“Existem muitas hipóteses em ciência que estão erradas. Isso é perfeitamente aceitável, elas são a abertura para achar as que estão certas”. Carl Sagan.

Neoliberalismo: meio de cultura para o desenvolvimento do negacionismo científico

A hipótese de um progresso sustentável, guiado pela mão invisível do mercado, já foi refutada na prática há anos. Somente fanáticos, que se apegam aos dogmas em detrimento da ciência, podem persistir em tal charlatanismo.

Há pelo menos quatro décadas estabelecidas em vários países – onde o Brasil foi e continua sendo uma das mais importantes cobaias -, as teses neoliberais foram todas descartadas pelos seus resultados catastróficos. Uma após a outra, desfez-se todas as contas do rosário neoliberal. Os números que comprovam esse fracasso são retumbantes em todas as áreas.

Mas a prática como critério da verdade não é aceita pelos apologistas do credo neoliberal. Daí, partem para as mais absurdas teorias conspiratórias. Ao contrário de São Tomé, nem vendo para crer.

Não há mais discussão no campo da racionalidade com os neoliberais. São cada vez mais anticientíficos. Não à toa, desprestigiam a ciência básica e de tudo fazem para desmontar o que resta de política nacional de ciência, tecnologia e inovação (C,T&I), construída por gerações ao longo do último século. Segundo a lógica do Consenso de Washington, é mais rentável comprar tecnologia forânea do que investir na ciência básica local, considerada por eles dispendiosa.

Pari passu ao desmonte das políticas de C,T&I patrocinado pelos governos neoliberais, ganha força um movimento obscurantista, conhecido como negacionismo científico. Uma praga que parece contaminar parcelas expressivas da sociedade, inclusive a mais escolarizada. Educadores são tratados como doutrinadores e uma espécie de macarthismo se abate sobre a categoria. O tal “Escola sem Partido” se impõe como um órgão de vigilância contra professores que cultivam o pensamento crítico e o método científico de análise.

Manipulados pelas denominadas fake news, onde as mais fantasiosas teses conspiratórias são propaladas pelas redes do ciberespaço, milhares de brasileiros são capazes de negar o holocausto, a AIDS, as mudanças climáticas, as vacinas…  É o que muitos chamam de Novo Conspiracionismo. A ciência, na visão desses estrupícios, só serve quando é para endossar suas convicções. Dessa forma, a vacina da China sempre carecerá de mais estudos, enquanto o uso da cloroquina – no tratamento preventivo da Covid 19 – dispensa quaisquer evidências sólidas.

Um desses movimentos negacionistas protagonizou a invasão ao Capitólio nos Estados Unidos para defender a manutenção de Donad Trump no poder, mesmo após a confirmação de sua derrota eleitoral. Um grupo violento, composto por fanáticos cujo nome é o acrônimo QAnon, simbolizando a soma de duas ideias: “O Q é a letra que designa o nível mais alto de acesso às informações confidenciais do Departamento de Energia dos EUA. E, como seus seguidores operam na sombra e agem covardemente atrás do anonimato, ao Q acrescentaram “Anon”, abreviação de anônimo”. Teorias conspiratórias desses movimentos varrem o mundo e são mais perigosos que parecem, como alerta reportagem de El País [1].

Os seguidores desses grupos acreditam que pedófilos estão dominando os principais governos do mundo, promovendo uma agenda satanista. São de extrema direita e alimentam um ódio visceral contra todo e qualquer pensamento progressista ou democrático. Creem, por exemplo, que o presidente norte-coreano, Kim Jong-un, “foi colocado pela CIA em seu posto e liberado em 2018 por Trump, que instalou um dublê no seu lugar” [2].

Nessa onda, surfam também os negacionistas da ciência. Aqueles que acham que a vacina chinesa acima mencionada carrega um chip microscópico capaz de permitir ao Partido Comunista monitorar as vidas de todos aqueles que forem imunizados com seus princípios ativos marxistas.

A onda é avassaladora. E até mesmo setores do campo democrático caem nessa esparrela. É comum vermos movimentos sociais progressistas se posicionarem contra a ciência em diversos assuntos, inclusive na agricultura. Os transgênicos são um caso emblemático.

 

 

Figura 1: Caminhos opostos: o negacionismo de todos os matizes versus o conhecimento científico

O movimento anti-transgênico nada mais é que uma variante do movimento antivacina. Querem fazer crer que a humanidade pode voltar a cultivar alimentos através de métodos ancestrais. O extraordinário aumento da expectativa de vida da população, sobretudo da classe operária, é secundarizado para se dar destaque a toda sorte de doenças e infortúnios que teriam surgido após o advento da chamada Revolução Verde.

Foi por meio de fortes investimentos em ciência que se conseguiu, em pouco mais de quatro décadas, multiplicar por mais de sete vezes a produção de grãos no país enquanto a área plantada tenha apenas dobrado de tamanho nesse mesmo período. Em 1975 a produção brasileira era de apenas 36 milhões de toneladas. Já para 2021, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), estima-se que a produção chegue 268,7 milhões de toneladas.

Dentre os investimentos na pesquisa agrícola em geral, chama atenção o desenvolvimento das ciências agrárias em algumas áreas estratégicas que permitiram a melhor compreensão sobre os solos brasileiros, sobretudo os do cerrado, e a adoção de um melhor manejo com o plantio direto na palha e as devidas correções (calagem) e adubações. Isso sem falar da Fixação Biológica do Nitrogênio, “presente hoje em 75% da área cultivada de soja” [3].

