara dos Deputados e o Senado. Elas ocorreriam no dia 18 de abril em meio ao agravamento do confronto ideológico. O cenário era bem diferente do existente em 1945, quando ainda predominava o espírito da União Nacional antifascista.

O PCI e o PSI forjaram uma aliança político-eleitoral intitulada Frente Democrática e Popular (FDP), cujo símbolo era a figura de Giuseppe Garibaldi, herói da unificação italiana. Em torno da Democracia Cristã (DC) se congregaram todas as forças conservadoras e reacionárias do país. A poderosa máquina do Vaticano mobilizou-se para a guerra. Todos aqueles que votassem nos comunistas estavam ameaçados de padecer no inferno, segundo os padres e bispos. A excomunhão seria mobilizada como poderosa arma política.

Quando a maioria do Partido Socialista decidiu pela manutenção da aliança com os comunistas, a sua ala direita, dirigida por Giuseppe Saragat, fundou o Partido Socialista Democrático Italiano (PSDI) de tendência socialdemocrata. Ele se aliaria à Democracia Cristã e se incorporaria de corpo e alma à cruzada anticomunista. O movimento da socialdemocracia tradicional à direita ocorreu em toda a Europa.

 

(Foto: Propaganda anticomunista da eleição de 1948 na Itália)

Montou-se uma gigantesca campanha de propaganda anticomunista, não vista desde o tempo do domínio nazifascista. Tudo financiado pela grande burguesia, os latifundiários e o governo estadunidense. Este último ameaçava abertamente com a cessação de toda ajuda econômica para a reconstrução italiana, e secretamente preparava a secessão da Sicília e o início de uma guerra civil, caso ocorresse uma vitória eleitoral da esquerda. O clima reinante era de terror.

Toda essa pressão surtiu efeito. Quando foram abertas as urnas, a democracia cristã havia conquistado 48,5% dos votos para a Câmara dos Deputados contra 31% obtidos pela FDP. O mesmo se repetiu no Senado. Desde a eleição da Assembleia Constituinte, ocorrera uma corrosão do eleitorado de esquerda. Formou-se então um governo de centro-direita, encabeçado por De Gaspari.

 

Propaganda anticomunista da eleição de 1948

Muitos autores acreditam que dificilmente as potências imperialistas permitiriam a existência de um governo comunista-socialista no coração da Europa às vésperas de criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). A vitória daquela coligação teria desencadeado uma guerra civil e a intervenção militar anglo-americana.

Ganhava corpo a proposta de colocar os comunistas na ilegalidade, como ocorrera no Brasil. Mas a força que o PCI tinha na sociedade italiana impedia que tais ideias prosperassem. O Partido tinha naquele momento mais de dois milhões de membros e era o maior em número de filiados – quase o dobro da Democracia Cristã. Não seria fácil abatê-lo. Só havia uma maneira para que isso viesse a ocorrer: se o próprio PCI cometesse algum erro grave, perdesse a cabeça, e partisse para uma aventura. Por isso, pensava a burguesia, era preciso provocá-lo de todas as maneiras.

No dia 10 de julho de 1948, reagindo à aliança estabelecida entre os governos italiano e dos Estados Unidos contra o Bloco Socialista, Palmiro Togliatti fez um polêmico discurso na Câmara dos Deputados. Da tribuna afirmou: “Caso o nosso país seja arrastado pelo caminho que leva à guerra, nós sabemos qual será o nosso dever. À guerra imperialista se responde com a revolta, com a insurreição em defesa da paz, da independência, do futuro do próprio país”. Ou seja, faremos como os partisans durante o governo de Mussolini e a ocupação alemã.

A onda de ataques ao PCI e ao seu secretário-geral cresceu geometricamente, eram acusados de traição à pátria e de terem se vendido à URSS. A polícia se tornou mais petulante, aumentando as repressões às greves e manifestações populares. Grupos fascistas começaram a levantar a cabeça. Sedes do Partido Comunistas foram ameaçadas de depredação. Um dirigente do PSDI, pelo jornal, conclamou que Togliatti e seus camaradas fossem colocados diante de um muro (para serem fuzilados), e concluía: “não apenas no sentido figurado”. Nesse momento não se pregava apenas colocar os comunistas na ilegalidade, mas sua eliminação física. Foi nesse clima radicalizado que ocorreu o atentado a Togliatti. 

Dias de cólera 

 

As notícias diziam que o estado de saúde do líder comunista era muito grave. Dificilmente sobreviveria. Haviam sido três tiros: um atingiu de raspão a cabeça, mas outro lhe perfurou os pulmões. 

