Admita-se que muita gente ache difícil dissociar as recentes decisões do ministro Alexandre de Morais em relação ao Twitter e Facebook, de imagens e elucubrações que se possa fazer quanto às suas recônditas intenções, considerando sua biografia política e jurídica. Provavelmente essas decisões não passem mesmo de expressão, na superfície da atual asquerosa política brasileira, de disputas de poder que se travam em profundidades que mal podemos e menos ainda desejamos divisar…

Porém, essas decisões, se ignorarmos os (maus) atores no palco e admirarmos o teatro da cena, trazem à tona as profundas contradições político-econômicas e geopolíticas na qual está mergulhada a internet e que, no geral, um debate apegado apenas ao linguajar jurídico formal prefere a ignorar. Essencialmente, precisamos deixar de falar de “internet” e de outros termos correlatos ou derivados como, por exemplo, “provedores de acesso”, e passar a falar de “plataformas”. Quando o ministro ordena o bloqueio de perfis pessoais no Twitter ou no Facebook, ele não está bloqueando esses perfis “na internet”, está bloqueando-os nessas específicas “plataformas”.

A internet é um sistema físico-lógico que permite interações em altíssimas velocidades multiponto-multiponto por meio de tecnologias digitais. Falar de internet, é falar de DNS, gTLDs, IPv6, PPTs, CDNs etc. No Brasil, é o tema por excelência do Núcleo de Informação e Coordenação do Registro Br (NIC.br), uma entidade da qual quase ninguém ouve falar ou sabe da existência, mas vital para o ótimo funcionamento da internet brasileira. Se você está lendo este artigo agora, é muito graças ao NIC.br.

No entanto, se você está lendo esse artigo agora, há grande chance de estar usando um aparelho terminal móvel com sistema operacional Android ou iPad OS, ou seja, o seu acesso está se dando por meio de sistemas desenvolvidos e proprietários da Google ou da Apple. E, muito possivelmente, além de ler artigos no JornalGGN, você também vê vídeos no YouTube, lê posts no Facebook ou no Twitter, troca mensagens ou participa de listas de discussões no WhatsApp ou Telegram. Nesses tempos de pandemia, provavelmente passou a fazer mais compras na Amazon, ou a pedir sua refeição pelo iFood. Ou seja, você, a rigor, sem perceber muito bem, “está”, na maior parte do seu tempo, em alguma plataforma sobre a internet (ver figura).

 

Se alguém lhe pergunta, “onde você está?”, muito raramente, só em algumas circunstâncias especificas, você responderia “estou no Rio de Janeiro”. Respostas mais prováveis: “estou em casa”, “estou no restaurante”, “estou fazendo compras”, “estou na praia”, “estou no trânsito”, “estou no trabalho”… Em qualquer caso, estará na cidade. Você está 24 horas por dia, 365 dias por ano, numa cidade. Nem precisa dizer. Do mesmo modo, hoje em dia, você vive todo o tempo na internet e, se não desligar o celular à noite, você inclusive dorme na internet.

A cidade onde você vive é cheia de regras e regulações: zoneamentos de bairros, códigos de posturas, leis e regras de trânsito… Se alguém quiser construir um prédio ou casa, precisa licença da prefeitura após cumprir diversas exigências. Para abrir uma loja, precisa de alvará, licença de bombeiros. Para sair com o seu carro, precisa de carteira de motorista, licença do veículo, obedecer os sinais… Mas ao contrário de você, motorista no seu carro sujeito a muitas leis enquanto dirige sobre as ruas da cidade, para aquela camada que se encontra sobre a internet não existe praticamente lei nenhuma. Ah! O “marco civil”, dirão. O “marco civil” é uma lei que as isenta de leis, direi.