Acrescente-se a esta vasta lista de contribuições da ciência brasileira as inúmeras inovações em diversos outros setores que se destacaram na irrigação; na mecanização agrícola; no armazenamento; no manejo integrado de pragas, doenças e plantas daninhas (com destaque para os controles biológico e comportamental); no monitoramento das lavouras, no transporte e na logística e em tantas outras áreas. Mas um segmento em especial que a ciência nacional se destacou imensamente merece ser sublinhado neste artigo: a genética.

Justamente a genética, esse ramo fascinante da biologia, através de seus programas de melhoramento consolidados em várias universidades e unidades de pesquisa públicas pelo Brasil afora, é atacada por fanáticos que a consideram uma das responsáveis pelas mais diversas anomalias e aberrações, como a própria produção de doenças infecciosas como a Covid 19.

Um artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil de dezembro de 2020 escancara o nível do negacionismo científico a que chegamos. O título não poderia fugir do script conspiracionista: “A pandemia e o agronegócio no Brasil”.

Segundo o autor, o modelo de criação animal intensiva que predomina no Brasil “remonta aos Estados Unidos dos anos 1940 e surgiu sob os auspícios das sociedades de eugenia humana que popularizaram a noção de melhoramento genético como forma de incremento da dominação humana sobre a natureza” [4].

Espantoso o esforço “teórico” em tentar associar uma teoria fascista, como é a eugenia, ao melhoramento genético de plantas e animais que vem revolucionando a produtividade agropecuária ao longo dos séculos, desde a invenção da agricultura.

Estima-se que 20% da população da Irlanda tenha morrido de fome entre os anos 1845 e 1849, num dos mais tristes episódios históricos batizado de “A grande fome”. Um oomiceto chamado Phytophthora infestans, agente causal da doença conhecida como requeima da batata, devastou as colheitas naquele período. Esse evento, que assolou boa parte da Europa, contribuiu por ceifar a vida de mais de duas milhões de pessoas, número próximo ao da pandemia do Coronavírus que ocorre hoje. Não se promovia o melhoramento genético da batata, que era multiplicada vegetativamente sempre a partir de um mesmo material clonado há décadas.

Mas diferente do século XIX, na atualidade, mesmo com uma pandemia que paralisou ou desacelerou as atividades de várias cadeias produtivas, a produção de alimentos no período aumentou. O flagelo da fome, que volta ao Brasil e persiste em várias partes do mundo, tem a ver com outros fenômenos, ligados à renda dos trabalhadores. A depender da ciência, o planeta reúne hoje, pela primeira vez na história, condições excepcionais para ver desaparecer a fome em todos os seus rincões.

Graças ao melhoramento genético e outras técnicas, a batata inglesa saltou de uma produtividade média de 4,95 toneladas por hectare na década de 1940 para 21,37 toneladas por hectare na última década no Brasil, superando a média mundial de 16,93 toneladas por hectare (SILVA & JADOSKY, 2015).

Desde os astecas, que promoveram a domesticação do milho através de um método de melhoramento chamado seleção massal, até os programas de pós-graduação das universidades públicas que desenvolvem cultivares mais resistentes ao ataque de insetos e doenças, a manipulação genética é umas das mais fantásticas conquistas da humanidade. O que os marxistas, sobretudo Engels, saudaram como sendo a “dominação humana sobre a natureza”, os conspiracionistas “antissistema” acusam como sendo uma intervenção indevida na ordem natural das coisas. A “ordem natural” da vida selvagem, simplificando, é o mais forte comendo o mais fraco. É a seleção natural em todo o seu esplendor (contem ironia).

Engels, bebendo no materialismo histórico dialético, ao defender as inovações tecnológicas, fazia a justa crítica de qual classe social iria liderar esse domínio sobre a natureza: proletariado ou burguesia. Mas sem se deixar levar pelos devaneios do “identitarismo agrário” em voga, que mistura alhos com bugalhos, tinha a clareza de compreender que uma descoberta científica qualquer poderia ser utilizada de distintos modos, trilhando objetivos diferentes de acordo com o projeto político predominante.

Em “A dialética da Natureza”, Engels fez a seguinte exaltação: “Nos países industriais mais avançados, domamos as forças da Natureza e compelimo-las ao serviço dos homens; com isso, multiplicamos a produção ao infinito”. Mas, logo em seguida, demarcou: “E qual é a consequência? Trabalho excessivo crescente e miséria crescente das massas”.

Ou seja, o incremento da produção agrícola é algo extraordinário e só é possível devido ao fato de o homem, pela primeira vez, através da ciência, dominar a natureza. Uma natureza que nos é, ao mesmo tempo, vital (por sermos parte dela) e hostil (por termos nos distanciado dela na odisseia da invenção do Homo sapiens).

Em resumo, a luta essencial é aquela travada pela apropriação desses resultados pelos povos e nações, direcionando-os para a elevação de vida de todos e não somente à uma ínfima parte de uma elite agroexportadora e de setores de uma classe média insensível à fome de milhões de pessoas ao mesmo tempo que a produção é excedente. A luta é compreendermos a relação dialética de dependência e separação entre homem e natureza selvagem.

A agropecuária brasileira é um exemplo desta dialética. A imprescindível luta pela manutenção dos habitats, a defesa intransigente da preservação dos ecossistemas e a bandeira em prol de fauna e da flora, não podem guardar contradição com o incremento da produção de alimentos e demais matérias primas. Saídas para esses impasses há vários, como por exemplo, o aproveitamento de pastos degradados. Mas todas as soluções exigem Estado Nacional forte para enfrentar interesses predatórios de alguns grupos privados.

O negacionismo e o conspiracionismo que ganham terreno como planta daninha, só vai ser controlado através de investimentos públicos capaz de se popularizar as ciências. Difundindo-se os grandes êxitos da engenhosidade e criatividade humana. Combatendo o pensamento dogmático, fossilizado e panfletário. Mas sobretudo, derrotando a corrente política essencialmente negacionista: o neoliberalismo.

