O ano de 2020 veio para provar que a humanidade precisa mesmo de suas nações unidas, caso queira sobreviver às intempéries, sejam elas previsíveis ou não. Não fosse a pandemia do novo coronavírus, os problemas ambientais e econômicos já seriam de grande monta. Mas os desígnios, por vezes insondáveis, da natureza trouxeram um desafio a mais para um tempo já no mínimo estranho. A difusão de um vírus letal e altamente infeccioso, cuja onda de contágio abraçou o planeta de leste a oeste, deu ao ano de 2020 os contornos inesquecíveis da primeira pandemia do século XXI. Como cada líder nacional lidou com a crise será lembrado por décadas, para tragédia dos cloroquiners e negacionistas em geral.

Foi a primeira vez, nos 75 anos de história da ONU, que os líderes dos países membros, hoje 193 (eram 51 em 1946), fizeram seus discursos gravados previamente e não sentiram os olhos do mundo observando suas performances ao vivo no púlpito do salão nobre do Edifício-Sede da ONU, projetado por Niemeyer e Corbusier ao final dos anos 1940. Na época da construção do edifício, entre os 50 projetos concorrentes, o de Niemeyer, que levava o número 32, foi considerado o “mais interessante de todos” e que, por generosidade do brasileiro, incorporou em sua versão final as ideias do projeto 23 do francês Corbusier. Generoso e interessante são adjetivos difíceis de serem empregados, por exemplo, ao discurso do representante brasileiro que esteve hoje na abertura da 75ª assembleia. Se houve algo de interessante no amontoado de palavras mal lidas por Bolsonaro, foi sua capacidade de proferir inverdades.

Na verdade, o bendito discurso deve ter causado antes de tudo uma boa diversão, pois Bolsonaro já se transformou nesse personagem tragicômico que vai se consolidando em uma espécie de lugar comum em nível global. “Não seja um bolsonaro” é uma expressão que muito em breve não será estranha a muitos ouvidos. Você será considerado “um bolsonaro” se trouxer em suas palavras e expressões traços de misoginia, misturados com homofobia, ignorância, subserviência aos americanos, inverdades, negacionismo científico e pinceladas de falsa religiosidade professada junto a impropérios de baixo calão. Se você for ao aniversário de 75 anos de alguém e não citar a data e nem o aniversariante, você estará sendo “bem bolsonaro”. Como hoje, na comemoração dos 75 anos da ONU, em que o presidente brasileiro não citou a efeméride e nem a dona da festa.

Se você atribui os incêndios na Amazônia e no Pantanal aos índios e caboclos você também está sendo “bem bolsonaro” e por aí vai: se você diz que combateu bem uma pandemia que matou 140 mil pessoas; se você diz que as queimadas nas florestas são inevitáveis; se você diz que os incêndios do Pantanal são semelhantes aos da Califórnia; se você diz que o Brasil é um país cristão e conservador, abstraindo as demais denominações religiosas, em especial as de matriz africana; se você diz que neste país há prevalência de direitos humanos; se você diz que Trump tem um plano de paz para a Palestina; se você diz que seu país está cooperando com o povo venezuelano e todos esses falsos enunciados hoje declamados bolsonaristicamente, você é um “bom bolsonaro”.

Mas, depois do show “made in Brazil”, veio o duelo de titãs já esperando na 75ª. AGNU, o embate entre EUA e China. Antes, o secretário-geral António Guterrez já tinha dado a deixa ao dizer que “estamos em nosso 1945 particular” e “precisamos evitar uma nova guerra fria”. Em seu discurso, Trump acusou a China de espalhar o coronavírus, ao que a China respondeu, através de seu embaixador na ONU, dizendo que os EUA estão espalhando um “vírus político”. Em resumo, o discurso de Trump foi primário, pintou a si mesmo como benevolente e responsável, ao citar o acordo entre os Emirados Árabes Unidos e Israel, por exemplo, e aos chineses como os agressores da humanidade a serem contidos, junto com a OMS, segundo ele instrumentalizada pelo país asiático. Por sua vez, Xi Jinping fez seu discurso sem citar os EUA diretamente. Falou de cooperação global e respostas humanitárias à crise do coronavírus. A fala do presidente chinês destoou por se encaixar propriamente em um encontro multilateral, com um chamado à mútua cooperação entre as nações em tempos de grandes desafios, enquanto Trump e Bolsonaro se ativeram à autocomiseração e autopromoção.

Esse primeiro dia da Assembleia Geral da ONU de 2020, aos 75 anos da entidade, deixou uma sensação mista de mais do mesmo e desesperança, muito particular desse ano pandêmico. Embates que já deveriam estar aposentados, como entre o unilateralismo e a cooperação multilateral, o negacionismo e o valor da ciência, a autocomiseração e a solidariedade internacional, andam mais em voga do que se suporia há algumas décadas. A fragmentação do Brics e da unidade sul-sul, puxada há pouco tempo por uma América Latina de amplas forças progressistas, ante o imperialismo do norte tem impacto perceptível no concerto das nações. Os efeitos da tragédia biológica e dos sacrifícios econômicos e sociais impostos, pari passu com o necessário distanciamento social que desumaniza as relações, parecem ter minado em parte a energia humana necessária neste momento de exigida capacidade de reconstrução. Em especial para os já desguarnecidos do Estado e socialmente marginalizados. Para enfrentar o imperialismo será necessário resgatar essa energia dissipada e reorganizar uma contraofensiva de força incomum na defesa do valor universal da vida, da paz e da igualdade.

Como disse Fidel, em um de seus memoráveis discursos na sede da ONU: “para que serve a consciência humana? Para que serve a ONU? Para que serve o mundo? Não se pode falar de paz em nome das dezenas de milhões de seres humanos que morrem todos os anos de fome ou doenças curáveis em todo o mundo. Não se pode falar de paz, em nome de 900 milhões de analfabetos. A exploração de países pobres por países ricos deve cessar. Dirijo-me às nações ricas para que contribuam. Dirijo-me aos países pobres para que distribuam. Basta já de palavras. Faltam ações”.