A pandemia da covid-19 trouxe algumas “revelações” para o Brasil, que foi colocado diante do próprio espelho. A nação alienada viu a classe média, as elites, a mídia e, pior, o governo, descobrirem horrorizadas a pobreza que atinge grande parte da nossa classe trabalhadora informalizada, que eufemisticamente passaram a chamar de os invisíveis. Pós pandemia o que será feito? Assumir que só com uma renda básica de cidadania vamos enfrentar a questão da miséria e da pobreza em um mercado de trabalho incapaz de absorver aquela parcela da população, ou vamos, novamente, torná-la invisível?

Outra descoberta importante foi a valorização do papel da ciência, dos cientistas e especialistas e das instituições formadoras e produtoras de C&T no país. Embora reconhecidos mundialmente por suas ilhas de excelência e participação em redes mundiais de produção cientifica, os cientistas brasileiros foram até agora desconhecidos pela população e desprezados pelos governos recentes, em especial por aqueles governantes que acreditam que a terra é plana, a escravidão fez um bem enorme para os negros e que gênero e sexo não se diferenciam, entre outras barbaridades. Para uma sociedade que aprendeu, equivocadamente, a identificar conhecimento e ciência com aquilo que é produzido no exterior, tem sido uma grata surpresa entender como trabalham virologistas, epidemiologistas, gestores e sanitaristas. Até agora havia o predomínio do discurso econômico como expressão da ciência e das instituições de excelência, mesmo como seus sucessivos fracassos em questões de previsões.

Seguramente a mais importante revelação é a descoberta do Sistema Único de Saúde – SUS e da sua importância para o enfrentamento da pandemia, já que é um sistema público e universal, com enorme capilaridade com serviços espalhados em todo território nacional. Por isso, é o maior recurso que o país tem no enfrentamento da pandemia, cuja importância é reconhecida por especialistas em todo o mundo. Para se ter uma ideia, o SUS atende em sua rede a mais de 70% da nossa população, chegando a cerca de 90% em regiões como Norte e Nordeste. Mais importante ainda é eliminar a superstição elitista de que só os pobres dependem do SUS, já que todos nos beneficiamos de vacinas, vigilância sanitária de produtos e estabelecimentos, protocolos e normas para liberação de medicamentos, produção epidemiológica de estatísticas e estudos sobre a ocorrência de enfermidades, controle de enfermidades contagiosas, etc.

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Conhecer o sistema de saúde em suas várias funções é fundamental, ainda mais depois de a população passar anos assistindo às denúncias de mazelas no atendimento público nos telejornais – no café da manhã, no almoço e no jantar – e nas notícias de todos os grandes jornais impressos, sem jamais permitirem o aprofundamento do debate, para que especialistas pudessem discutir o financiamento e gestão do SUS. A mídia esteve fechada na defesa da EC 95, que estabeleceu um absurdo teto de gastos sociais por 20 anos, quando os gastos com educação e saúde já estavam defasados das necessidades para atender à população. Também não noticia sobre a ADIN, que ainda se encontra pendente de julgamento no STF, pela qual se questiona a legalidade da redução dos gastos sociais, em face dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e dos preceitos da própria Constituição Federal de 1988. Esses mesmos jornais e TVs jamais mencionaram que, como consequência, só em 2019 foram subtraídos do SUS mais de 20 bilhões de reais, e muito menos colocam em questão a destinação desses recursos para o pagamento dos juros da dívida. Seguem, assim, ignorando as questões estruturais que opõem os interesses da cidadania aos interesses da especulação financeira, embora sejam hoje grandes defensores do SUS no combate à pandemia e no enfrentamento às orientações descabidas e desnorteadoras do governo federal. A ausência de uma auto crítica sincera por parte jornalistas-âncoras e dos meios de comunicação em relação a suas equivocadas posições anteriores, bem como a falta de profundidade em relação ao tratamento dos problemas de política pública e dos direitos sociais, deixa uma sensação de insegurança em relação aos propósitos recentes de defesa da ciência e da saúde pública. Gato escaldado…