Para isso é fundamental resgatar o papel do Estado Nacional na retomada de um Projeto de Desenvolvimento capaz de alçar a ciência a um patamar estratégico. Retirar a primazia da iniciativa privada de capital externo na condução das suas linhas de pesquisa que, na maior parte das vezes, não atende aos anseios dos agricultores brasileiros. Mais que isso, valorizar as instituições públicas que tanto contribuíram no último século para consolidar o país na condição potência agrícola.

E uma dessas instituições que demonstrou ser estratégica ao país foi a universidade pública brasileira que, em menos de um século, deu imensas contribuições ao povo brasileiro, sobretudo a partir da inauguração dos primeiros programas de pós-graduação na década de 1960. Não é por mera coincidência que, a partir daí, a agropecuária brasileira inicia sua vertiginosa ascensão em produção e, sobretudo, produtividade.

A pós-graduação pública brasileira e o desabrochar de uma revolução verde… e amarela

O fato de a criação da primeira universidade no Brasil ter se dado apenas no início do século passado revela o caráter subalterno da burguesia nacional. As elites dominantes preferiam enviar seus filhos para estudarem na Europa do que investir na educação superior em território brasileiro.

Países vizinhos como Argentina, Equador ou Colômbia, têm suas primeiras universidades criadas há mais de quatro séculos. Na Europa, as universidades pioneiras foram erigidas ainda na Idade Média. A Universidade de Bolonha, por exemplo, foi fundada no final do século XII. Enquanto isso, no Brasil, foi-se reunir um conjunto de escolas isoladas para se fundir na primeira universidade apenas no século passado.

Essa cultura do embrutecimento, da negação das potencialidades do povo brasileiro por parte das elites que historicamente ditaram os rumos da nação, pode ser bem ilustrada no fato de a primeira imprensa efetivamente instalada no país ser datada do ano de 1808. Se “uma nação se faz com homens e livros”, como afirmava Monteiro Lobato, o Brasil apenas começou a se consolidar como tal a partir da impressão do primeiro livro em território nacional, três séculos após Pedro Álvares Cabral pisar em “Terra Brasilis”.

De acordo com Barreto & Filgueiras (2007), “Do início da colonização até o ano de 1800, 2122 brasileiros foram ter à Universidade de Coimbra”. Foi só a partir da Independência do Brasil, com a criação dos primeiros cursos superiores no país e uma maior aproximação com outros países, que a Universidade de Coimbra foi perdendo sua primazia entre a aristocracia brasileira.

A realidade é que o Brasil passou a maior parte de sua história importando os bens e serviços mais preciosos da metrópole e dos países industrializados, enquanto exportava matérias-primas diversas extraídas do labor escravo e de outras fontes precarizadas de mão-de-obra iletrada, sem acesso à educação formal. A situação só não foi pior devido ao trabalho dos jesuítas.

Foi a Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola ainda no século XVI, na Europa, a responsável pelas primeiras atividades educacionais no Brasil e quem, de fato, constituiu os primeiros cursos superiores, considerados de altos estudos. Pode-se dizer que os jesuítas assentaram as pedras angulares para a constituição do ensino superior no país.

O primeiro Curso de Filosofia no Brasil, por exemplo, foi criado pelos jesuítas e instalou-se na cidade de Salvador, no ano de 1572. Sobre esse curso, afirmou Leite (2000): “o curso de Artes do Colégio da Bahia apresenta-se como uma Faculdade de Filosofia, de direito pontifício e de feição e praxe universitária, e com a mesma praxe e solenidade dava o grau de Mestre em Artes aos externos: anel, livro, cavalo, pagem do barrete, e capelo azul de seda”.

Com a expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759 foi instaurada uma série crise do ensino no país, “uma vez que eles detinham a maioria dos educandários da colônia” (BARRETO e FILGUEIRAS, 2007).

José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, homem da política e das ciências, foi o responsável pelo projeto destinado à criação da primeira universidade no Brasil. A proposta revelava preocupação com essa importante lacuna para o desenvolvimento do país e visava inaugurar uma universidade digna deste nome. Ele próprio foi professor e pesquisador na Universidade de Coimbra, onde se notabilizou como um dos grandes naturalistas e mineralogistas do mundo e, também por isso, sensibilizava-se com essa demanda cara ao país.

Outro importante personagem político que destoou do pensamento hegemônico da época, descolando-se do obscurantismo da elite escravocrata reinante de sua época, foi Dom Pedro II. Sob seu governo, que gozou de certa estabilidade política e de crescimento econômico, “presencia-se uma expansão gradual das instituições educacionais e a consolidação de alguns centros científicos, como o Observatório Nacional, o Museu Nacional e a Comissão Imperial Geológica” (SAMPAIO, 1990).

Mas tudo isso eram apenas “espasmos” vivenciados no decorrer do Brasil Império. Eram surtos de lucidez em um cenário político marcado pela obscuridade. Até então, o que predominou na história da nação foram cursos de capacitação para as profissões liberais tradicionais, como engenharia, medicina ou direito. Um projeto nacional, que pautasse o ensino superior como um questão estratégica e orientasse a constituição de universidades com atividades científicas, só veio a ocorrer a partir da década de 1920.

Nessa época, a cultura do café era responsável por quase 70% das receitas de todas as exportações do país. A dependência do setor primário agrícola, assim como a pouca diversidade de sua agricultura, fazia com que economia brasileira fosse extremamente vulnerável às vicissitudes inerentes dessa atividade. 

Para romper essa dependência, que se configurava de múltiplos aspectos, era necessário investir na ciência nacional. Somente ela poderia dar algumas respostas específicas às demandas históricas do país. Era necessário apostar em um projeto que reunisse os recursos humanos mais qualificados para pensar o país a partir de sua própria realidade.