O vazio legal da camada das plataformas decorre da própria história da internet. Ela nasce, nos anos 1970-1980, de pesquisas universitárias estadunidenses apoiadas com recursos do Pentágono. Começa a se disseminar pelos Estados Unidos e, daí, pelo mundo, no ambiente neoliberal dos anos 1990, isto é, sob a agenda dominante de esvaziamento dos poderes dos Estados nacionais enquanto servia, ela, a internet, para reforçar o poder político e ideológico dos Estados Unidos na “nova ordem” que se seguiu à derrocada da União Soviética. Chegou no Brasil, como chegou em quase todos os demais países (com exceção notória da China), através de conexões acadêmicas ou universitárias, sem pedir licença a ninguém. Nessa época, se eu tivesse um computador e pudesse me conectar a um outro computador através de uma elementar linha telefônica, tudo que precisava fazer seria uma chamada telefônica e, ao invés da conversa normal por voz, conversar por texto escrito através do envio e recepção de “pacotes de dados” pelo cabo de telefonia. Para funcionar, esse sistema demandava um único intermediário: o “provedor de acesso”. A chamada telefônica me conectaria com esse provedor e esse provedor me conectaria com o mundo. Desde o início, no ambiente neoliberal, se o provedor de acesso não fosse universitário (obviamente só acessível aos universitários), seria alguma entidade de direito privado (algumas, é verdade, de natureza não-lucrativa). No Brasil, já encaminhando a privatização do Sistema Telebrás, o governo FHC baixou uma regra conhecida como “norma 4” que impediu à ainda empresa pública Embratel oferecer serviços de acesso à então nascente internet. Ao invés de serviço público, a idéia era mesmo a de tornar a internet um serviço fornecido e operado pelo mercado.

Não demorou, sobretudo nos Estados Unidos, a aparecerem prestadores comerciais de serviços apoiados nessa então nascente tecnologia. Serviço de e-mail, por exemplo, muito mais vantajoso que os centenários correios. Portais de notícias. As primeiras “redes sociais”. E, diante da crescente dimensão mundial que a rede ia alcançando, os serviços de “busca”: Lycos, Excite, AltaVista etc. Por trás de todas essas iniciativas, estava um segmento do capital especulativo conhecido como “venture capital”: investidores especializados em correr riscos oferecendo dinheiro para jovens talentosos e criativos. Graças a 100 mil ou 200 mil dólares inicias de apostadores como Andy Bechtolsheim, Michael Moritz e outros, jovens como Bill Gates, Sergey Brin, Mark Zukerberg e tantos outros viriam a se tornar bilionários. Nada por acaso. E aqueles 100 mil ou 200 mil dólares, depois de dois ou três anos, transformavam-se em 2 bilhões…

Na primeira década do século XXI, despontam os primeiros grandes vencedores após uma década de experimentações sociais e econômicas: as plataformas Google, Facebook, Amazon, algumas outras. A partir daí, a internet já não é mais aquela das origens. Em primeiro lugar, já não é mais domínio exclusivo de técnicos e acadêmicos mas espaço onde se encontram, com seus desejos, vontades, amores e ódios, milhões e milhões de pessoas de todo o mundo. A internet tornou-se a cidade. Em segundo lugar, essas milhões de pessoas não “enxergam” a internet, “enxergam” as plataformas. Mesmo que alguém diga, “vi na internet”, na verdade viu no Facebook, no WhatsApp. O próprio capitalismo como um todo descobre o poder das plataformas para incrementar a acumulação e começa a subordinar diferentes modelos de negócios ao modelo das plataformas.

As plataformas ganham dinheiro traficando os dados pessoais que trafegam na internet. Tudo o que cada pessoa diz ou comenta no Facebook, no Gmail, no YouTube etc., reduz-se a dados que descrevem as condições econômicas, sanitárias, familiares, educacionais, emocionais, ideológicas dessa pessoa, sobretudo que tipo de consumidor(a) essa pessoa é. Esses dados são comercializados com anunciantes interessados em vender algum produto ou serviço para essas mesmas pessoas. O negócio com dados é tão extraordinário que, em 2019, o lucro líquido do Google foi de 34,3 bilhões de dólares; o do Facebook, de 18,5 bilhões; o da Amazon, de 11,6 bilhões; o do Uber, de 8 bilhões.

