O professor Yu Yongding observou, recentemente nas páginas eletrônicas do Project Syndicate (“Decoding China’s ‘Dual Circulation’ strategy”, 29/09/2020), que a “política de dissociação e sanções do governo Trump deixou a China sem escolhas a não ser dobar a ligação do crescimento econômico com a demanda doméstica, para garantir uma posição sólida nas cadeias globais de valor”. Eis um raciocínio.

Por outro lado, ainda na chamada “geoeconomia” o prestigiado professor Lanxin Xiang, autor de um verdadeiro best seller lançado recentemente (The Quest for Legitimacy in Chinese Politics, Routledge) tem sintetizado um grande debate que ocorre nos círculos intelectuais chineses e sobre o abandono, por Xi Jinping, do conselho original de Deng Xiaoping de que a China deveria esperar seu tempo e manter um perfil discreto.

O que determinadas discussões acadêmicas sobre a China acabam não levando em consideração é que Deng Xiaoping, um homem capaz de apontar o dedo no horizonte como poucos no século 20, não poderia prever duas ordens de acontecimentos, inter-relacionados: 1) A financeirização das economias ocidentais tornou muito mais instável a instabilidade sugerida por Hyman Minsky, o que suscitou ameaças à legitimidade das chamadas “democracias liberais”; e 2) A China simplesmente aproveitou as brechas históricas abertas diante de si para avançar em velocidade máxima, tanto nos caminhos das cadeias globais de valor quanto, nos territórios econômicos externos.

Os chineses partem para a execução de seu 14º Plano Quinquenal, em meio a instabilidades e incertezas, apetrechados dos recursos institucionais e políticos para arrostar as ameaças à paz sonhada por Deng para o desenvolvimento do país. O que poderia ocorrer somente em 2049 foi antecipado em quase 30 anos.

Os “neo-institucionalistas” Douglas North, Daron Acemoglu e outros insistiram em previsões equivocadas a respeito do destino da China ao ignorar as peculiaridades do arranjo institucional construído pacientemente depois das reformas iniciadas no crepúsculo dos anos 70. Hoje, essas instituições peculiares se preparam para mais uma resposta que pode botar de queixo-caído os profetas da desgraça.

O novo plano quinquenal nos lembra muito os chamados 50 anos em 5 de nosso JK. O martelo foi batido na semana passada durante reunião do Comitê Central do Partido Comunista da China, onde detalhou-se dois níveis de ação incluindo o próprio 14º Plano Quinquenal e os objetivos mais estratégicos a serem alcançados até o ano de 2035.

É interessante observar que os portentosos números proclamados no anúncio dos planos quinquenais anteriores foram abandonados, à exceção da meta almejada para a renda per capita de US$ 20 mil em 2035 – o que significa dobrar a atual. A não proclamação de grandes números não indica a perda de critério, mas a ênfase em conceitos. O conceito-chave é a chamada “Estratégia de Dupla Circulação”.

A “dupla circulação” está definida em dois âmbitos interrelacionados. A “circulação interna” busca a consolidação de um mercado interno, cuja classe média passaria dos atuais 400 milhões para a casa dos 700 milhões em 2025. A manutenção da política de aumentos médios do salário mínimo será mantida de forma a articular tal política com o relaxamento das restrições impostas pelo sistema Hukou de migração interna dos trabalhadores. [Os dados disponibilizados pelo Global Wage Report 2018-2019, patrocinado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), apontam que o salário mínimo chinês cresceu 280% entre 2004 e 2018.”]

Entre as restrições a serem levantadas estão o acesso a serviços sociais. Enquanto o Brasil se entrega ao salário por hora e à desproteção social, os documentos governamentais do 14º Plano Quinquenal enfatizam a “Nova Urbanização” cuja centralidade é a construção de poderosos esquemas de seguridade social, cobertura médica, educacional, cultural e elevação da produtividade do trabalho na agricultura – no rumo da construção de soberania alimentar.

No âmbito da segunda circulação, a “circulação externa” estão os dispositivos destinados ao enfrentamento da guerra declarada por Trump. Todas as fundações institucionais, produtivas e financeiras erguidas e desenvolvidas ao longo das últimas décadas estarão concentradas na tarefa de construir a plena soberania tecnológica. Esse objetivo está definido de modo a permitir o avanço da China nos assim chamados “setores-chave”, que para bons entendedores significa o fechamento do gap chinês em relação aos EUA na cadeia dos semicondutores.

De imediato um grande plano de US$ 1,5 trilhão já está em execução somente para esta finalidade. Arranjos diplomáticos, econômicos de todo tipo estão em andamento: os acordos envolvem desde a construção de novos chips com materiais alternativos até a “atração” dos melhores engenheiros taiwaneses e sul-coreanos. Esta estratégia poderá garantir ampla presença chinesa nas cadeias globais de valor.

E, diga-se, esse projeto é executado com o propósito de “aprisionar” Wall Street em uma ousada política de abertura planificada da conta de capitais. Sim, o “desacoplamento” sonhado por Trump não conta com o apoio dos grandes capitais norte-americanos, nem tampouco dos conglomerados financeiros que, para espanto de alguns incautos, contam com uma crescente participação acionária chinesa.

O conjunto da obra aponta para uma acelerada transição entre o crescimento baseado nas ideias de Arthur Lewis – e sua conhecida oferta ilimitada de mão-de-obra – para um processo de crescimento baseado em:

1. Ganhos salariais;
2. Ampliação dos serviços públicos;
3. Soberanias financeira e tecnológica.

“Capitalismo de Estado” ou “Socialismo de Mercado”? A essa indagação cabe a resposta de Deng Xiaoping na aurora dos anos 1980: “Não importa a cor do gato se o bicho caça ratos”. Recentemente, o presidente Xi Jinping anunciou as políticas de “ampliação do papel do mercado” e de reforço às empresas estatais. O propósito, dizia ele, é alentar o empreendedorismo e a inovação.

No Brasil de hoje, o governo e seus apoiadores estão obcecados com a cor do gato. Se o gato é capaz de caçar ratos, isso não interessa.

Elias Jabbour é Professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE) e em Relações Internacionais (PPGRI) da UERJ. Membro do Comitê Central do PCdoB.
Luiz Gonzaga Belluzzo é Economista e professor.

Publicado originalmente no Valor Econômico