Uma universidade que, segundo o grande intelectual e educador brasileiro Anísio Teixeira, fosse baseada no ensino, na extensão e na pesquisa, “uma universidade plasmadora e consolidadora da cultura e da ciência nacionais, diretamente vinculada ao projeto nacional de desenvolvimento” (TEIXEIRA, 1989).

Essa universidade começou a surgir apenas a partir da década de 1950. Segundo Martins (2002), “O projeto elaborado pela elite intelectual laica defendia a universidade pública em oposição ao modelo de instituições isoladas e propunha a institucionalização da pesquisa em seu interior (grifo meu)”.

Entretanto, só vai ser a partir da constituição da pós-graduação brasileira e das suas agências de fomento que a ciência nacional finalmente se desabrochará em seu propósito de dar respostas aos grandes dilemas da nação, entre elas, a insuficiente produção de alimentos para uma sociedade que se urbanizava no ímpeto de sua industrialização tardia.

Se, nos anos 1950, a seca no Nordeste e as terras consideradas improdutivas do cerrado limitavam a produção agrícola, hoje, o país é o segundo maior exportador de alimentos do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Em apenas 50 anos, o Brasil saiu da condição de insegurança alimentar para uma agricultura extremamente dinâmica. Tudo isso só foi possível graças à ciência e a tecnologia genuinamente nacionais, alicerçada na pós-graduação brasileira nesse período.

Mas antes mesmo da implementação formal da pós-graduação brasileira, ocorrida somente em 1965, com o Parecer nº 977, conhecido como Parecer Sucupira, foi imprescindível a criação, pelo Estado Nacional Desenvolvimentista, das agências de fomento às atividades de formação de recursos humanos e de pesquisa, respectivamente: a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

A origem da Capes, como bem ratifica o site da instituição, se dá no início do segundo governo nacional-desenvolvimentista de Getúlio Vargas, com a retomada do projeto de construção de uma nação desenvolvida e independente. A Capes nasce “a partir de uma campanha nacional cujo objetivo era o aperfeiçoamento do pessoal de nível superior”.

Sua missão seria “levada a cabo por uma Comissão instituída pelo Decreto 29.741/5 (11/07/1951) e composta por representantes de diferentes órgãos do governo e entidades privadas”[5]. Seu primeiro presidente foi o então ministro da Educação e Saúde, Ernesto Simões Filho e seu secretário-geral, o professor Anísio Teixeira. A Capes surge, portanto, para garantir recursos específicos de formação de cientistas e pesquisadores no ambiente acadêmico.

O CNPq, por sua vez, “tem por finalidade promover e fomentar o desenvolvimento científico e tecnológico do país e contribuir na formulação das políticas nacionais de ciência e tecnologia” [6]. A missão do CNPq era ampla, uma espécie de “estado-maior da ciência, da técnica e da indústria, capaz de traçar rumos seguros aos trabalhos de pesquisas” [7] científicas e tecnológicas do país, desenvolvendo-os e coordenando-os de modo sistemático.

Com o passar do tempo, uma ampla rede de fundações estaduais de amparo à pesquisa foi se constituindo para impulsionar as investigações mais localizadas. Um exemplo exitoso é a FAPESP, proposta pela bancada do Partido Comunista do Brasil na ALESP e criada em 1960 (Lei Orgânica 5.918, de 18 de outubro de 1960), determinava a “definição constitucional de um orçamento próprio para a Fundação, baseado na transferência de 0,5% do total da receita tributária do Estado – percentual posteriormente elevado para 1%, pela Constituição de 1989” [8].

 

Figura 2: Em 23 de maio de 1962, o governador paulista Carlos Alberto Alves de Carvalho Pinto (sentado) assinou os atos de criação da FAPESP (Foto: Fapesp)

Na análise de Saviani (2008) “embora implantada segundo o espírito do projeto militar do ‘Brasil grande’ e da modernização integradora do país ao capitalismo de mercado, a pós-graduação se constituiu num espaço privilegiado para o incremento da produção científica”.

Outro fator importante que ajudou a acelerar a implantação da pós-graduação no país foram os planos nacionais de pós-graduação (PNPGs) que, desde os anos 1970, planejaram a expansão do sistema nacional de pós-graduação, não deixando-a a mercê da “mão invisível do mercado”. Desde então, destacam-se os seguintes Planos Nacionais de Pós-graduação: I PNPG (1975- 1979); II PNPG (1982-1985), III PNPG (1986-1989); IV PNPG (2005-2010); V PNPG 2011-2020.

Analisando-se os anos em que os PNPGs vigoraram, percebe-se que justamente nos governos neoliberais de Fernando Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso é que eles deixam de ser elaborados e executados. Entre o terceiro e o quarto PNPG, há um hiato de 16 anos em que a pós-graduação brasileira ficou sem um planejamento por parte do Estado Nacional. Nesse período, predominou a improvisação, uma expansão sem a devida visão estratégica das prioridades da nação. Típico do pensamento neoliberal.

A retomada do IV PNPG (2005-2010), portanto, foi um importante passo para o país reorientar seu sistema nacional de pós-graduação. É justamente a partir de então que o país vivencia uma expansão expressiva do número pós-graduandos em um curto intervalo de tempo, em um período marcado pelo fortalecimento de políticas públicas voltadas à educação e à ciência nacional, patrocinadas fortemente pelos governos Lula e Dilma.