Quando a nação brasileira se reconcilia com o SUS, o que deveríamos esperar seria o fortalecimento da política de saúde, o reconhecimento do papel heroico dos profissionais de saúde – que ganham salários ínfimos para salvar nossas vidas e que deveriam ter carreiras de Estado dignas e asseguradas para o bom exercício de suas funções -, a imediata revogação do teto de gastos absurdamente imposto para subtrair recursos das políticas sociais, o fortalecimento da atenção primária como porta de entrada do sistema, ao invés de apenas se preocupar com os hospitais e UTIs, enfim, um enorme movimento de revigoramento do SUS em todas suas atribuições e capacidades.

Paradoxalmente, é nesse momento que o SUS e todas as políticas de saúde se encontram mais fragilizadas! Fica claro que um golpe, não é questão de se ou quando, já ocorreu na saúde. Algumas evidências:

  1. No auge da pandemia, um general caiu de paraquedas no Ministério da Saúde e ali instalou 25 militares em postos essenciais para a condução das políticas de saúde, todos eles sem qualquer experiência técnica na área de saúde. Sua missão não é combater a pandemia, mas subordinar o SUS, uma política de Estado ao governo de Bolsonaro. Isso fica claro na apresentação pública das supostas autoridades sanitárias, dividindo o símbolo do SUS com os símbolos nacionais sequestrados pelo governo e seus apoiadores. Pior que tentar associar o SUS ao governo de plantão, é a convivência nefasta do símbolo do SUS, que se associa à luta para salvar vidas, com a caveira atravessada por uma espada, símbolo da morte.
  2. Depois de diagnosticar a pandemia como uma gripezinha, receitar o uso de medicamento que não tem comprovação científica e buscar jogar a população e empresários contra os governadores que decretaram isolamento social, o Presidente decidiu assumir o Ministério da Saúde. Depois de demitir o Ministro Mandetta, que alcançara popularidade na condução transparente da divulgação dos dados da pandemia e de ensaiar um novo Ministro Teich, cuja curta duração não nos permite dizer porque saiu ou porque entrou, Bolsonaro finalmente se apropriou do Ministério da Saúde, ocupando seus cargos com quadros do Exército. Encontrou, nos dirigentes despreparados e submissos a suas idiossincrasias, verdadeiras marionetes que passaram a cumprir suas ordens estapafúrdias em plena curva ascendente de contágios e mortes.
  3. O Ministro Interino da Saúde apoiou abertamente o presidente, acompanhando-o no contato com seus apoiadores em manifestações, em franca contradição com as normas sanitárias de isolamento impostas pelas autoridades subnacionais, em Estados, Municípios e Distrito Federal. Um crime de ameaça à saúde pública que vem sendo sistematicamente tolerado.
  4. O Ministério da Saúde lançou uma nota técnica, inicialmente apócrifa, recomendando o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina em pacientes com covid-19 no SUS, desde fases precoces até casos graves, conforme orientação presidencial e do médico que vai prescrever, em total contradição com os estudos científicos existentes até o momento.
  5. Em acordo dos governos do Brasil e Estado Unidos, o país recebeu 2 milhões de comprimidos de cloroquina doados por Trump, para que brasileiros sirvam de cobaia e sejam testados na profilaxia e tratamento inicial da covid-19. Não há qualquer indicação de que tais experimentos seguirão normas éticas e protocolos científicos.
  6. Foi extinto o serviço de saúde mental para presidiários com transtornos mentais, sem qualquer justificativa técnica e sob críticas do STJ, que apontou os danos que essa medida causará no sistema prisional. Algo a ver com uma vingança contra o fato de Adélio Bispo ter sido considerado portador de transtorno mental e não ser parte de um complô político?