Segundo o The Economist, edição de 6 de maio de 2017, os dados “são o petróleo do século XXI”. Com uma grande diferença. Para explorar a riqueza do petróleo, uma empresa precisa pedir licença ao governo do país onde se encontra a jazida e pagar os devidos royalties, além de outros impostos. Para minerar, apropriar e monetizar os dados de milhões de cidadãos e cidadãs de um país qualquer, as plataformas nem pedem licença, nem pagam nada…

Dados são não somente grande fonte de riqueza e de acumulação de capital, como também, por extensão, são fonte de extraordinário poder. Quem processa dados sobre bilhões de pessoas e milhões de empresas detém um desmedido conhecimento sobre os “humores” e rumos do mundo. É um poder de vigilância que parece concretizar os piores pesadelos de George Orwell.

Embora dotadas de tão grande poder econômico e político, as plataformas foram penetrando países adentro aproveitando-se das porteiras abertas pela internet e da ideologia neoliberal reinante. Enquanto emissoras de rádio e televisão, inclusive nos serviços pagos, precisam de licenças ou outorgas para funcionar; enquanto operadoras de telecomunicações, inclusive por satélites, precisam de autorizações; enquanto bancos privados precisam de licenças e prestam contas ao BC, assim como escolas e universidades também estão sob rigorosos (ao menos em tese) controles da União, estados e municípios; enquanto os serviços fornecedores de energia elétrica, ou as rodovias e aeroportos, em suma tudo que é essencial para a sociedade está de algum modo submetido a regulações públicas mesmo se fornecido por empresas privadas; as plataformas, apesar de toda essa mastodônica dimensão econômica e política que amealharam em tão pouco tempo, seguem à margem de qualquer regulação específica.

Evidentemente, mais cedo ou mais tarde, essa situação começaria a incomodar. Não os Estados Unidos, claro, onde Google ou Facebook pagam os impostos relativos aos seus momentosos lucros sugados urbi et orbi, além de, segundo Edward Snowden, manterem a NSA informada do que se comenta nas suas redes… Nem a China que, nos primórdios dessa história, já tratara de se proteger convenientemente.

As mais importantes reações têm vindo da Europa. Decisões da Justiça, algumas envolvendo pesadas multas, normativas européias ou leis nacionais têm procurado reduzir os poderes políticos e econômicos das plataformas. Marco importante nesse sentido é o Regulamento Geral de Proteção de Dados Pessoais (RGPD), adotado pela União Européia em  2018, com algumas cláusulas que se aplicam fora dos limites europeus. O Brasil e outros países adotaram leis similares, ajustando-se ao ditado europeu.

Há dois anos, na conferência de abertura do Fórum Mundial da Internet, em Paris, o presidente Emmanuel Macron reivindicou expressamente a regulação das plataformas, deixando claro que se deveria buscar um modelo eqüidistante dos que denominou “chinês” e “californiano”. Aquele é referência óbvia. Este refere à não-regulação ultraliberal germinada nos Estados Unidos, mais precisamente no Vale do Silício, e daí disseminada para o resto do mundo.

As decisões recentes do ministro Alexandre de Morais, bem como o projeto de lei 2630 tramitando na Câmara sobre “fake news”, quaisquer que sejam as motivações imediatas de seus atores, inserem-se concretamente nesse debate maior. Simplesmente, a ausência de forte regulação de natureza pública sobre a operação das plataformas começa a exibir as disfuncionalidades econômicas e políticas da internet. Funcionava muito bem enquanto ainda era um ambiente basicamente técnico, freqüentado por uma elite acadêmica e alguns outros e outras curiosos, interessados, digamos, no bem da humanidade. Já não funciona tão bem assim, quando passou a dar voz a milhões de imbecis, como disse Umberto Eco, e, sobretudo, passou a ter sua evolução comandada por interesses comerciais e financeiros.