Dados publicados na revista Pesquisa FAPESP mostram que “a produção científica nacional cresceu mais do que cinco vezes” desde o final dos anos 1990 até o ano de 2019. Em artigo intitulado “A expansão em números”, publicado na edição 284, Fabrício Marques revela que “o número de artigos de pesquisadores do Brasil publicados em revistas indexadas na base Scopus, que estava na casa dos 13,5 mil no final dos anos 1990, alcançou 74 mil em 2018, levando o país do 18º para o 13º lugar entre as nações que mais geram conhecimento na forma de papers” [9]. Expressiva parte dessas publicações e da grande área das Ciências Agrárias.

Do ponto de vista prático, a agropecuária brasileira vem se desenvolvendo enormemente desde a implementação e consolidação da pós-graduação brasileira a partir da década de 1960. Desde meados do século passado, os imensos obstáculos apresentados ao desenvolvimento nacional só poderiam ser superados a partir de sua própria inteligência.

Não por acaso, o primeiro programa de pós-graduação do país tenha sido na área de ciências agrárias com o mestrado em Fitotecnia, na Universidade Federal de Viçosa [10]. Deveu-se, em grande parte, ao grande esforço nacional em se desenvolver a pesquisa autóctone em agropecuária, levando em conta, principalmente, as distintas peculiaridades edafoclimáticas (precipitação, temperatura, solos, relevo, fotoperíodo, umidade do ar, etc.) de um país de dimensão continental como o Brasil.

A partir de então, o que assistimos é motivo de orgulho. Vários programas de pós-graduação foram responsáveis por distintas linhas de pesquisa que, no conjunto, revolucionaram os índices de produtividade agrícola em todo país. Os exemplos são abundantes.

A começar pela maior de todas as contribuições: a formação em grande escala de recursos humanos altamente qualificados, algo inédito até então na história do Brasil. Nesse sentido, o número de profissionais formados nesses milhares de programas de pós-graduação existentes em todos os estados da Federação, embora com suas assimetrias estaduais, aumentou extraordinariamente no país. Esses “egressos levam com eles o que as universidades têm de mais avançado em termos de estrutura laboratorial, métodos e tecnologia de pesquisa” (TEIXEIRA et al., 2013).

De acordo com a Capes, de cada cinco programas de pós-graduação existentes no Brasil, quatro estavam em instituições públicas até o ano de 2019. “São 3.703 cursos de mestrado e/ou doutorado entre instituições federais, estaduais ou municipais – o que equivale a 80% dos 4.581 programas de pós-graduação no país” [11].

As instituições federais, incluindo universidades, institutos federais e fundações, concentram a imensa maioria dos programas de pós-graduação no país, sendo responsáveis por 2.669 deles, o que equivale a 58,2%. Outros 1.034, ou 22,5%, estão em instituições estaduais ou municipais. Se a quantidade chama atenção, o qualidade não fica atrás: 90% dos programas melhores avaliados estão nas instituições de ensino superior públicas, boa parte deles na área de ciências agrárias. São resultados expressivos que demonstram a importância dos investimentos públicos na área.

São esses recursos humanos os responsáveis por inovações que revolucionaram a agropecuária, a começar pelo aproveitamento do segundo maior bioma do Brasil, o cerrado, na produção agropecuária. Uma imensa área do território brasileiro era praticamente desaproveitada por não se compreender, até então, a dinâmica de seus solos, tanto do ponto de vista físico (estrutura), quanto em relação à sua química (fertilidade). Foi a pós-graduação brasileira quem primeiro liderou pesquisas sobre a necessidade da correção dos solos ácidos do Brasil. As pesquisas que determinaram as dosagens de corretivos e de fosfatos para os solos do cerrado “transformaram os milhões de hectares do deserto ou savana brasileira, como era tido até finais da década de 1960, num oásis de 79 milhões de hectares já na década de 1970” (NOVAIS et al., 2007).

O avanço da fronteira agrícola brasileira rumo ao Centro-Oeste a partir dos anos 1970, foi resultado direto deste Projeto Nacional de Desenvolvimento que incorporou esta extensa área ao mapa da produção agropecuária, sendo hoje a região que se destaca com os melhores índices médios de produtividade em diversas culturas.

Outra colossal contribuição da pesquisa realizada na pós-graduação brasileira é o melhoramento genético animal e vegetal desenvolvido em diversos programas. A utilização dos solos do cerrado exigia também o desenvolvimento de cultivares adaptados aos seus solos ácidos e técnicas eficientes na correção dessa acidez com o uso do calcário.

Nesse sentido, várias linhas de pesquisa tiveram como objetivos o incremento da produtividade, o aumento da resistência a pragas e a consequente redução no uso de defensivos químicos e a produção de alimentos mais nutritivos.

Com relação à cultura da soja, espécie introduzida há pouco mais de um século no Brasil e hoje uma das commodities mais importantes do país, sua adaptação só foi possível graças aos programas de melhoramento existentes nas universidades e institutos de pesquisa. Um pouco desta epopeia é contada por Teixeira, et al., (2013):

“Em Minas Gerais, o programa de melhoramento genético de soja da UFV teve início em 1963, por meio do convênio com a Purdue University (EUA), com os pesquisadores americanos Marvin L. Sweatingin e Kirk L. Athow, com o objetivo de desenvolver variedades adaptadas às áreas de Cerrado, localizadas na região Central do Brasil. Na época, foram trazidas para a UFV diversas variedades de soja da região Sul dos Estados Unidos. Entretanto, a sensibilidade da soja ao fotoperíodo fez com que a maioria dos materiais introduzidos apresentasse pequena estatura, sem condições de ser colhido mecanicamente, o que inviabilizava economicamente a cultura. Após uma série de ensaios, destacaram-se duas linhagens: a Mineira e a Viçoja, lançadas em 1969, pelo Professor Tuneo Sediyama. Essas variedades eram indicadas para solos naturalmente férteis ou de fertilidade corrigida. Desde essa época, mais de 2.000 tipos de hibridações foram feitas, sempre priorizando características como produtividade, adaptação à colheita mecanizada, boa qualidade fisiológica da semente, maturação uniforme, elevados teores de óleo e de proteína e resistência às doenças” (TEIXEIRA et al., 2013). 