  7. Por perseguição do Presidente foram exonerados os técnicos do Ministério da Saúde que assinaram a nota sobre saúde sexual e reprodutiva, alertando para a necessidade das mulheres, mesmo durante a pandemia, não interromperem seus tratamentos nessa área. Na nota censurada enfatizavam a necessidade de que as unidades do SUS difundam informações sobre os métodos contraceptivos, garantam a oferta do DIU e da pílula do dia seguinte em caso de violência sexual, que vem aumentando no período de isolamento, situações nas quais é garantido o aborto legal.
  8. Por determinação superior o Ministério da Saúde provocou um apagão na base de dados sobre a incidência da covid-19, depois de sucessivos atrasos na divulgação diária dos dados. Segundo o Presidente, para evitar que fossem matéria no Jornal Nacional, passaram a ser divulgados por volta das 22 horas. Com a reação da emissora que interrompeu a transmissão da novela, com maior índice da audiência para divulgar os dados, o Ministério alterou a forma e o conteúdo da base da dados. Ao invés de divulgar diariamente os resultados dos mortos confirmados no dia, mesmo que o óbito tenha ocorrido em dias anteriores e só então tenha sido confirmada a causa (como ocorre em outros países), passou a divulgar apenas os casos de mortes daquele dia. Assim, os que morreram anteriormente e os que morreram no dia, mas só teriam sua causa de óbito confirmada posteriormente foram burocraticamente “ressuscitados” pelo Ministério da Saúde. Dessa forma, pretendiam evitar manchetes nacionais e internacionais sobre o número de mortos, que ultrapassa 1000 por dia! Ordem judicial do STF exige a volta ao sistema anterior de computação dos casos, mas a desmoralização do sistema de informação do Ministério da Saúde já se consolidou. Imprensa, pesquisadores e gestores estaduais de saúde passaram a fazer suas próprias divulgações, com base no sistema de informações do SUS, que é descentralizado.
  9. O federalismo tem sido acusado de ser um sistema inadequado para a tomada de decisões rápidas, em situações de grandes ameaças como a pandemia atual. O SUS é um sistema federativo descentralizado na sua autoridade e execução e pactuado em relação à produção de normas e coordenação entre as três esferas de governo. A reafirmação, pelo STF, da autonomia dos entes subnacionais para tomar as medidas necessárias ao enfrentamento da pandemia tem permitido que prefeitos e governadores busquem estratégias de preservação da vida dos cidadãos, mesmo sendo permanentemente sabotados por informações contrárias vindas da presidência. Não podendo interferir diretamente nas redes locais de saúde, Bolsonaro conclamou suas hostes, provavelmente armadas, a invadirem os hospitais para verificarem a existência de leitos vagos, o que provaria, segundo sua lógica, a inflação de dados sobre as mortes ocorridas no país. Essa incitação à violência e desrespeito às leis vem se somar a outras mais, em um crescendo que estampa, mundialmente, a impotência da autocracia para enfrentar a devastação provocada pelo descontrole da pandemia.

Por todas essas evidências, fica claro que ocorreu um golpe na saúde, o que só vem provocando mais mortes. A destruição do respeito ao sistema de informações em saúde, tão importante para a tomada de decisões nas políticas de saúde, a eliminação de políticas setoriais que foram parte das conquistas de defensores de mulheres e de direitos humanos, a intromissão política na distribuição de medicamentos e de protocolos em relação ao uso de fármacos, são golpes mortais no SUS que a democracia construiu sob o lema de “Saúde é Democracia – Democracia é Saúde”. Alguém duvida que o contrário seja a elegia da caveira, uma verdadeira necropolítica?

* Sonia Fleury é Doutora em Ciência Política e Pesquisadora Sênior do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fundação Oswaldo Cruz. Coordenadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco do ICICT/FIOCRUZ (http://wikifavelas.com.br/)

Fonte: OutrasPalavras