A reação popular foi imediata e de caráter insurrecional. As ruas das principais cidades foram tomadas por multidões revoltadas. Empresas e prefeituras ocupadas. Sedes dos partidos de direita atacadas. Greves eclodiram espontaneamente. Ocorreram confrontos violentos com a polícia. Crescia o número de feridos e apareceram os primeiros mortos. Visando a recuperar o controle da situação, a Confederazione Generale Italiana del Lavoro (CGIL) decretou greve geralne buscou dar-lhe direção. Mais de sete milhões de trabalhadores atenderam ao chamamento e cruzaram os braços.

 

Em Genova 50 mil pessoas se manifestaram e começaram a erguer barricadas visando a se protegerem dos ataques da polícia. A combativa cidade de Turim paralisou completamente. Retomando seus velhos métodos de luta, os operários ocuparam as fábricas. Em Roma, populares tentaram assaltar o Palácio Gizi, sede do governo. Crescia o clamor pela derrubada do governo De Gasperi, responsabilizado moralmente pelo atentado.

A repressão determinada pelo ministro do interior, Mário Scelba, foi extremamente violenta. Os manifestantes foram dispersos à bala. A fim de justificar a repressão, nos porões do poder forjou-se o fantasioso Plano K. Tratava-se, supostamente, de um complô arquitetado pelos comunistas visando à tomada do poder. Aqui no Brasil, para justificar a implantação do Estado Novo, Getúlio Vargas utilizou como álibi o Plano Cohen, forjado pelos integralistas. Tudo indicava que a Itália submergiria numa guerra civil sangrenta com consequências imprevisíveis.

 

O estado de saúde de Togliatti era preocupante, mas começava a dar sinais de melhoras. Mal recuperou a consciência, ele deu um conselho aos seus camaradas: “é preciso não perder a cabeça” e evitar cair em provocações. Aquela diretiva foi imediatamente enviada aos demais dirigentes partidários e dos sindicatos. Um dia após o atentado, o Comitê Central se reuniu extraordinariamente e decidiu que não era o momento e nem havia condições para uma insurreição vitoriosa. Qualquer aventura desse tipo favoreceria a reação. Em 16 de julho, a CGIL propôs o fim da greve geral. A informação de que Togliatti estava fora de perigo e se recuperando bem acalmou as massas.

Ainda na cama do hospital,o secretário-geral do PCI fez um importante pronunciamento ao povo italiano, transmitido nacionalmente através da rádio: “em breve estarei no meu posto de trabalho”. No dia 17, a agitação operária praticamente estava encerrada. O resultado trágico daqueles dias de violentos confrontos foram vinte mortos e centenas de feridos. Alguns dias depois, Togliatti recuperado reaparece e discursa na festa anual do jornal comunista L’Unità. Mais de meio milhão de pessoas se reuniram para ouvi-lo.

Os planos da reação clerical-burguesa continuaram em marcha na Itália. O próximo capítulo foi a divisão do movimento operário e sindical. Em outubro de 1948, os sindicalistas católicos romperam com CGIL, central sindical unitária fundada em 1943, e criaram a Confederazione Italiana Sindacati Lavoratori (CISL). No ano seguinte, em junho, os socialdemocratas fundaram a Unione Italiana del Lavoro (UIL). Esse não era um fenômeno local e isolado. Ainda em 1949 foi criada a Confederação Internacional de Organizações Sindicais Livres (CIOLS) visando a se contrapor à Federação Sindical Mundial (FSM), com forte influência comunista.

O Vaticano seguiu firme na sua marcha contra o marxismo ateu. Um decreto do famigerado Santo Oficio – publicado em junho de 1949 – determinou: “São excomungados como apóstatas os fiéis que professam a doutrina do comunismo materialista e anticristão, e antes de tudo aqueles que a defendem e fazem a sua propaganda.” O Vaticano, que durante décadas silenciara diante dos crimes do nazismo, agora decidia excomungar os trabalhadores comunistas. 

Segundo os dados do Secretariado Nacional do Partido Comunista da Itália, ao longo dos seis anos que Mário Scelba comandou o Ministério do Interior, entre 1947 e 1953, a polícia matou mais de cem trabalhadores e deixou milhares de feridos. Cento e quarenta e oito mil militantes foram detidos e 61.243 deles sentenciados. A maior parte das vítimas do Estado italiano pertencia ao PCI. Isso nos dá um quadro da atividade repressiva em curso numa das principais democracias burguesas ocidentais durante os anos da guerra fria.  

* Augusto Buonicore é historiador, mestre em Ciência Política pela Unicamp e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.