Sediyama et al. (2012), entretanto, chamam atenção para o fato de as universidades estarem perdendo espaço no desenvolvimento de novos cultivares comparando-se com as companhias multinacionais que, não raras vezes, promovem uma verdadeira cooptação de cérebros, favorecidas pelas políticas neoliberais em curso no país. Os objetivos de mercado prevalecem sobre os interesses da nação.

Esse espaço deixado pelo Estado brasileiro, num cenário de intensas mudanças no âmbito da terceira revolução tecnológica (e agora na chamada Revolução 4.0 ou quarta revolução industrial), foi ocupado avidamente pelas multinacionais que, hoje, usam as estruturas públicas de pesquisa para desenvolverem suas pesquisas básicas por meio de convênios e parcerias; ao mesmo tempo em que lideram as inovações tecnológicas no campo, exercendo o papel de grande indutora da modernização conservadora que assistimos hoje. Nada contra as parcerias, desde que elas atendam aos interesses de todas as partes envolvidas.

E como se não bastasse, esse grande capital nacional que se constitui os recursos humanos altamente qualificados, compostos por pesquisadores e cientistas cuja formação a sociedade brasileira tanto investiu, vai sendo perdido para outros países numa “fuga de cérebros” que é assistida passivamente pelos distintos governos neoliberais que se sucedem no Brasil.

De acordo com matéria veiculada no jornal Valor Econômico do dia 16 de dezembro de 2019 sobre a fuga de cérebros do país, “desde 2015, quando a economia mergulhou em recessão, o número de saídas definitivas do Brasil está acima dos 20 mil a cada ano. Antes disso, vinha subindo, mas não passava de 15 mil”.Ainda, segundo a reportagem, “em 2018, 22,4 mil pessoas entregaram declarações de saída definitiva do Brasil, segundo apuração dos técnicos da Receita Federal até novembro de 2018” [12].

O mais desesperador é que nenhuma política específica para conter esse êxodo de pesquisadores é adotada. Pelo contrário, em nome do “livre-mercado” o atual governo parece prestigiar uma campanha anticientífica. Para se ter uma ideia deste descalabro, um ex-ministro da Educação do governo Bolsonaro, Abraham Weintraub, chegou a afirmar ser comum haver nas universidades “plantações extensivas de maconha”, que seriam grandes a ponto de ter borrifadores de agrotóxico. Ainda segundo Weintraub, há laboratórios de química que estão “desenvolvendo laboratórios de droga sintética, de metanfetaminas” porque a polícia não pode entrar nos campus [13]. Uma clara e aberta campanha de difamação de um dos maiores patrimônios do povo brasileiro que é a universidade pública, feita justamente por quem teria a obrigação moral e legal de defendê-la.

Mas não a universidade pública não é o único alvo dos negacionistas neoliberais. Os demais institutos de pesquisa, ou seja, tudo aquilo que promove a ciência nacional é igualmente vítima da fúria irracional dos dilapidadores do Estado. É o caso da Embrapa.

Embrapa: os números incontestáveis de uma empresa pública e as hipóteses refutadas pelo experimento neoliberal

A Embrapa é criada em 1972, concebida pelo mesmo esforço do Estado brasileiro em viabilizar um sistema nacional de ciência e tecnologia voltado para a agropecuária. Uma empresa pública a mais para, aproveitando-se dos egressos formados na então recente pós-graduação brasileira (muitos deles treinados fora do país), apresentar “soluções de pesquisa, desenvolvimento e inovação para a sustentabilidade da agricultura, em benefício da sociedade brasileira” [14].  É esta a missão institucional da Embrapa.

Hoje a população brasileira é beneficiada com o preço da cesta básica custando menos da metade do preço do que era quando a Embrapa começou seus trabalhos. Uma das explicações para essa redução do preço dos alimentos, ainda que bem menos do que o necessário para satisfazer a maioria dos brasileiros, foi o incremento da produção agropecuária no país.

Em um período correspondente a 367 meses, entre o início de 1976 e o final do ano de 2006, “a queda anual do preço da cesta básica equivaleu ao impressionante valor de 3,12% (-3,12%). No período a 95,58%. Os grandes beneficiários foram os consumidores mais pobres” (SOUZA et al., 2013).

Estes autores lembram que uma das razões que motivaram a criação da Embrapa foi justamente a preocupação pela disparada nos preços dos alimentos no início da década de 1970. Não era o mercado quem iria resolver o problema da fome que abatia imensa parcela da sociedade. Uma vez mais o Estado Nacional era chamado a atuar de forma a garantir o prato na mesa do trabalhador. Segundo Souza et al. (2013):

Os elevados preços internacionais de alimentos e a rápida urbanização geraram forte pressão de demanda, que não foi respondida pela agricultura. Assim, os preços internos de alimentos subiram a taxas explosivas. No período de janeiro de 1970 a janeiro de 1976, o preço da cesta básica cresceu à taxa anual de 6,52%, e no subperíodo, a 39,13%. A agitação urbana mostrou sua presença, e filas para comprar alimentos era uma realidade nas principais cidades brasileiras, caracterizando, na compreensão popular, uma forma de desabastecimento” (SOUZA, et. al., 2013).

Desde então, a produção brasileira de grãos aumentou quase nove vezes, saltando de 30 milhões de toneladas de grãos em 1972 para algo próximo a 260 milhões em 2021. A elevação da produtividade do setor florestal foi 140% e a do setor cafeeiro chegou a ser triplicada. Exemplos não faltam.

