Em texto publicado na sessão Opinião do jornal Folha de S.Paulo de 19 de março de 2019 intitulado “Por que uma Secretaria da Família?”, a autora, jurista ligada ao Opus Dei, se esmera em mostrar que “o serviço não é uma intromissão na vida privada”, o que, além de mentira, também é um problema. Por ora, ignoremos que a secretária apequena a noção de política pública na de “serviço”. Não se trata de um erro. O texto todo se mostrará bastante coerente com esta visão privatista, tratando o Estado como empresa e reduzindo o bem-comum a uma mercadoria. O que parece ser um deslize, revela, na verdade, uma concepção de sociedade perigosa especialmente para as mulheres, sobretudo as trabalhadoras e de extratos mais pobres.

Mas voltemos. Mentira porque, se for para não haver interferência, não há porquê haver secretaria que leve este nome. E problema porque o Estado não só pode como deve se intrometer na vida privada, desde que para proteger cidadãos e garantir direitos — do contrário, vamos retroceder ao velho “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, no 5º país em mortes violentas de mulheres do mundo. 

O que o Estado não pode fazer é legislar sobre afetos, arranjos familiares e diferentes formas de exercício da sexualidade, o que uma mulher adulta faz com a o próprio útero, estes, sim, temas de foro íntimo, que, como tal, devem estar, em geral, apartados da regulação estatal. A questão toda reside em que tipo de interferência o Estado irá praticar na vida dos cidadãos e com quais finalidades. E o que o texto da secretária é precisamente o oposto do que propugnam nossos valores constitucionais. Ângela Gandra defende um Estado que é mínimo para proteger segmentos vulneráveis ou promover equidade social, mas máximo para vigiar alcovas e garantir a reprodução do capitalismo.

Não é puramente a moralidade retrógrada que norteia a secretária. O texto deixa bem clara sua visão de que “é ostensiva a relação entre equilíbrio familiar e produtividade […] já que a instabilidade afetiva dificultava o rendimento laboral”. Ou seja, a nova secretaria surge, sobretudo, para garantir a plenitude da exploração do capital. Atrás dessa cantilena sobre família como base da sociedade, dos valores e do afeto, se escondem algumas verdades inconvenientes que Ângela finge ignorar. 

O capital necessita do trabalho reprodutivo, sem o qual a realização do trabalho produtivo, que gera lucro, não seria possível. Este trabalho é realizado, em sua grande maioria, por mulheres, no espaço privado, de maneira não remunerada: lavar, passar, cozinhar, parir a criar filhos, cuidar dos idosos e dos doentes, são algumas das inúmeras tarefas que povoam a jornada da maioria das brasileiras, sobretudo as trabalhadoras e de extratos mais pobres. Dito de forma simples: para que um operário vá para a fábrica de manhã gerar mais-valia para o patrão, é necessário que esteja minimamente saudável, vestido, limpo e alimentado, ao mesmo tempo, enquanto isso, seus filhos (futuros trabalhadores) serão cuidados e alimentados por alguém, geralmente uma mulher, que realiza este trabalho indispensável sem receber nada, além de amor. Ou seja, o trabalho doméstico é necessário para a geração de mais-valia e reprodução do capital, e a família não é apenas o espaço de sociabilização e afetividade, mas também onde há exploração do trabalho, opressões de diversos matizes e até violências. E é sobre esses temas que deve incidir o Estado. Ele deve promover o bem-estar e a equidade de gênero com políticas que aliviem a dupla jornada de trabalho que as mulheres têm, nunca o contrário.

Com o avanço do ultraliberalismo e o consequente desmonte do Estado e das políticas públicas voltadas ao cuidado do cidadão, o que o capitalismo – e a secretária da família expressa isso claramente – precisa é que as famílias assumam os trabalhos de cuidados que o Estado provinha, para que este possa garantir polpudas remessas de lucros ao capital financeiro. O projeto ultraliberal do governo Bolsonaro de liquidação da Educação, Saúde e Previdência públicas representarão um impacto enorme na vida das mulheres, que, não tendo mais possibilidades de trabalhar fora devido à sobrecarga de trabalho em casa e aliado à deterioração das relações trabalhistas, passarão, cada vez mais, exclusivamente ao trabalho doméstico. Um retrocesso de mais de cem anos. Mas ela escamoteia todo esse imenso drama humano com uma frase de efeito: “Os grandes temas da Secretaria da Família serão, portanto, a projeção social e econômica da família, o equilíbrio trabalho-família e a solidariedade intergeracional.” As famílias serão obrigadas a se rearranjarem por conta da profunda crise econômica e desemprego, com imenso prejuízo para as mães, avós, que arcarão com ainda mais responsabilidades.

A secretaria possui um papel ideológico: promover um ideário específico de família, em detrimento de todos os outros que floresceram nos últimos anos, que funcione melhor às necessidades do capitalismo em sua fase atual, financeirizada, de pouco consumo de mão-de-obra, muito desemprego e pouco Estado. Isso implica na negação, especialmente, dos direitos da mulher à emancipação e ao trabalho. Também do direito da comunidade LGBT, negros e outros segmentos sociais vulnerabilizados. A secretaria pretende que a família seja o escoadouro de todas as demandas construídas ao longo de anos de luta política de segmentos historicamente oprimidos, já que “já que muitos problemas sociais podem ser evitados com o devido protagonismo da família, desde o preconceito à violência, passando pelos desequilíbrios afetivo, que, em muitos casos, fundamentam o recurso a drogas e outros subterfúgios.” Ou seja, caberá à “família” resolver tudo: do resfriado ao déficit de aprendizagem, passando pelo desemprego e o alcoolismo, machismo, racismo e homofobia. Hoje, 40% das famílias são chefiadas por mulheres e na quase totalidade dos outros 60% são elas as principais responsáveis pelo trabalho reprodutivo. Não é difícil imaginar o que a falta de Estado e a política “familista” do Opus Dei farão com a autonomia e a vida de milhões de brasileiras. 

“Muitos podem se perguntar se pensar sobre a família a partir do governo não significaria uma intromissão na esfera privada. Se esta fosse a perspectiva, provavelmente o plano seria contrário à liberdade. Porém, a proposta é diametralmente oposta.” Em mais de 500 palavras, a jurista não conseguiu dizer o porquê. Mas entre circunlóquios e platitudes neoliberais, nas entrelinhas, fica claro que a única liberdade que ela defende é a do capital.

*Mariana R. Venturini é vice-presidente da União Brasileira de Mulheres (UBM) e membro do Comitê Central do PCdoB.