Mark Zukerberg, Sergey Brin, Larry Page, Jeff Bezos são alguns dos nomes mais conhecidos do meio. Cada um, junto com um punhado de colaboradores de longa data, detém cerca de 30% do capital do Facebook, da Alphabet (holding do Google), da Amazon. Outros 70%, em cada uma dessas plataformas, estão nas mãos de mais de 1.500 instituições financeiras sendo que cerca de 30% está concentrado em umas poucas, cujos nomes se repetem nas três plataformas: Vanguard Group, FMR-LCC, State Street, Price (T. Rowe) Associations etc. (ver tabela). É um perfil de capital comum a quaisquer outras plataformas. Portanto, o principal compromisso delas, se não único, é com o lucro dos seus acionistas. Por isso, não importa se uma mensagem qualquer que trafegue no Facebook, WhatsApp ou Twitter seja de amor ou ódio, divulgue verdade ou falsidade, seja vídeo de gatinhos ou discurso racista. Qualquer mensagem conterá dados sobre quem envia e quem recebe, e dados valem dinheiro.

 

Do estrito ponto de vista da camada técnica da internet, uma mensagem pode percorrer estranhos caminhos. Os servidores das plataformas espalham-se pelo mundo. Um computador que, fisicamente, esteja no Rio de Janeiro, pode ser identificado, pela internet, como situando-se na Islândia ou no Cazaquistão. E a plataforma, como sempre alega o WhatsApp, pode dizer-se uma empresa também situada fora do Brasil, logo fora do alcance das leis brasileiras embora seja usada por 60 milhões de brasileiros. Em termos técnicos, de engenharia, é assim mesmo. Mas do ponto de vista político e econômico, a vida concreta das pessoas e das empresas usuárias das plataformas ainda se dá dentro do território jurisdicional de algum país. É o que descobriu o ministro Alexandre de Morais: não importa onde está o servidor da plataforma, importa onde o seu usuário – pessoa de carne e osso – tem domicílio e apronta das suas. Não importam as parafusetas da técnica. Importam onde são praticadas as ações humanas. E se criminosas, cabe à plataforma cumprir a lei do país onde o criminoso atua, não à do país onde seus computadores estão ou aparentam estar.

As decisões do ministro Moraes, assim como tramitação do PL 2630 podem jogar luz sobre a agenda maior da regulação das plataformas. É inegável que se trata de um processo muito complexo até porque a internet, na sua camada técnica, foi construída para constranger esse debate. Acordos multilaterais, entre Estados soberanos, serão necessários. A ONU está aí para isso. Mas ao contrário do que acontece na Europa, onde a legislação avança após muitos estudos e muita troca de idéias entre especialistas e lideranças políticas, no Brasil os processos se dão ao sabor das pressões e contra-pressões dos interesses de momento, como estes que estamos ora vivenciando. Trata-se porém de, por um lado, assumir que já não podemos mais isentar as plataformas dos mesmos controles e custos aos quais se submetem outros serviços essenciais: seus acionistas não podem seguir sendo os únicos a ganhar com tão lucrativo “petróleo”. Por outro lado, será preciso entender que dada as complexidades técnicas, econômicas, políticas, até geopolíticas envolvidas, esse problema não pode seguir sendo decidido no afogadilho de algum projeto de lei tratando (mal) de pequena parte superficial do todo, nem na autoridade monocrática de algum juiz, por mais supremo que seja, ao sabor de conflitos de ocasião. Pensando além deste atual nebuloso momento em que vivemos, a sociedade precisa encarar a tarefa de construção de um grande projeto de regulação pública que submeta as plataformas estadunidenses da internet à jurisdição soberana do Brasil.

*Marcos Dantas – Professor Titular da Escola de Comunicação da UFRJ, conselheiro eleito do Comitê Gestor da Inteernet (CGI.br)