Segundo os resultados do Balanço Social da Embrapa de 2018: para cada um real aplicado na empresa foram devolvidos mais de doze reais para a sociedade, um lucro de R$ 43,52 milhões gerado a partir do impacto econômico no setor agropecuário de apenas 165 tecnologias e cerca de 220 cultivares geradas pela pesquisa. O Balanço Social apontou ainda a liderança da Embrapa na produção científica entre as dez primeiras instituições com maior nível de produtividade, incluindo as universidades.

Mas na contramão deste retorno econômico gerado para a economia brasileira, que deveria motivar os governos a investirem pesadamente nesta empresa pública, a Embrapa vem sofrendo sucessivos cortes em seu orçamento nos últimos anos. 

Apenas no ano passado, de acordo com o Sindicato dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (SINPAF), a Embrapa “sofreu um corte de mais de R$ 519 milhões de seu orçamento, e no início de setembro teve novo corte de mais de R$ 118 milhões’ [15]. Para o ano que vem, o sindicato afirma que a redução proposta pelo governo federal é ainda mais severa.

Na esteira dessa ofensiva neoliberal, segue o programa de demissão voluntária, mais um nome pomposo usado pelos neoliberais como eufemismo para o aumento das fileiras do exército industrial de reserva. Precarização do trabalho e demissão em massa em todos os setores da economia. E na pesquisa agropecuária não é diferente.

Em novembro de 2020, o presidente da Embrapa, Celso Moretti, informou que foi concluído “um plano de demissão incentivada que teve a adesão de cerca de 1.200 funcionários, em meio a um programa de reestruturação da estatal que inclui metas para ampliar sistemas produtivos sustentáveis”. Ainda segundo Moretti, “a adesão ao plano de demissões permitirá uma economia de 250 milhões de reais por ano para a empresa” [16].

Além desse “enxugamento” da força de trabalho, o presidente da Embrapa também afirmou que, em nome da tal eficiência de mercado, a empresa fechou 14 dos 16 escritórios de negócios espalhados pelo país porque, segundo ele, grande parte já não cumpria os objetivos propostos. A empresa também eliminou 41 cargos comissionados.

 

Figura 3: Sede da Embrapa Mandioca e Fruticultura é um das 43 Unidades Descentralizadas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a única sediada no Estado da Bahia, em Cruz das Almas. (Foto: Embrapa)

Segundo o SINPAF, a estratégia inclui desde o Plano de Desligamento Incentivado (PDI), que já teve adesão de mais de mil funcionários, passa pela terceirização de algumas atividades-meio e chega até mesmo à venda de imóveis e ao fechamento de centros de pesquisa. A Embrapa está na lista dos planos de desmonte do governo Bolsonaro no processo chamado de “repontecialização”.

Toda vez que a Embrapa perde potência é justamente nos governos neoliberais, quando prevalece a lógica de encolhimento do Estado. Ou seja, quando impõem-se os recorrentes cortes orçamentários que acabam por colocar em perigo projetos estratégicos, processos e atividades desenvolvidos pela empresa. O risco é grande também com relação à manutenção de instalações e projetos, assim como campos experimentais, rebanhos e recursos genéticos, entre outros. A intermitência no repasse de recursos por parte do governo também obriga a empresa a, muitas vezes, se submeter aos ditames de multinacionais, perdendo sua autonomia.

 Já é de algum tempo que o país assiste, conformado, parte significativa das pesquisas sobre biotecnologia agrícola e quase todas as atividades de comercialização serem realizadas por multinacionais estrangeiras, ao contrário do que ocorreu com as pesquisas que impulsionaram a Revolução Verde, sobretudo a partir dos anos de 1960 e 1970, protagonizadas por instituições públicas e empresas privadas brasileiras.

Pior, assistimos ao desmonte deste sistema nacional de ciência e tecnologia – erguido às duras penas -, cujos profissionais mais capacitados são vorazmente disputados por estas empresas em troca de melhores remunerações e estruturas de trabalho, sem a mínima resistência de setores nacionalistas e patrióticos. Não seria nenhum exagero dizer que muitos laboratórios públicos de maior destaque só se mantêm como “puxadinhos” destas multinacionais, atendendo aos seus interesses de mercado.

Importante destacar que a atuação de empresas multinacionais no campo brasileiro não é algo recente. Pelo contrário, nos remete ao período colonial. Um bom exemplo desta atuação é o caso da Companhia das Índias Ocidentais (empresa multinacional de capital misto) que teve concessão da metrópole para atuar no país ainda no século XVII. Entretanto, o apartheid tecnológico entre as empresas multinacionais de um lado, e a pesquisa pública e privada nacional de outro, se consolida somente a partir da escalada do neoliberalismo em nosso país.

No período em que se configurou a Revolução Verde, o Estado brasileiro não vivia sob os auspícios do neoliberalismo. Ainda que o papel das multinacionais tenha sido expressivo, as nações tiveram papel importante na definição deste fenômeno que ajudou a configurar o que hoje entendemos como a terceira etapa da revolução industrial em todo mundo.

Poucos países do mundo foram tão expostos aos interesses das multinacionais em tão pouco tempo como Brasil. A partir da chegada do vendaval neoliberal que ousou a varrer os campos brasileiros, acordos como o da Rodada Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt, da sigla em inglês), iniciado em 1986 e finalizado em 1993, liberalizou por completo a entrada de grandes grupos multinacionais ao país que começaram a redesenhar a pesquisa agropecuária brasileira, de modo a atender seus interesses privados e comerciais. É o que alerta Mazzali (2000):

“com esse novo ambiente, mutável e incerto, da atuação do Estado brasileiro, as empresas agrícolas traçaram novas estratégias. Além da atuação frouxa do Estado Brasileiro, as empresas agrícolas de deparavam também com o intenso ritmo das mudanças tecnológicas (biotecnologia, microeletrônica e Pesquisa e Desenvolvimento)” MAZZALI (2000).

A Embrapa, portanto, deve se atentar à sua missão histórica de atender aos interesses da sociedade como um todo: pequeno, médio e grande produtor rural. Saber que muito do investimento feito com o suado dinheiro do contribuinte do trabalhador brasileiro pode resultar em nada (o que é normal), como também será decisivo para várias descobertas fundamentais para continuar revolucionando nossa agricultura. O caso da Fixação Biológica de Nitrogênio (FBN) é uma prova inconteste desta tese. Senão vejamos:

“Estima-se que a FBN tenha uma contribuição global para os diferentes ecossistemas da ordem de 258 milhões de toneladas de nitrogênio (N) por ano, sendo que a contribuição na agricultura é estimada em 60 milhões de toneladas. No Brasil, o caso mais exitoso de sua contribuição é representado pela cultura da soja, onde o uso de inoculante, a partir da década de 1960, garantiu a competitividade para a mesma quando comparada com a produção de outros países, refletindo diretamente na balança comercial do País. Caso o fornecimento de nitrogênio para a cultura da soja tivesse que ser efetuado via adubação nitrogenada seria necessário para uma produção média de 49 sacos/ha (produtividade média da soja na safra 2012/2013) um total de 588 kg uréia/ha (considerando uma eficiência de apenas 60%), a um custo médio (outubro de 2013) de R$ 906,00/ha. O custo por hectare da inoculação é de R$ 8,00. Ou seja, com o processo de inoculação são economizados R$ 898,00/ha. Se considerarmos os 27,7 milhões de hectares plantados com soja no Brasil, a economia proporcionada pela não utilização de adubos nitrogenados é da ordem de R$ 24,9 bilhões anuais, algo em torno de US$ 10,3 bilhões de dólares” EMBRAPA (2014).

Resumindo: todo o investimento público feito até hoje na Embrapa é menor que o imenso ganho proporcionado por apenas uma tecnologia desenvolvida por seus pesquisadores. Quando pensamos nas diversas outras inovações, o saldo positivo é incalculável. Mas essa conta não fecha na cabeça de um neoliberal, afeito que é ao imediatismo dos resultados.

A frase de Carl Sagan, na abertura deste artigo, nada mais é que uma versão mais científica de ditado popular muito conhecido em nosso país: “errar é humano, permanecer no erro é burrice”.

O neoliberalismo formulou suas hipóteses. Uma por uma foi caindo por terra ao longo das últimas décadas. Natural que fracassasse. Daqui pra frente é aceitar os fatos. A realidade que se impõe: é necessário retomar o papel do Estado em um novo projeto nacional de desenvolvimento também para a agropecuária brasileira.

*Luciano Rezende Moreira é doutor na área de melhoramento genético de plantas (UFV), mestre em entomologia (UFV) e especialista em Manejo Integrado de Pragas (UFLA). É graduado em agronomia (UFV), geografia (Uerj) e administração pública (UFF). Atualmente é professor no Instituto Federal de Brasília (IFB). É diretor da Fundação Maurício Grabois.

NOTAS

[1] Veja mais em https://brasil.elpais.com/internacional/2020-09-17/qanon-a-nova-teoria-da-conspiracao-que-se-prepara-para-entrar-no-congresso-dos-eua.html.

[2] Ibidem. 

[3] Ver mais em: https://www.embrapa.br/visao/trajetoria-da-agricultura-brasileira#:~:text=Entre os indicadores mais ilustrativos,a área plantada apenas dobrou.

[4] Veja mais em https://diplomatique.org.br/a-pandemia-e-o-agronegocio-no-brasil/#:~:text=O modelo de criação animal,dominação humana sobre a natureza.

[5] Ver mais em: https://www.capes.gov.br/historia-e-missao.

[6] Extraído do Regimento Interno do CNPq – Portaria nº 816, de 17 de dezembro de 2002 – Título I, Capítulo I, Artigo 2º.

[7] Ver mais em: http://centrodememoria.cnpq.br/Missao2.html.

[8] Ver mais em: https://fapesp.br/28/criacao-e-estruturacao-da-fapesp#:~:text=Histórico,-Home&text=A Fundação de Amparo à,23 de maio de 1962).

[9] Ver mais em: https://revistapesquisa.fapesp.br/a-expansao-em-numeros/

[10] Em março de 1961, foi inaugurado, na então Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (UREMG), hoje Universidade Federal de Viçosa (UFV), o primeiro curso de pós-graduação, no Brasil, no modelo norte-americano do Master of Science. Fonte: http://www.rbep.inep.gov.br/index.php/rbep/article/view/1277/1251.

[11] Ver mais em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/05/16/universidades-federais-pos-graduacao/

[12] Ver mais em: https://valor.globo.com/google/amp/brasil/noticia/2019/12/16/novo-folego-da-fuga-de-cerebros-do-pais-acende-sinal-de-alerta.ghtml.

[13] Ver mais em: https://exame.abril.com.br/brasil/ministro-da-educacao-diz-que-universidades-federais-plantam-maconha/.

[14] Missão Institucional da Embrapa. Fonte: https://www.embrapa.br/missao-visao-e-valores.

[15] Ver mais em: https://www.cut.org.br/noticias/entenda-como-a-privatizacao-da-empraba-pode-fazer-precos-de-alimentos-subirem-7729.

[16] Ver mais em: https://www.apcefsp.org.br/caixa-100-publica/sob-ataque-do-governo-embrapa-registra-1-200-adesoes-a-plano-de-demissao.

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